quinta-feira, novembro 26, 2009

rap:ente

Não mais que de repente, tudo que este blog anda dizendo ultimamente - cantoras negras brasileiras, Eduardo Galeano, música nova Brasil afora, complexo de vira-lata (e sua superação), Pará, centro versus periferias, preconceitos (e a luta contra eles) - irá se concentrar poeticamente nas (muitas) linhas que vêm abaixo.

A pedido da revista "Bravo" (o texto resultante está na edição em cartaz nas bancas, número 147), fui entrevistar uma "nova aposta" da música brasileira, o rapper paulistano Emicida. Ele já havia ganhado destaque na "Folha", antes concorreu a não sei exatamente que prêmios na MTV. E depois disso tudo eu fui encontrá-lo no largo da Santa Cecília, perto da minha casa e longe da dele. Ele voltava do hospital, de um exame de ultrassom da filha que vai nascer. E lá fui eu, entrevistar esse rapaz rimador de freestyle que (nunca pensei que um dia ia dizer esta frase!) quase teria idade para ser meu filho...



Sentamos nas mesinhas de calçada de um boteco no largo, em frente à igreja. Os moradores de rua que vieram participar do papo do qual estão excluídos deixavam evidente, a toda hora, que o centro também é reduto de periferia e que a periferia também se esparrama pelo centro inteiro.

Na hora de transcrever o papo de hora e meia, comecei querendo ser fiel ao linguajar e às gírias de Emicida, quero dizer, Leandro Roque de Oliveira. Aí me lembrei de bronca que levei de um leitor uma vez, quando, na "Folha", optei por reproduzir o linguajar peculiar do afrossambista (negro, posso dizer?) Baden Powell. Um leitor reagiu afirmando que no modo de transcrever eu estava querendo depreciar o entrevistado.

[Revi agora aquela entrevista e, gozado, minha cachola estava me enganando e a questão não estava nas gírias e no linguajar do Baden Powell. Tentando refazer o percurso da memória, acho agora que o leitor - ou seria leitora? - se referia às evidências que eu deixava sobre a ranzinzice do Baden, que de fato me fez suar frio naquele dia antigo. (Nossa, como o jornalismo mudou de 1999 pra cá!) Tudo bem, não era essa a semelhança entre Baden ontem e Emicida hoje, mas reli os textos e acho que percebi algumas das razões que me fizeram lembrar de Baden em Leandro Roque de Oliveira.]

Mas será?, será que eu tentei depreciar o Baden em 1999? E agora, estaria eu criando uma barreira entre Emicida e você no ato de reproduzir a fala coloquial do rapaz da periferia norte paulistana? Segui a transcrição e, ainda na dúvida, decidi que, para ser exato, eu deveria reproduzir não só a fala coloquial do Emicida, mas também a minha própria, putameutiponossacaraentão! E comecei a fazê-lo e entendi que, fora o jardim de expressões tipo "tá ligado?" que brota da fala do repentista paulistano, a minha fala coloquial paranapaulistana é tão... parecida com a dele!! Então tá combinado, se por acaso eu estiver depreciando o Emicida, estarei fazendo o mesmíssimo comigo mesmo, concorda?

Mas, sei lá, algo me diz que não, não é a depreciação nem o complexo de vira-lata que iremos louvar daqui para baixo. Pois não é que passei meu e-mail pro Emicida e, dias depois de publicada a "Bravo", recebi do próprio um e-mail emocionado (que me emocionou também)? Ele parece ter gostado bastante do (minúsculo) texto que saiu na revista! (Olha só, dez anos atrás eu jamais colocaria um ponto de exclamação meu num texto jornalístico!)

E eu, a um só tempo pedreiro e tijolinho humano das Folhas, Abris e CartaCapitais do jornalismo popular brasileiro, fiquei pensando a quantidade formidável de revelações incríveis que o conglomerado MTV-Folha-Abril (o mesmo que hoje promove o Emicida) poderia aprender sobre São Paulo (e sobre sua paisagem humana, e sobre a vida fora da bolha) se prestasse atenção, ouvisse e compreendesse um décimo que fosse do discurso daquele menino da periferia que ajuda a animar suas edições e premiações. Será que não tão a fim, não?

E eu, mais ainda que isso, e já reposto do susto de entrevistar um cara com esse codinome todo agressivo, depois fiquei pensando que o Emicida devia era se chamar Emocionida, isso sim. Sei que você vai perceber isso, em linhas e entrelinhas. Tá a fim?

Então vamos lá, temos uma entrevista gigantesca (em mais de um sentido) pela frente, com um cara de quem possivelmente você quase nem tenha ouvido falar. Sim, eu tô te fazendo um desafio, vai topar a rima, assim, não mais que de repente?


Pedro Alexandre Sanches – Leandro, queria que você contasse a sua história, quanto mais detalhado melhor. Como é seu nome inteiro mesmo?

Emicida – É Leandro Roque de Oliveira.

PAS – Que idade?

E – Tenho 24 anos.

PAS – A palavra é sua.

E – Cara, eu vou começar do começo.

PAS – Do começo, onde você nasceu, essa coisa toda.

E – Eu nasci no Tucuruvi, no hospital Presidente, no dia 17 de agosto de 1985. Já na época a gente morava no Jardim Fontales, e era o auge desses bailes de quebrada, em que tocavam os funks.

PAS – Jardim Fontales fica onde?

E – Na zona norte. E era o auge desses bailes, rolava pra caramba, ainda tinha bastante equipe de baile, tipo Chic Show, Zimbabwe. Como essa parada tava explodindo, o meu pai era DJ de uns bailes e a minha mãe ajudava de uma certa maneira a organizar. E o equipamento ficava guardado na minha casa. Acho que esse é o primeiro contato que tive com lance de fazer música – de fazer, não, de estar próximo do equipamento e de quem faz.

PAS – Como chama seu pai?

E – Miguel de Oliveira.

PAS – Que idade ele tem hoje?

E – Não, ele faleceu.

PAS – Ah. E a profissão dele era DJ?

E – Não, era mais um hobby. Trabalhava de outras coisas, era pedreiro, fazia vários bicos. Mas o lance do DJ mesmo, acredito que ele não focou muito nisso, e isso também acabou não voltando pra ele da maneira que ele gostaria.

PAS – Na época, também, era bem mais raro do que hoje.

E – Putz! Ser DJ, realmente... Hoje ainda tem algumas facilidades. Tem algumas complicações, mas tem várias facilidades. Nessa época aí realmente era pesado. Os caras mesmo montavam as caixas, montavam todo o equipamento de som.

PAS – Você ficava de olho?

E – Ah, eu ficava de olho, mas lembro vagamente. O baile propriamente dito eu nunca podia ver.

PAS – Nunca chegou a ver?

E – Eu espiei, mas minha mãe já me saracoteava e me botava pra dentro, porque o baile acontecia às 11 horas da noite, meia-noite. Quando a parada tava quente mesmo eu tinha que entrar, porque era criança, tinha 4 ou 5 anos de idade.

PAS – Isso era lá no Jardim Fonteles?

E – Não, isso era na Vila Zilda.

PAS – Que é zona norte também?

E – Ãhã, eu sempre morei na zona norte, sempre nesse pedaço ali, Vila Zilda, Furnas, Jardim Fontales, Cachoeira.

PAS – Se você vier de ônibus e metrô de lá, quanto tempo demora pra chegar no centro?

E – Cara, se eu sair lá do Cachoeira, que é o bairro mais distante, demoro uma hora, uma hora e meia pra chegar aqui.

PAS – Você mora lá ainda?

E – Não, hoje eu moro no Tucuruvi. Lá tem uma estação de metrô, pro centro é meia hora.

PAS – Tô fazendo um monte de pergunta no meio, você tá vendo, né?

E – Não, é isso mesmo. Mas foi esse lance uma das coisas que me deixou mais fascinado com música. Talvez tenha sido meu primeiro aprendizado também, de música negra, americana. Porque no samba a gente já tava infiltrado, a parada rolava religiosamente de sexta, sábado e domingo, e depois a semana inteira no seu rádio e na televisão. Tinha vários discos, a gente já tinha cultura de consumir samba, de ouvir, curtir, saber as letras. Tanto que a gente canta até hoje, a gente vai pro show cantando vários pagodes. E esse foi meu contato com a música de fora, com soul, funk, disco, essas coisas que tavam estourando naquela época ali.

