quarta-feira, abril 14, 2010

serrinha custa, mas vem

Fala a verdade, não é um luxo completo a gente ser brasileira(o) e ter uma Dona Ivone Lara no horizonte, como referência?

Texto da "CartaCapital" 590, de 7 de abril de 2010.

Senhora majestade

A modéstia acompanha Dona Ivone Lara, nome maior da música brasileira que, aos 89 anos, lúcida e ativa, é tema de DVD com participação de convidados

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Ivone Lara foi a primeira mulher a assinar seu nome na coautoria de um samba-enredo carioca. Aconteceu em 1965, quando o Império Serrano desfilou Os Cinco Bailes da História do Rio, composição dividida por ela com dois homens, Silas de Oliveira e Bacalhau. Naquele ano, quem ganhou foi o Salgueiro, mas já na estreia a compositora Ivone Lara chegou a vice-campeã.

Hoje conhecida pelo Brasil como Dona Ivone Lara, ela completa 89 anos em 13 de abril, e ao longo das últimas décadas não viu essa situação muito se modificar, pelo menos não no ambiente das escolas de samba. Da segunda colocação, nunca passou. Outra autora que se aventurou nessas competições, Leci Brandão, por seis vezes emplacou sambas finalistas nos concursos da Mangueira, mas nenhum deles jamais chegou à avenida ou ao sambódromo.

Dona Ivone deprecia o próprio talento ao explicar como conseguiu furar o bloqueio masculino em 1965. “Meus primos eram diretores de harmonia, faziam parte das diretorias, eram maiorais na escola de samba. Eu quebrei esse tabu sendo parente deles”, explica, numa manhã paulistana, após um fim-de-semana de shows na cidade. Não diz que antes disso um primo criado como irmão, o futuro Mestre Fuleiro, chegou a mostrar sambas dela como sendo dele, supostamente para driblar a não-aceitação de uma compositora mulher.

Ivone já tinha 43 anos quando contou “em sonho” Os Cinco Bailes da História do Rio. Alegremente sorria/ algo acontecia/ era o fim da monarquia, diziam os versos finais, sob a obrigação, estendida a todas as escolas, de se debruçar sobre temas históricos da pátria brasileira. A demora não é particularidade dela. Mais ou menos à mesma época, a empregada doméstica Clementina de Jesus era revelada cantora, já sexagenária, e Cartola, autor de canções gravadas por Carmen Miranda nos anos 1930, era resgatado do trabalho como flanelinha para o samba.

O pai de Ivone, João da Silva Lara, ajudante de caminhoneiro, morreu quando ela era muito pequena. “Nasci em Botafogo, num lugar bonito, uma avenida. Meu pai faleceu, fui morar num lugar completamente diferente. O conforto já não era igual”, conta. A mãe, Emerentina Bento da Silva, foi empregada doméstica. “Ela trabalhava em casa de família e tinha necessidade de me levar com ela. A família era rica, mas não tão rica para ter mais de uma empregada. Embora com pouca idade, eu era bem serviçal. Ia comprar jornal, fazia trabalhos miúdos.”

Foi para um internato, onde estudou canto orfeônico com Lucília Villa-Lobos, esposa de Heitor Villa-Lobos. E trabalhou, desde muito cedo. “Eu criança, com 11 anos, tive que procurar emprego. Fui ser auxiliar de copeira, lavava muita louça, trabalhava em pensão. Já mocinha, lendo jornal, vi que as matrículas estavam abertas na escola técnica de enfermagem.” Tornou-se enfermeira, trabalhou em hospital, estudou serviço social. Deve ter salvado algumas vidas, não, Dona Ivone? “Muitas”, responde. “Trabalhei em berçário, e ali a gente aprende muito. Criança pequenininha dá muito trabalho, e corre muito risco também. Sem querer a gente às vezes tem gestos que salvam uma criança com coqueluche, à noite, passando mal. Sem querer, não, que a gente vai para salvar das crises.”

Mais tarde, cuidou de adultos. Aposentou-se após 40 anos de profissão, 32 deles cumpridos no Serviço Nacional de Doentes Mentais, fase em que conheceu e trabalhou com a psiquiatra Nise da Silveira. “Me habituei, era a coisa mais natural lidar com eles, mesmo em período de agitação. Para mim era a mesma coisa que não houvesse nada de mais. Ficavam internados seis meses, um ano. Às vezes a família abandonava um e ele passava a ter a residência dele em hospital psiquiátrico.”

Ainda jovem, Ivone compôs a primeira melodia que sobreviveria à passagem do tempo (e seria registrada em disco por Alcione, em 1976), chamada Tiê. Falava de um pássaro que ela ganhara de presente. “Era a minha boneca. É preto e vermelho, um pássaro muito bonito, com um canto muito bonito.” Representava pra mim carinho, amor e paixão/ lembrar do tiê despertou meu coração, dizia a letra.

Em 1947, casou-se com Oscar Costa, filho do presidente da escola de samba Prazer da Serrinha, para a qual compôs, já àquela época, um samba chamado Nasci para Sofrer. A Império Serrano surgiria naquele mesmo ano, como dissidência da escola comandada a mão de ferro por seu sogro, Alfredo Costa. Ivone foi fundadora da nova escola, ao lado de Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola.