E quando meu pai faleceu, se não me engano foi em 1991, a minha mãe tava sem emprego, então começou a rolar uma parada de vários cultos evangélicos na região onde a gente morava. Era uma época que não tinha tanto templo, então o pastor ia na casa das pessoas, e todo mundo se reunia tal dia na casa de um, tal dia na casa de outro. E como rolavam vários, foi rolando, foi rolando, e sempre depois do culto rolava um rango, tá ligado? Então a minha mãe começou a levar a gente pra bater um rango depois do culto. A gente colava nessa parada, começamos a colar com frequência na igreja evangélica, sem ser evangélico – rolava mais por causa do rango, tá ligado?

PAS – Você ou sua mãe também? Ela era evangélica?

E – Minha mãe também. Era mais pelo rango. A gente colava na macumba também, tá ligado? A gente ia (ri). Onde tivesse um espetinho pra nós filar boia a gente tava rezando.

PAS – Você era pequeno...

E – Tinha 6 anos.

PAS – E tem lembranças se gostava mais do culto ou da macumba? Ou se gostava dos dois, ou de nenhum?

E – Cara, eu achava a macumba mais divertida, tá ligado? Eu gostava dos batuques da parada. Eu achava o culto chato, mas tem uma parada que me influenciou mais do que a macumba... Acho que a parada rítmica da macumba foi fascinante, mas o lance do texto da igreja, a maneira que os pastores falavam, me marcou pra caralho. Esse lance de persuadir mesmo as pessoas, sabe? Foi uma parada que me marcou pra caramba, e foi uma coisa que me levou a começar a improvisar.

PAS – Deixa eu ver se entendi: não era o que o pastor falava, era o jeito que ele falava?

E – O jeito que ele falava, a maneira de (imposta a voz) acreditar na parada, de convencer as pessoas do que ele tava falando. E, por ter essa proximidade com isso, eles cantando aqueles hinos da igreja, foi que comecei a improvisar. Porque eu comecei a querer inventar meus próprios hinos de igreja, sabe? Eu não sabia que alguém escrevia, pra mim todo mundo sabia aquela letra não sei através de qual explicação, mas pra mim todo mundo sabia a letra, menos eu. E aí eu chegava em casa e inventava meus próprios hinos, saca? Eu catava e começava a cantar. Só que cada dia era um, porque eu não lembrava, era tudo de improviso. Foi assim que eu comecei a improvisar mesmo.

PAS – O que você falava, você lembra?

E – Ah, eu falava tipo (cantarola) “senhooor Jesuuuus”...

PAS – Falava de Deus mesmo?

E – Falava de Deus, fazia meus cultos falando de Deus, saca? As primeiras músicas que criei foram uns hinos de igreja, falando pras pessoas pararem de usar droga. Eu nem via as pessoas usando droga.

PAS – Nisso que idade você tinha?

E – Ah, uns 6, 7 anos. Aí minha mãe conheceu meu padrasto, e ele tinha um gravador da Sony. Aí fodeu, tá ligado?, porque eu catava a parada e dava "rec", ficava o dia inteiro gravando uns hinos de igreja. Não queria ir pra escola, queria ficar fazendo... Só que eu comecei a achar chata a parada, tá ligado? Tipo, só falava da mesma coisa.

PAS – Seu padrasto fazia o quê?

E – Meu padrasto era segurança de cemitério.

PAS – É?

E – Tanto que ele presenteava minha mãe com as flores (ri) de cemitério. A gente ficava zoando minha mãe, falava que qualquer hora ele ia trazer uma coroa, saca?, tipo “Roberto, jamais te esqueceremos”, pra entregar de presente pra ela.

PAS – Eles estão juntos até hoje?

E – Tão.

PAS – Cê tem irmãos?

E – Tenho, ele é meu irmão (aponta para o rapaz que veio junto com ele e está conosco na mesa, acompanhando a entrevista).

PAS – Ah, não sabia, o Evandro?

E – O Evandro é meu irmão mais novo, e tenho duas irmãs mais velhas, Kátia e Katiane.

PAS – Com C ou com K?

E – Com K.

PAS – Todos são filhos do seu pai mesmo?

E – Hum-rum. Que que eu tava falando, onde foi que parei?

PAS – Que você começou a achar chato o discurso do pastor...

E – Ah. Aí eu comecei a me ligar em outras paradas. Eu conhecia rap bem de longe, de escutar e saber que os caras curtiam rap. Mas eu nem sabia que esse era o nome da parada. A gente sabia que era outra coisa, porque tinha um pessoal que gostava de uma outra coisa, e começou a rolar. Rolava Pepeu, Racionais, N’dee Naldinho. E eu ouvia essas paradas, tocava nos bailes pra caralho.

PAS – Tocava rap também?

E – Tocava.

PAS – Nessa época você já tava frequentando baile então?

E – Não, não, não, não, não! Ainda sou criança, ainda apanho se sair.

PAS – Se eu não perguntar depois vou esquecer: com toda essa influência das religiões, do candomblé, dos evangélicos, você acredita em Deus?

E – Acredito em Deus.

PAS – Como é Deus pra você?

E – Cara, acho que Deus é uma força maior. Tem muito a ver com o estado de espírito da gente, sabe?

PAS – Mas você pertence a uma dessas religiões?

E – Não. Eu acredito em pedaços de várias religiões, saca?, mas não tenho um seguimento em especial. Eu gosto dos orixás...

PAS – São maravilhosos.

E –...Mas eu gosto de vários santos também.

PAS – Mas hoje você frequenta alguma coisa ainda?

E – Não, frequento a rua só. Continuo indo onde dá comida (ri.

PAS – Bom, você estava falando de quando começou a ouvir rap.

E – Então, rolava Pepeu, Racionais. Foi quando Racionais veio com... antes do “Holocausto Urbano”, “Pânico Zona Sul”, essas paradas. Não lembro exatamente o ano, mas foi o começo da parada que mudou, começaram a vir várias outras paradas na mesma pegada. Tinha MT Bronx, (faz voz bem grave) “porque o preconceito...”, Doctor MC’s... Tinha bastante coisa de rap nacional que tocava nos bailes, lembro que era bem equiparado. Tinha várias versões de música americana cantada em português. Tinha Black Juniors... E eu via os moleques que as mães deixavam sair nos bailes, no outro dia a gente ia jogar bola e eles ficavam falando dos sons, tá ligado? Os caras cantando as rimas, fazendo as dancinhas – porque tinha que saber a dancinha também, não era só as letras e as batidas, e eu ficava “orra, não sei as paradas”. Tinha que saber a coreografia, senão você passava a maior vergonha no baile, tá ligado? E eu não sabia nenhuma das três.

Aí, passado o tempo, acho que por volta de 1992, foi quando realmente o rap chegou, que eu soube, "isso aí é rap". Eu tinha exatamente 7 anos de idade. Foi quando saiu o “Holocausto Urbano”. Eu lembro até hoje do Edy Rock falando, como é?, “usando e abusando da liberdade de expressão”. Foi uma parada que marcou pra caralho, porque estourou de uma forma que tocava na rádio. Tocava Arlindo Cruz & Sombrinha e depois tocava “Fim-de-Semana no Parque”! O rap veio muito pesado naquela época, tocavam várias paradas. Muita coisa rolando, tinha Planet Hemp.

PAS – Você gostava também?

E – Planet eu lembro que tocava, mas conheci em 1997, quando comprei uma fita cassete que era “Os Cães Ladram, mas a Caravana Não Para”. Antes disso eu só queria saber dos pagodes, pra ver se eu conseguia chegar nas minas. Porque as minas gostavam de pagode, tá ligado? Mas também não ajudou muito, não...

PAS – Pergunto porque tem uma rixa São Paulo-Rio, de quem é daqui não gostar do rap de lá...

E – É, é real. Até hoje ainda é meio obscura essa parada. É um bagulho estranho, “não gosto de Marcelo D2”. Por que, meu? O cara te fez alguma coisa? O cara não tem uma explicação plausível pra não gostar de alguma coisa. E lá no Rio também tem uma parada meio esquisita, Racionais meio que é uma unanimidade por causa do lance da favela, não é que os caras gostam, eles respeitam. Mas de resto rola uma rixa, sim... “Ah, São Paulo, os caras de São Paulo são marrentos porque acham que o rap é só lá.”

PAS – E os do Rio acham que o samba é só lá...

E – É, os caras querem ser malandros pra caralho.

PAS – Tô achando legal que tô vendo que você é da primeira geração que cresceu com o som dos Racionais.

E – Total, peguei desde... De quando é o primeiro disco?

PAS – Não é 1990?

E – Não, não, é minha idade mesmo. O tempo que eu tenho de vida é o tempo que os caras têm de carreira, tá ligado? Foi bem de quando saiu aquela coletânea “Consciência Black”, foi o quê?, 1984, 1985... Foi realmente quando eu nasci. E, como eu estava perto dos caras que colavam na estação São Bento, eu acompanhei toda essa parada, os caras com aqueles chapeuzinhos africanos. Vi todas essas fases do rap.

PAS – E você já pegou as coisas melhores, porque muita criança da época cresceu diante da TV, com a Xuxa.

E – Eu cresci com a Xuxa também (ri) de certa maneira, tá ligado? Ela também tava presente, não vou dizer que não (ri).

PAS – Mas na música ela te influenciou menos que o Mano Brown...

E – Me influenciou menos. Eu vi televisão pra caralho também, mas, realmente, eu peguei bem essa fase. Mesmo quando eu não acompanhava esse lance de rock e rap, eu estava próximo dos caras que falavam disso. Eu estava pensando em outra parada, mas acabava vindo a saber do que tava acontecendo.

PAS – Como você se ligava nas letras do rap? Prestava atenção? Elas influenciavam na sua vida?

E – Não, eu comecei a cantar porque todo mundo cantava, tá ligado? Era uma parada que tipo, meu, se você não souber você não é porra nenhuma, tá ligado? Você não tem assunto, porque os caras só falavam nisso, “você viu a do Pepeu, ‘Nomes de Meninas’?, o bagulho é foda!” Você queria saber também pra estar junto dos caras, das minas. Tinha seis anos de idade, quer estar junto com as minas pra quê?, tá ligado (ri)? Mas cê quer estar junto das minas, e esse foi o motivo que me levou inicialmente. Eu passei a me ligar mesmo nas letras foi em 1997 também. Foi a primeira vez que saí da minha casa e comprei uma fita.

PAS – E é a época do “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais.

E – “Sobrevivendo no Inferno”, foi no lançamento do “Sobrevivendo no Inferno”. Eu comprei uma fita – comprei duas, aliás...

PAS – Fita cassete?

E – Fita cassete. Comprei na Vila Maria. Levava meu irmão pra escola de manhã, passei e vi aquelas duas fitas. Era R$ 2,50 a fita, aí eu tinha 5 contos, levei as duas. Racionais e Planet Hemp.

PAS – Ah, você comprou os dois no mesmo dia??

E – É, no mesmo dia. Então não tem como eu gostar de um e não gostar do outro, tá ligado? Eles chegaram juntos. Aí na feira lá perto de casa tinha uma fita que era o mesmo disco dos Racionais, só que na feira os camelôs eram muito pilantras, então eles trocavam a capa, tá ligado? Trocavam a capa e os nomes das músicas. Então o disco dos Racionais chamava “Sobrevivendo no Inferno”, e lá tinha tipo “Os Sobreviventes do Inferno”. Eu falava, caralho, Racionais já lançou outro! Você virava, os nomes das músicas eram outros, tipo “Qual Mentira Vou Acreditar” era “Tem Que Saber”. "Caralho, não conheço esse som, 'Tem Que Saber'!” Então comprei outra fita, tá ligado? Chegando em casa, era a mesma música (risos) E aí, pô, como você vai achar o camelô depois pra pedir seu dinheiro de volta? E era bom, porque eu tinha um gravador, eu desgravava a fita.

PAS – Te perguntei das letras porque, quando a gente é criança, não tem consciência dessas coisas, mas você cresceu ouvindo letras muito fortes. Eles falavam coisas que os de antes não tinham.

E – É, mas mesclou bem na minha cabeça, porque eu também cresci ouvindo pagode pra caralho. As duas paradas batiam bem forte. Eu tinha influência direta desses dois lados.

PAS – Você gostava de pagode? De que artistas?

E – Cara, nos anos 1990, todas essas paradas que estouraram, tipo Exaltasamba, Katinguelê, o que mais tinha?... Art Popular, Negritude Jr. Quando o Negritude gravou com os Racionais foi foda, mano, eu fiquei doido. Uma parada muito foda. Leci Brandão, Almir Guineto, Arlindo Cruz em carreira junto com Sombrinha ainda. Tinha coisa pra caralho. Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, várias dessas paradas que tocavam no rádio. Tocava muito no rádio isso. E aí eu passei escutando. E tem um outro lado também. Bezerra da Silva, por exemplo, tinha um lado de contestação que eu achava muito louco, mas eu não sabia dizer que eu curtia a música porque os caras falavam umas ideias que eu achava mais cabeça. Eu achava da hora, considerava diferenciado, mas não sabia por que eu gostava daquilo.

PAS – Quem era mais metido a besta achava que Martinho da Vila e Zeca Pagodinho eram legais, mas Negritude Jr. ou Exaltasamba, não.

E – É, total.

PAS – Você não fazia distinção?

E – Não, até hoje, faz parte da minha história essa parada. Eu vejo que tem algumas pessoas que se consideram cabeça pensante, "tal cara porque faz som mais rebuscado realmente merece respeito", e uma pessoa que fazia um outro tipo de música que era bem mais popular, uma parada que estourava e um número maior de pessoas consumia, tem que ser discriminado. Não, acho foda os dois. Cresci ouvindo, admiro e respeito os caras até hoje, tá ligado? Realmente faz parte de todo o meu aprendizado. Mas esse lance das letras mesmo, fui me ligar nessa época, 1997, quando parei, escutei e pensei: caralho!

PAS – Votou no Netinho pra vereador?

E – Não votei. Eu nem fui votar.

PAS – Não tinha idade?

E – Não, eu tinha idade, sim. Podia ter ido. Mas não fui, não, porque eu tava de mal com a política nesse dia. Pior que eu fiquei “vou, não vou, vou, não vou”, cheguei no dia, “pô, não vou, cara”. Sei lá, espero que ele faça umas paradas boas, sabe? Mas acho foda também, o cara é músico, tá ligado?, ele chega nas pessoas de uma outra maneira.

PAS – Mas ele sempre teve uma atuação política, a coisa de fazer uma TV negra...

E – É, no caso dele eu acho maneiro, porque ele tem essa procura, esse engajamento de ter essa preocupação, e sempre exteriorizou isso. Mas tem uns caras que acho foda. Acho bizarro esse Frank Aguiar (ri), eu olho o bagulho e dou risada, mano. E tem vários hoje. Todos caras que foram esquecidos, se você procurar, estão em algum partido. Tipo, meu, que porra é essa, é aposentadoria dos músicos isso aí?

PAS – Seguindo na história, quando você foi oficialmente num baile pela primeira vez, e aí não tinha mais bronca da mãe, podia ir? Você lembra?

E – Cara... Foi uma parada no Brás, uma festa de escola. Fui escondido ainda, porque teria bronca da mãe. Teria bronca da mãe até os 18 anos, se eu deixasse.

PAS – Como é o nome da sua mãe?

E – Jacira. (Um morador de rua interrompe, pede alguma ajuda, e leva umas batatas fritas que Leandro lhe oferece) Isso foi acho que em 1999, acho. Mas depois também não curti muito ir no baile. Eu tinha maior magia de criança, acho que eu gostava por não ter ido, sabe?

PAS – Porque era proibido...

E – Aí, quando eu fui na parada, achei meio esquisito, porque também fui num baile que não era a minha cara, tá ligado? Fui num bagulho que tocava umas músicas eletrônicas... Primeira vez que fui era uma festa meio anos 1980, anos 1970, tinha vários malucos fantasiados.

PAS – Não era de música black então?

E – Não, cara. Até tocou um James Brown, alguma coisa assim, mas não era. Ficou tocando bem uns disco assim, sabe? E aí tinha vários gays no bagulho, eu falei “mano, que porra que eu tô fazendo aqui, tá ligado?”.