Enquanto Ivone se firmava como integrante garbosa da ala das baianas da Império, a escola vivia momentos de glória com sambas-enredos como Aquarela Brasileira (1964), de Silas, Heróis da Liberdade, dele e de Mano Décio (que em pleno 1969 gritava os versos passava noite, vinha dia/ o sangue do negro corria dia-a-dia/ de lamento em lamento, de agonia em agonia/ ele pedia o fim da tirania) ou o alegre Bumbum Paticumbum Prugurundum (1982), de Aluísio Machado e Beto Sem Braço. Nestes anos 2000, a escola tem amargado sucessivos rebaixamentos. “Fico triste, sou Império até hoje.”

Dona Ivone mostra-se arisca a falar sobre discriminação racial: “Não me preocupo com isso, não. Porque tem uma coisa, até a presente data, graças a Deus, sempre fui bem recebida em qualquer ambiente”. Isso não a impediu de cantar temas afirmativos criados por outros autores, como Sorriso Negro, gravado por ela em 1981 em duo com o sambista impuro Jorge Ben, ou Lamento do Negro (1982). Um sorriso negro, um abraço negro/ traz felicidade/ negro sem emprego/ fica sem sossego/ negro é a raiz da liberdade, manifesta-se a primeira. O negro veio de Angola/ fazendo sua oração/ na promessa da riqueza/ só ganhou a escravidão/ canto do negro é o lamento/ na senzala do senhor, aprofunda a segunda.

Se em 1965 Ivone foi finalmente notada pelo mundo do samba, demorariam ainda mais 13 anos para que pudesse lançar seu primeiro disco individual. Tinha 57 anos quando saiu Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz (EMI-Odeon), creditado não a Ivone, mas a Dona Ivone, e até hoje não reeditado em CD. Naquele mesmo 1978, contou com duas madrinhas midiáticas de peso, Maria Bethânia e Gal Costa. Antes mesmo que Dona Ivone o fizesse, elas gravaram Sonho Meu, no álbum Álibi, de Bethânia. Dulcíssimo, o samba é um de seus grandes marcos, sob letra não tão doce assim do parceiro preferencial, Delcio Carvalho. Vai matar esta saudade, sonho meu,/ com a sua liberdade, sonho meu (...) a madrugada fria/ só me traz melancolia sonho meu, dizem os versos insones que seriam registrados pela autora em 1979, em dueto com ninguém menos que Clementina de Jesus.

Bethânia repetiu a reverência (e o sucesso) em 1980, cantando Alguém Me Avisou em trio com Caetano Veloso e Gilberto Gil. Por intermédio das vozes dos rebeldes da Bahia, a letra de Dona Ivone afrontava mansamente a resistência sempre calada a tudo que ela representava (e representa): Foram me chamar/ eu estou aqui, o que é que há?/ (...) eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho/ (...) sempre fui obediente, mas não pude resistir/ foi numa roda de samba que juntei-me aos bambas pra me divertir.

Dona Ivone lançou poucos discos, mas apresentou muitos sambas de grande qualidade, vários deles revelados por outros intérpretes. As mágoas amorosas (além de outras mais, provavelmente) conduziram canções desalentadas como Alvorecer (lançada por Clara Nunes em 1974), Amor sem Esperança (Beth Carvalho, 1975), Acreditar (Roberto Ribeiro, 1976), Resignação (Cristina Buarque, 1976), Tendência (1981), Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço? (Nana Caymmi, 1981, e Paulinho da Viola, 1983), Enredo do Meu Samba (Grupo Fundo de Quintal, 1983, e Sandra de Sá, 1984)...

Ainda em 1982, Dona Ivone amenizou as dores de Nasci para Sofrer em uma das mais suaves e ternas gravações que o samba conhece, batizada de Nasci para Sonhar e Cantar. O que trago dentro de mim preciso revelar/ eu solto o mundo de tristeza que a vida me dá/ me exponho a tanta emoção/ nasci pra sonhar e cantar, canta, quase num sussurro.

Dona Ivone tem revisitado tais canções, as mais e as menos alegres. Por estes dias de 2010, está lançando um DVD (o primeiro de sua história) com participações de Caetano, Gil, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e Jorge Aragão. Outro CD, gravado com Delcio Carvalho, apresenta somente composições inéditas da dupla. No fim-de-semana que passou, ela dividiu o palco do Teatro Fecap com o grupo paulista Samba Esporte Fino. Fêmur fraturado e voz frágil, cantou a ponto de não querer parar, mesmo com as cortinas se fechando à sua revelia. “Trabalho até hoje por esporte, porque gosto”, explicaria depois, serena, mas admitindo que a empreitada lhe custa esforço (“a gente sempre se cansa, né, porque só a tensão que a gente fica...”) e que cantar, é, sim, um trabalho: “É trabalho, tanto que fazem cachê. Mas eu sempre aproveito...”.

No palco, cantou os maiores sucessos, privilegiando os de autoria própria. Não apareceu, por exemplo, um samba de terreiro que ela aprendeu na Serrinha, de Carlinhos Bem-Te-Vi. Serra dos meus sonhos dourados, onde nós fomos criados/ lá eu hei de morrer/ não desfazendo de ninguém/ Serrinha custa, mas vem, afirma a letra do compositor-passarinho que diz tudo e mais um pouco sobre o jeito de ser da cantora-compositora-sonhadora. (Dona) Ivone Lara custa, mas vem.