PAS – Ó, preconceito, olha lá, hein?!

E – Não, porque cheguei, cê é moleque assim, tá ligado?... Fui porque era com minha irmã, amigos da minha irmã... E é um conselho que dou pras pessoas levarem pra vida, não sai com os amigos da irmã. E aí chega lá era o maior rolê esquisito, eu me senti esquisito. Não que a parada em si seria esquisita, mas eu me senti muito deslocado, tá ligado? E aí acabei, tipo, que essa foi minha primeira experiência de ir pra um baile sozinho. Baile de rap mesmo foi depois, um tempo depois, tipo quase agora. Acho que a primeira vez realmente que eu fui foi 2003, 2004.

PAS – Mas enquanto isso, até chegar aí, você não estava tão ligado em música?

E – Tava, mas aconteceram várias coisas. A música realmente era uma parada que eu só ouvia, eu tinha parado já de fazer minhas fitinhas. Eu gostava de escrever uns textos, sabe? Queria fazer história em quadrinhos, queria trabalhar com isso. Eu desenhava, aprendi a desenhar, porque ficava muito vendo televisão, então eu acabei aprendendo a copiar os personagens. Eu tinha repetido de ano na escola, porque eu cabulava pra caralho, tá ligado? E aí a professora viu que eu curtia umas histórias em quadrinhos, então ela passou a me dar todas as lições em forma de história em quadrinhos, tá ligado?

PAS – Que legal, pra você especialmente?

E – Pra mim especialmente. E aí eu pirei. Ela organizou um passeio da escola pra Editora Abril, tá ligado?, eu fui na Editora Abril...

PAS – Era uma escola pública?

E – Era.

PAS – Legal, falam tão mal da escola pública...

E – Então, e foi a melhor escola que estudei, tá ligado? Foi foda, uma das paradas que mudaram minha vida, como eu via o mundo, nessa época que estava viciado em quadrinhos, querendo trampar com a parada, eu ter ido na editora Abril. Porque cheguei lá, pude ver os caras desenhando, ganhei uns scat books dos caras que guardo até hoje. Ganhei várias revistas, vi várias revistas, depois não queria ir embora. Voltei quase chorando, tipo (faz voz infantil) “ah, queria ficar lá pra sempre”. E aí a professora passou a me dar todas as lições, e eu comecei a fazer vários fanzines. Só que fazia pra mim, fazia minhas histórias e tal. Isso aí foi o que me tirou de ficar na rua e querer ir pros bailes, na fase que todo mundo tava tipo “ah, vai ter festa”. Tinha as quermesses de bairro, que você ia uma vez ou outra, isso aí era 1997, mas eu não considero o baile mesmo. Eram quermesses de quebrada, em que tocava um som, tinha o DJ. Mas eu também não tava nessa vibe, eu queria sair, mas eu também já queria voltar, porque tava com umas ideias, queria escrever aquela parada senão ia perder aquelas ideias. E aí voltava a milhão pra casa pra continuar desenhando. Fiquei tipo anos nesse ritm, quase até me formar, sabe?

PAS – Cê se formou em...?

E – Me formei em 2004.

PAS – No quê? Está falando da escola?

E – Da escola, do ensino médio.

PAS – Estudou até quando? Foi pra faculdade?

E – Eu comecei a fazer um curso técnico de design. Na real, cheguei a terminar, numa escola que chama Arte São Paulo. Terminei. Mas nos últimos meses eu tava bem ausente, porque já estavam começando a rolar várias paradas de lugar pra eu ir cantar. Já tava o auge das batalhas de freestyle pra mim, todo mundo querendo que eu estivesse num lugar. Acabei indo mais pra esse lado, foi bem o momento que dividiu. Eu desenhava e fazia umas rimas.

PAS – Mas então tua profissão de fato é designer?

E – Sim, eu trabalhei de ilustrador.

PAS – Não trabalha mais?

E – Não, hoje não trabalho mais, mas trabalhei já. Já fiz um livro infantil, chamado “No Reino de Lorenzo”.

PAS – Você sozinho?

E – Não, não, eu só ilustrei.

PAS – De quem é?

E – De uma escritora que chama Leonor Cordeiro. Aconteceu uma parada muito louca. Rolou um concurso da Secretaria de Estado da Cultura, chamado Geração Cultura, não lembro se em 2000 ou 2001. Lembro que eu tava na oitava série. E eu era o maior capeta na escola, tá ligado? Aí rolou a inscrição, eu me inscrevi, fiz uma história em quadrinhos sobre rap. Mas desacreditadão, pensando “ah, nem fodendo que os caras vão dar um prêmio pra uma história em quadrinhos que fala sobre rap”. Pensei, “vai ter vários caras de São Paulo inteira pra desenhar pra caralho, arregaçar e levar o prêmio”.

Passaram dois meses, a coordenadora da juventude ou alguma coisa assim foi na escola. Aí a coordenadora da escola foi na sala me buscar, perguntou quem era o Leandro, eu já pensei "ihh" (faz expressão de quem fez algo errado). A professora falou que era eu, “você ganhou”. Aí eu fiquei todo todo, “ah, ganhei essa porra”. Fui lá, eles publicaram minha revista em quadrinhos, fizeram acho que uns 10 mil exemplares, distribuíram numas casas de cultura. E o prêmio era viajar pra Recife de avião. Foi a primeira vez que eu viajei de avião. E foi uma parada muito louca, porque foi a primeira vez que eu realmente saí do meu bairro. Saí e fui longe, voltei com a cabeça a mil, "caralho, o mundo é muito grande! Não posso ficar aqui!".

PAS – Você está sendo literal? Não tinha nunca saído do seu bairro até então?

E – Uma vez eu tinha vindo até a Santa Cecília (bem onde estamos agora). Quando eu era criança eu fui viajar pra casa da minha avó no Paraná. Fiquei com minha avó nas férias, fiquei acho que um mês lá...

PAS – Qual cidade do Paraná?

E – Maringá.

PAS – É onde eu nasci!...

E – É mesmo? Caralho!

PAS – Sua avó mora lá?

E – Minha avó morava lá, eu tenho parente lá pra caramba. Às vezes a gente é parente e tudo (risos).

PAS – Meu sobrenome é Sanches...

E – O meu é Roque de Oliveira. Então. Mas aqui dentro de São Paulo, realmente, no máximo, no máximo, eu tinha ido até Santana.

PAS – Mas você já tinha viajado até Maringá, pra visitar sua avó.

E – Tinha ido pra Maringá.

PAS – E a próxima viagem foi pra Recife?

E – Foi, foi uma época em que eu tava realmente, tipo, “meu bairro é meu mundo”. Tava muito centrado lá.

PAS – Todo mundo é um pouco assim, mas a gente não se dá conta. Você pode morar em São Paulo e nunca sair dos mesmos lugares...

E – Lá em Cachoeira tem gente que é assim até hoje. Tem mano que não vai até Santana, os caras realmente não saem do bairro, não saem da quebrada por nada nessa vida, tá ligado? Eu achava que quem pegava metrô era playboy.

PAS – É mesmo?

E – Tá ligado? Os caras iam trabalhar de metrô, “vou trabalhar, tenho que pegar o metrô ali em Santana”, eu falava “pô, cê pega metrô pra trabalhar, mano?, cê tá rico, hein?”.

PAS – Você sentia algum tipo de medo de conhecer o resto do mundo?

E – Não, eu quis ir.

PAS – Porque aí você ganha um prêmio, fica feliz e vai, mas dá um medinho, não dá?

E – Na real deu um receio, tipo, estou indo pra um lugar que não conheço ninguém.

PAS – Foi sozinho?

E – Fui com minha avó. Minha mãe não quis ir porque tava trabalhando na época, não ia dar pra ela faltar. Então ela falou “leva tua avó”. Mas minha avó, também, é maior porra louca. Chegou lá, ela foi pra um lado e ela foi pra outro.

PAS – Sua avó mãe da sua mãe?

E – É.

PAS – Como ela chama?

E – Maria Aparecida.

PAS – É a mesma que é de Maringá?

E – É. Então, ela chegou, conheceu umas tiazinhas lá, ficou trocando ideia com as tiazinhas. E eu, também, fiquei sozinho no rolê.

PAS – Você conheceu o mar nessa ocasião, imagino.

E – É. Foi a primeira vez. Foi foda.

PAS – Ou seja, as histórias em quadrinhos te proporcionaram bastante coisa...

E – Pô, várias coisas, cara. Até a própria maneira como escrevo rap hoje, sabe? Se eu gosto de falar, tentar construir uma imagem da coisa na cabeça das pessoas, é porque tem essa linguagem aí. Eu acho bem próximo da maneira que os caras escrevem em cinema.

PAS – E lá no Nordeste tem o repente, parente do rap...

E – Então! Fui lá, vi a parada, que foda, tá ligado? Catei um livro com a história do Lampião, catei CD... Lá tem os caras na rua, com violão e pandeiro, cantando a parada. Voltei, “mano, que bagulho foda”, até procurei CD. Mas você não acha com facilidade aqui. Acha Caju & Castanha, que tinha contrato com gravadora. Mas uma variedade legal pra poder pesquisar você não acha, tinha que procurar na internet. Mas nisso aí eu nem sabia da existência da internet.

PAS – Já que tamos falando em várias primeiras vezes, quando foi que você conheceu a internet?

E – Conheci a internet em 2003, 2004.

PAS – E como foi?

E – Cara, eu fui no Centro Cultural do Sesi, tinha uma gibiteca lá, eu ia todo final de semana.

PAS – Onde é?

E – Na Paulista, no 1313 da Paulista.

PAS – Ah, nessa época você já vinha pra Paulista? Já tava frequentando?

E – Depois que eu voltei de Recife, mano, eu queria ver o mundo mesmo (ri), eu queria conhecer a parada inteira, tá ligado? Arrumei um emprego de artesão. Desenhava, fazia meus rabiscos, escrevia... Nessa época, como eu já conhecia uns caras que faziam rap e faziam grafites, foi bem quando entrei no ensino médio. Aí comecei a ir com os caras pintar uns muros, fazer uns grafites. Dançava break junto com os caras. Aí escrevia minhas rimas, mas tudo isso eu deixava guardado pra mim, não mostrava.

PAS – Fazia só grafite, ou pixação também?

E – Não, só grafite.

PAS – Pixação também é legal...

E – Saí pra fazer umas pixações, mas eu rodei. Falei “puta, não vou fazer essa porra mais, não”.

PAS – Logo na primeira vez?

E – Não, não, foi uma das primeiras. Saí, fiz vários rolês com os caras, mas bem numa vez que eu tava sozinho, puta, tava com giz de cera, tá ligado? Aí catei, escrevi meu nome com giz de cera na placa de trânsito. Quando desci, a viatura tava do lado. Aí fui andando assim (faz cara de "não tenho nada com isso")... Tinha uma policial feminina, ela falou (simula voz brava): “Encosta!”. Aí saí andando, fingi que não era comigo, e ela: “Encosta!”. Vieram vindo com a viatura do lado, não encostei, fingi que não era comigo, eles jogaram a viatura em cima da calçada, a mina já desceu com a arma, pôs a arma no meu rosto. Eu disse “puta, vou morrer porque escrevi na parede, mano?”. Aí os caras falaram que eu ia preso, que eu ia pra Febem, que minha mãe ia ter que pagar cesta básica... E aí o policial falou assim, me revistando: “Cê tá armado?”. Falei: “Não tô, não, mano”. Fui chamar ele de mano, me deu uma muqueta nas minhas costas, puta, que bosta. Ficou doendo, aquela porra doeu dias.

PAS – Mas não chegou a ir pra cadeia?

E – Não, se eu fosse pra cadeia eu tava fodido.

PAS – Foi só um susto...

E – Um susto violento. Foi tipo um trauma. É um bagulho bizarro, não tem como a sua mãe saber que cê apanhou de um policial, tá ligado? Não tinha nenhuma marca física, mas era muito louco, porque eu ficava em casa, ficava tipo “caralho, minha mãe vai descobrir que eu apanhei de um policial!”, tá ligado? Mas nunca soube. Vai saber agora se você escrever (ri).

PAS – Acho que não vai caber, não vai ser uma matéria tão grande... Mas depois vou botar no meu blog, tudo que você tá falando (risos)...

E – Beleza. Minha mãe não acompanha internet, então pode botar. É muito louca essa relação da minha mãe, e de polícia. Uma vez ela saiu pra trabalhar de empregada, ela ganhava tipo R$ 30, tá ligado? Aí eu e meu irmão começamos a nos envolver com uns molequinhos tranqueira mesmo, que saíam pra roubar mercado, aí a gente começou a ir roubar mercado junto com os moleques, tá ligado? E aí, man, um dia todo mundo correu e só eu rodei. Tá ligado? O policial falou assim pra mim: “Cê tá fodido, seu filho da puta, cê vai pra Febem hoje”. Catou o rádio e chamou a viatura. E a parada tinha uma dimensão tão grande na minha cabeça, o medo da minha mãe me bater, que eu pensei assim: “Mano, ir pra cadeia é tranquilo, mas se a minha mãe descobrir eu tô fodido”. Mas aí no final das contas o moleque voltou, eles descolaram uma grana e pagaram o que eu tinha pego.

PAS – Os seus colegas?

E – É, pro policial. Aí o cara liberou a gente, era o segurança do mercado. E aí foi foda, mas foi isso aí basicamente as minhas...

PAS –...Suas incursões com a polícia...

E –...As minhas incursões, todas as minhas relações com a polícia.

PAS – Tem uma parte da sociedade que acha que pixação é vandalismo. Na minha opinião é superlegal...

E – Cara, acho uma manifestação daqui. Acho uma parada natural até. Sei lá, o homem escreve na parede há milênios, tá ligado? Acho que não tem como você controlar isso aí. Nem dizer que é arte ou qualquer coisa que seja. É uma expressão das pessoas, sabe?

PAS – Mas o cara que pixa corre muito risco, do que aconteceu com você pra muito pior.

E – Pra caralho, tem várias histórias de vários camaradas. Tem mano que morreu de cair do prédio, e de os caras arrumar treta com outros pixadores, sair no soco e ser espancados. Tem várias histórias aí. Mas, graças a Deus, comigo não aconteceu nada, nenhuma coisa desse tipo.

PAS – Eu sempre acho que a pixação é uma língua que só quem escreve entende, e que fala um monte de coisa que o resto da cidade não consegue compreender. Cê sabe essa língua? Não sei se estou falando bobagem...

E – Sei lá, eu acho foda pela atitude dos caras. Mano, o cara quer escrever lá em cima, ele sobe lá e escreve, tá ligado? Mas acho foda que é uma parada muito egocêntrica, tá ligado? O cara vai lá e escreve, tipo, “José” (risos). Respeito pra caralho, acho foda, pela disposição dos caras. E vários traços eu gosto, por curtir desenhar. Olho a parada e falo, "mano, é muito perfeito". Tem caras que tem a tipografia muito foda.

PAS – Quando eu vim pra São Paulo de Maringá, com 20 e poucos anos, a coisa que mais me impressionava era o mundo de pixação que tinha aqui. Era o que eu achava mais estranho, mais diferente...

E – Puta, os gringos vêm pra cá, eles querem morrer. Tem uns caras que tão na Europa expondo...

PAS – Pixação?

E – Pixação, pixo mesmo. Porque na gringa não tem, né? Na gringa é grafite só. Aqui, não. Aqui tem esse lance das letras retonas. No Rio também não tem, só São Paulo tem essa parada. No Rio são aquelas tags mais esquisitas, sempre que vou pra lá vejo, parecem umas moscas gigantes as letras que os caras fazem. Aqui, não, aqui o lance é mais, como posso dizer, tem mais o lance do ego mesmo, dos caras escreverem o nome deles, o nome da crew deles, da galera deles. E é bem retão.

PAS – Tem uns que usam uns discursos políticos também...

E – Tem também, mas é bem pouco.

PAS - ...Vão pixar a casa do Maluf...

E - Total, mas não é o cerne da coisa mesmo. Os moleques que vivem mesmo essa parada de pixação é o lance do nome mesmo, de ter o nome escrito em tal lugar.

PAS – E grafite, você fez bastante?

E – Fiz, grafite eu fiz pra caralho.

PAS – Onde?

E – Pela zona Norte mesmo, eu não tinha o hábito de sair de lá. Mesmo depois de voltar de Recife eu saía no final de semana. Depois que arrumei um trampo, aí eu tinha grana pra pegar ônibus, saca? Só que não tinha esse lance de bilhete único, de poder pegar vários busão e só pagar o primeiro. Então eu tinha que fazer maior rolê, eu saía do Cachoeira até o Tucuruvi, onde tinha metrô. Andava tipo 40 minutos.

PAS – A pé?

E – É, e de lá eu pegava o metrô e ia até a Paulista. E na Paulista eu ficava a tarde inteira lendo gibi, revista. Ficava vendo aquela “Rolling Stone” gringa, sabe? E foi onde eu acessei a internet também.

PAS – Ah, é, era isso que eu tinha perguntado.

E – Eu metia a cara lá, tinha uns computadores, tinha que dar o RG. Coloquei lá e fiquei mexendo na parada sem saber, tá ligado? Foi quando aprendi realmente a mexer, aprendi fuçando. Não que hoje eu saiba muita coisa...

PAS – Mas o computador é importante pra você fazer música, não é? Não é nele que você faz?

E – Hoje eu não faço mais, eu só escrevo. Eu tinha uma fase tipo “não, vou produzir”, teve uma fase que vários moleques da minha geração entraram nessa, “sou beat maker, produtor, MC”. E aí achei que se eu fizesse tudo isso ia fazer tudo mais ou menos, tá ligado? Graças a Deus cheguei nessa consciência. E aí, como conheço uns caras bons, prefiro fechar uma parceria com os caras.

PAS – Quer dizer, você escreve e eles produzem?

E – Eu escrevo e os caras produzem.

PAS – Na verdade você tem parceiros pra fazer música?

PAS – Como foi feito o mixtape (Emicida circula por aí uma gravação artesanal, com 25 raps, chamada "Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe...)?



E – Então, a mixtape é o melhor exemplo. Eu liguei pra todos os meus camaradas que faziam base, "vamo aí!". Hoje eu tenho os equipamentos, mas tão guardados em casa, porque acabei de me mudar também, tá tudo encaixotado. Mas tenho meu MPC. Durante anos foi meu sonho, porque vi uma vez numa entrevista o Zé Gonzales falando que se você queria fazer rap era legal ter um MPC, um teclado. Aquilo entrou na minha cabeça de tal forma que eu tinha que arrumar meu MPC, tá ligado? E aí eu arrumei um MPC, mano!

PAS – Comprou?

E – Comprei um MPC. Fui trabalhar de estagiário num estúdio em 2004, e chegando lá tinha um MPC. Trabalhava lá e ficava, “meu, que foda, não acredito, um MPC”. Ficava namorando a parada. E aí o mano falou que ia vender ela. Falei “pô, então eu vou comprar”. E eu não tinha um centavo, tá ligado? Só que ele é sangue bom pra caralho, é o tecladista do Almir Sater, Luiz Lopes. Ele vendeu pra mim baratíssimo e parcelou em tipo 800 milhões de vezes. E foi minha primeira MPC, tenho até hoje. E aí por ter todo aquele estereótipo do rap, de se samplear as paradas... Sempre via nos filmes os caras catando um teco do vinil e passando pro equipamento... Eu tinha o toca-discos do meu padrasto, o MPC, o mixer, só usava isso.

PAS – O tecladista do Almir Sater se tocou que você tinha alguma coisa e facilitou pra você?

E – Total, pra caralho!

PAS – Ajudou a investir num cara do rap...

E - Pra caralho! E várias ideias, apresentou pra caralho, foi um dos meus mestres, de várias conversas. Ele sempre tava corridão por causa de viagem, mas sempre que a gente trocava uma ideia ele dava várias luzes. Me passava uns contatos de uns caras, “se você um dia for pra tal lugar, fala com tal pessoa, essa pessoa é legal pra caralho e tem a cabeça aberta pra entender sua música”, tá ligado? E realmente é assim, vou pros lugares e falo com algumas pessoas que ele me falou.

PAS – E essa dívida você quitou, ou tá pagando ainda?

E – Do MPC? Paguei, graças a Deus, mas a dívida de gratidão não vou poder pagar nunca.

PAS – Paga de outro jeito, falando dele na entrevista, por exemplo.

E – Ah, claro. Tomara que ele veja.

PAS – Onde a gente tava? Nem sei se foi você que fez, mas na versão da mixtape que baixei da internet pra cada música tem o nome do produtor - então é por isso, porque o produtor é praticamente um parceiro da música?

E – Sim, é. O Felipe Vassão, com quem trabalho com mais frequência, a gente fechou uma parada mais ou menos dessa forma. O que gosto de fazer e estou centrado em fazer no momento é minhas rimas, deixar elas o mais redondinhas possível. E é legal pegar alguém que seja tão centrado no lance de produzir as bases como eu sou centrado em produzir minhas rimas. E aí a gente fecha uma parceria, tá ligado? É nossa a música, não é uma canção minha na qual eu comprei a batida de alguém. Não, é uma música nossa.

PAS – Aquela que tem a música do Dorival Caymmi, quem colocou foi o produtor?

E – Não, essa é minha. Essa fui eu que fiz. Porque escuto Dorival pra caralho. Eu queria, como posso dizer, homenagear mesmo, sabe? Nem que seja com um samplerzinho pequeno, alguma coisa assim. Por ser minha primeira mixtape, tinha que estar presente, porque eu fazia várias alusões ao trampo desses caras nas minhas rimas. Então fazer o cara ser lembrado dentro da minha música é uma parada bem importante pra mim.

PAS – O que mais tem de sampler de música brasileira nas músicas? Se bem que Caymmi não é um sampler, é uma moça cantando.

E – Não, não é um sampler. (o irmão, que atendeu para ele o celular, volta dizendo que era alguém do Balneário Camboriú.) A minha agenda tá corrida. Tá bom pra caramba, a MTV e essas paradas deram um gás legal. Já tava vindo numa fase boa, mas acabou engrenando.

PAS – Deixa eu voltar um pouco atrás: como começa a sua ligação com o freestyle, as batalhas?

E – De brincadeira. Saí pra grafitar com os caras, e a gente ficava tipo um zoando o outro, “ah, seu cabelo é de tal maneira, cê só fala besteira”. Ficava brincando de fazer rima. Aí tinha um moleque na escola que já sabia mesmo fazer as rimas, que era o Marcão. Ele sabia fazer freestyle, e eu ficava batalhando com ele mesmo. Passou-se o tempo, eu ficava treinando sozinho em casa também, quando aprendi essa parada do freestyle. Por ter todo o lance de improvisar, de ter feito o bagulho da igreja lá, eu já sabia mais ou menos criar as minhas músicas. Eu foquei muito nisso, tá ligado? Entrei nesse lance do freestyle e comecei a treinar exaustivamente. E por escrever bastante, quando você tem um leque maior de palavras, obviamente você tem mais opções de rima que qualquer outra pessoa. Então isso deu uma puta facilidade pra mim. Só que eu não mostrava isso pras pessoas. Pras pessoas eu tinha chegado ali agora e eu era um novo, só que eu tava tipo de anos escrevendo, saca?

PAS – Cê lê bastante?

E – Leio, cara, sou fã do Will Eisner, tá ligado? Acho que o cara tem uma ótica muito foda sobre a cidade. Acho que os livros dele são tipo um rap, sabe? Um rap que eu gostaria de ter escrito. A maneira como ele olha e retrata uns detalhezinhos, umas coisas que você vê, mas não se atenta tanto àquilo, porque sua cabeça tá preocupada com um milhão de outras coisas dentro da cidade. Às vezes você vê aquilo e se pergunta, tipo, “pô, as pessoas não dão atenção pra isso”. E é muito louco você ver isso inserido dentro de uma história, tipo, não fui só eu que vi isso! Quantos milhões de pessoas veem a mesma coisa e deixam passar batido porque acreditam que só elas estão vendo aquilo? O Weisner consegue colocar isso muito bem nos quadrinhos. Eu basicamente leio quadrinhos. Leio outras coisas também, leio algumas paradas de filosofia, mas é muito pouco. Acredito muito num livro que chama “Hagakure”, que é o código do samurai.

PAS – Como escreve?

E – Agá, á, gê, á, cá, u, erre, ê.

PAS – O que é?

E – É o código do samurai.

PAS – Japonês?

E – É, uma parada japonesa. Tenho tatuado aqui (mostra). É o símbolo do "Hagakure". É uma parada muito forte, esse lance de determinação, de você ir atrás do que quer. Você saber respeitar o tempo, saber que você não é eterno aqui, mas que seu nome pode ser, sabe? Que você é um grão de areia dentro disso tudo. O livro fala bem forte de coisas com que eu concordo plenamente. Fala muito sobre o que acredito do que é a vida, por isso me identifiquei tanto. Fora isso leio besteira, livro de piadas. Mas tenho o hábito de ler bastante mesmo. Nem tudo presta, mas eu tenho o hábito. Porque minha mãe lê pra caramba.

PAS – Ia perguntar antes e acabei esquecendo: quando foi fazer grafite de rua você teve problema como aqueles da pixação?

E – Não.

PAS – Aí os policiais não incomodam?

E – Na real a gente nunca teve problema nem de parar uma viatura. Nunca parou uma viatura quando a gente tava grafitando. Sei lá, acho que porque a gente pegava uns horários bizarros, tipo meio-dia, saca? Às vezes nem era autorizado, mas a polícia pensava tipo “meu, esse maluco é doido se tá fazendo essa parada nesse horário sem ser autorizado” (ri).

PAS – Isso mostra que o grafite é mais aceito, não?

E – Sim. Aceitam bem mais.

PAS – Também é mais bonito esteticamente...

E – É, visualmente as pessoas ficam maravilhadas, porque o grafite, mesmo que a pessoa não entenda, é uma parada colorida, cheia de desenhinho, “ah, que legal”. Mas é uma parada, como posso dizer?, tão rústica quanto o pixo. É uma invasão. É você marcar o patrimônio privado, tá ligado?, igual gado.

PAS – Às vezes torna ele mais bonito do que era...

E – Total. E o pixo também faz isso. Tem vários lugares que se não fossem pixados você ia olhar, esse lugar sem pixo não funciona. Cê ia ter que pagar alguém pra pixar.

PAS – Voltando ao freestyle, começou de brincadeira, e depois?

E – Aí foi, foi bem na fase que saí do meu trabalho com artesanato - fazia umas cestinhas de vime -, porque me chamaram pra ser estagiário no estúdio.

PAS – Foi quando você comprou o MPC.

E – É. Fui pra lá, e tinha um amigo meu, Bruno Pompeu, ele conhecia uns caras de uma rádio comunitária em Santana do Parnaíba. Esses caras tinham um programa que chamava “Rap É Nóis”. Um dia ele falou pros caras só de sacanagem, “meu, cês têm um programa de rap e não tem ninguém do rap aí”. Aí os caras, “não, pode crer, a gente não conhece ninguém”. Aí o cara, “não, tem um cara aqui que é foda”. Aí foi e eles me chamaram pra ir lá.

PAS – Santana do Parnaíba fica a que distância daqui?

E – É aqui do lado, perto de Carapicuíba, Barueri. É ali em Alphaville, sabe?, praqueles lados. Aí eu fui numa parada. Fui marrento, os caras querem que eu vá lá fazer um freestyle, chegando lá tava o Kamau!, tá ligado? O Kamau já era monstrão, eu já conhecia as paradas dele. Cheguei lá, falei, “puta que pariu, é o Kamau, fodeu”. Aí os caras, “esse aí é o Kamau, cê vai batalhar com ele”. Aí essa foi (ri) tipo a primeira vez. Falei “caralho, fodeu”. A gente batalhou e tal, foi legal pra caralho.

PAS – Você se saiu bem?

E – Eu me saí bem. Pro momento, pra tensão que o momento me ofereceu eu saí bem pra caralha. Foi foda, muito bom. Foi o dia que conheci o Kamau e ele disse “meu, cola na Galeria Olido, tem um encontro lá, tem uma banda que toca uns instrumentais e eu vou ficar fazendo um freestyle”. Aí eu saía do estúdio umas 7 horas da noite e ia correndo pra Galeria Olido. Começava às 7 e ficava até às 9, comecei a conhecer a galera do freestyle, toda a cena do improviso. Soube onde tinha as baladas, mas como eu estudava de manhã e trampava à tarde eu saía à noite pouquíssimas vezes, então acabava nem indo pra essas baladas onde rolava batalha de freestyle.

PAS – Vi algumas gravações suas de freestyle no YouTube, em geral é feito onde? É ali na Galeria Olido?

E – Não, hoje tem no Brasil todo, sabe? O que aconteceu? No começo de 2006 a Galeria Olido tinha parado, não tava rolando nada, e aí eu entrei no Orkut, tinha um recado pra mim falando “você que é MC vai ter uma batalha em frente ao metrô Santa Cruz em tal horário, 8 horas da noite”. Falei "porra, vou colar lá então, vou batalhar". Cheguei lá às 6 da tarde, fui o primeiro cara a chegar na batalha, tá ligado? No primeiro dia da primeira batalha eu fui o primeiro cara. E aí os caras colaram lá, colaram umas seis pessoas. O encontro de freestyle tinha seis pessoas (ri), tá ligado?

PAS – Mas fizeram?

E – A gente fez, e eu ganhei a primeira edição. Aí fui ganhando, tá ligado, fui ganhando. Foi colando mais gente, a parada foi ganhando uma proporção que a polícia metropolitana pediu pra parar.

PAS – Isso na estação Santa Cruz?

E – Na estação Santa Cruz do metrô. Porque estava obstruindo a passagem do metrô já.

PAS – Cê falou “pediu pra parar”?

E – Pediu.

PAS – Quer dizer, a polícia pediu, não mandou?

E – É, não, no primeiro momento ela pediu.

PAS – Tratavam vocês bem, então?

E – Não, então, porque os caras entenderam que era uma manifestação pacífica. Ninguém tava depredando nada. Era uma rapaziada que se encontrava ali e ficava fazendo freestyle, ficava rimando ali até umas 10, 11 da noite e depois ia embora. Então os caras subiram e pediram, porque realmente as pessoas que não conseguiam entrar na estação desciam lá e reclamavam pra eles. Eles ouviam um montão do chefe deles. subiram e falaram pra gente.

PAS – É legal o que você está contando, não saíram batendo em ninguém.

E – Não, nunca rolou essa parada na Santa Cruz. Os caras que foram falar com a gente foram bem cabeça aberta, “não, tô ligado, até curto rap, mas é que aí molha pra nós, né chefão?”. Aí a gente transferiu pro outro lado da rua, mas não deu, cara. Só mudou o lado da rua, tá ligado? Não dava, porque era muita gente. Aí foi pro terminal de ônibus, foi transferido ali. Hoje continua ali no metrô, todo sábado a rapaziada tá lá.

PAS – Continua lá mesmo? Até hoje tem?

E – Umas 8 horas da noite. Hoje diminuiu...

PAS – Cê vai também?

E – Ah, faz muito tempo que não vou, porque faz muito tempo que eu não tenho um sábado - graças a Deus, louvado seja Deus que não tenho um sábado. Morro de vontade de ir, todas as vezes que tô aqui, a última vez que tava aqui e não tinha show eu fui. Mas sei quem são os caras que tão lá ainda, sei quem são os moleques bons que tão fazendo a parada acontecer lá hoje. Sempre procuro estar próximo disso, porque eu me considero parte da história disso, sabe? Dessa geração eu sou o cara que até esse momento foi mais longe. Claro que vão vir outros mais pra frente, mas até este presente momento, que saiu dali, nas mesmas situações que eles, eu sou o único cara.

E aí o que aconteceu? Começou a rolar a Rinha dos MCs na zona Sul, em Interlagos. O Criolo Doido me chamou. Na real teve uma edição especial em Diadema, eu fui lá e perdi. Perdi, fiquei em segundo.

PAS – Onde é essa Rinha dos MCs?

E – Em Interlagos.

PAS – Você foi em Diadema e perdeu.

E – Lá em Diadema eu perdi, perdi de um cara que chama Pirata, que mora lá em Interlagos. E aí ele era tipo figurinha carimbada da rinha de Interlagos. Os caras falaram “pô, mano, cê perdeu, mas cola lá em Interlagos, toda sexta rola a parada”. Falei “vou lá então, vou ganhar desse cara no bairro dele”. Fui lá e ganhei mesmo. Aí comecei a ir, e todas as vezes eu ganhei, 14 vezes seguidas.



[atenção, 444 mil visualizações desse vídeo, até o momento em que o peguei aqui...]

PAS – Tem briga entre os caras? Assistindo, parece que eles tão se odiando, mas é uma encenação, né?

E – Não, mas realmente é um lance tenso mesmo, porque é sério, tá ligado? Tem alguns caras que já batalhei que tenho uma relação boa pra caralho, que são meus amigos mesmo, a gente dá risada, tipo Rashid, Negra Rê. Naquele momento, realmente cê tá ali pra combater o outro, é vida ou morte ali. Mas tem uns caras que não conseguem assimilar dessa mesma maneira que a gente. Tem vários caras que me odeiam.

PAS – Odeiam, mas não passa disso – ninguém briga de verdade, ou briga?

E – Já, teve uma história engraçada, que foi meio tensa, mas foi engraçada. Uma vez a gente tava na Rinha e tinha um mano que acho que tinha acabado de sair da cadeia, saca? Ele tava com umas tatuagens de cadeia assim. Aí eu tava rimando com ele e zoei as tatuagens dele. Falei que ele tinha sido mãe de cela na cadeia, tá ligado? E aí ele ficou puto, mano. Ficou puto, desceu do palco e ficou me olhando feio, uma cara assim (faz semblante pesado). Tava eu e um camarada dele, ele chegou pro mano dele e falou (simula um sotaque bem pronunciado) “aí, Valtinho, pega as armas lá no mato, mano, vamo passar esse maluco agora”. É um bagulho que a gente dá risada até hoje.

PAS – Era só falatório...

E – Não, mas eles foram pegar as armas no mato, meu.

PAS – É? Nem era pra dar risada então.

E – Ainda não (ri). Rolou maior parada tensa, só que aí os caras que faziam a segurança da Rinha - que a gente mesmo fazia o baile - foram lá, “mano, cê vem aqui pra batalhar, é brincadeira, cê vai estragar o bagulho por causa de uma brincadeira?”. Levaram ele pro canto lá, não sei qual ideia que falaram pra ele, mas ele voltou sorrindo, me abraçou e falou assim (volta o sotaque): “É isso mesmo, moleque, é só brincadeira!” (ri).

PAS – Não teve violência então, não passou disso?

E – Não, não passou disso. Trombei ele faz pouco tempo até na rua, e ele (retoma o sotaque), “orra, se precisar de alguém pra fazer um beatbox, liga nós, demorou!”.

PAS – Ou seja, tem que ter um cuidado pra não ofender o adversário, então?

E – Não.

PAS – Não? Pode ofender?

E – Pode (risos), a gente até prefere. Meu, naquele momento ali a sua função é ilustrar pro público o quanto aquele cara que tá na tua frente é ridículo, tá ligado? E pra isso vale tudo mesmo, eu perco o amigo, mas não perco a rima.

PAS – Me fala alguma que você tenha desarmado, tenha deixado o cara desnorteado.

E – Cara, teve vários episódios. Teve uma que é bem famosa, uma que tem no YouTube, a batalha da Negra Rê. A intenção da rima é entrar na mente do outro cara de uma forma que você falou uma coisa que ele não vai conseguir pensar em nada pra te zoar. Ele vai ficar tentando te responder o que você falou, quando ele tinha que estar com a cabeça vazia pra tipo tentar zoar você pras pessoas. Você percebe que entrou na mente de alguém quando essa pessoa pega uma coisa que você fala, tipo “você tem a perna de saracura”, aí o maluco fica tipo “eu não tenho perna de saracura, perna de saracura quem tem é sua mãe”, começa a falar a mesma coisa. Aí ce vê, “ganhei!”. E com a Negra Rê aconteceu uma parada muito engraçada.



PAS – Tem batalha de homem com mulher?

E – Tem. Então, com ela foi bem engraçado, porque ela repetia muito uma frase que falava assim “vou te falar, cê é maior cabeçudo, vou te falar, não sei o quê”. Todas as frases da rima ela começava com “vou te falar”. Aí eu falei pra ela: “Vou te falar, vou te falar, vou te falar, não passa de frase, vou te ensinar outra frase”. Aí caiu o bagulho. Foi lá no Rio, no final da primeira etapa da Liga, tipo os caras (faz ruído de torcida comemorando). Ganhei a batalha nessa rima aí, porque ela realmente não esperava.

PAS – As ideias vêm na hora?

E – Na hora. Tua cabeça fica a mil, principalmente quando cê tá fazendo isso toda semana, e eu fazia quase todo dia. , Cê começa a olhar as pessoas e procurar uma característica tipo que seja engraçada mesmo, ou que você consiga passar pro público de uma forma engraçada. Fazer uma comparação esdrúxula, sabe?

PAS – Imagino que isso exercite o cérebro loucamente, porque você tem que estar falando e pensando ao mesmo tempo...

E – É muito bizarro, porque com o tempo seu cérebro começa a ficar meio dividido, sabe? Cê tá falando uma coisa e pensando em outra.

PAS – Cê consegue isso?

E – É, eu troco ideia com os caras, tipo com o Slim, os caras que fazem freestyle no mesmo ritmo que eu, e eles falam isso também, passam pela mesma coisa. Várias vezes eu tô cantando no palco e a minha cabeça tá em outro rolê.

PAS – É mesmo??

E – Tá ligado? Eu tô olhando assim e pensando, “pô, olha o chapéu desse maluco aqui do lado, esse cara tem coragem de sair assim”, e eu tô aqui...

PAS – Enquanto está no improviso...

E – É, ou improvisando ou cantando normal.

PAS – Não esquece a letra?

E – Não, fica no automático aqui, tá ligado? A minha cabeça tá pensando em outras coisas, tipo “meu, tomara que o DJ não esqueça de fazer nada”, “será que o cara tá prestando atenção aqui?”, “esse maluco do som tá conversando muito ali”. E aí isso aí fica assim, várias vezes cê tá conversando com alguém, mas a cabeça também tá tipo... quando cê começa a fazer duas coisas, pensando numa ideia aqui, “vou fazer uma música que vai falar de tal coisa”. É bem louco, quanto mais você faz mais você aprende a ter um lado que é tipo piloto automático, saca?

PAS – Mas é um piloto automático muito inteligente. Tem que pilotar dois aviões ao mesmo tempo.

E – Total, cê tem que estar ali, cê tá ali conversando com a pessoa.

PAS – Senão você se perde e o outro cara ganha.

E – Mas tem várias vezes que dá pane também (ri).

PAS – Isso é normal, né?

E – Você acaba falando uma parada e as pessoas ficam tipo “quê?”. Porque várias vezes você pensa numa ideia e conclui ela falando, sabe? Aí tipo as pessoas ficam “meu, que cê tá falando?”.

PAS – Lembra algum exemplo?

E – Ah, não me lembro agora exatamente, mas é como se a gente tivesse conversando aqui, e eu, “é isso, isso, isso, mas acho que o cara não devia ter ido com aquela boia amarela na piscina, não”...

PAS - Aí o público é que boia...

E – “Cara, que que cê tá falando, meu?”, é bem isso aí. Mas, ah, concluindo a ideia do freestyle. Comecei a ir na Rinha toda semana, religiosamente, toda sexta eu tava lá. Os caras tinham algum contato com o D2, foram fazer alguma parada com ele, e o D2 falou pra eles que tava rolando a Liga. Aí os caras chegaram em mim e falaram: “Mano, a sua cara é colar lá, porque, mano, lá é a maior do Brasil”. Porque, realmente, a Liga dos MCs é o maior torneio do Brasil, que acontece no Rio de Janeiro. E eu falava, “pô, até já ouvi falar dessa parada, mas não tenho grana pra ir lá”. Aí o Pedro, que é de um grupo de rap chamado Pentágono, falou: “Mano, se você quiser ir a gente vai, eu pago, chegando lá a gente fica na casa do Marechal, cê vai lá e batalha”. Falei “demorou, se eu ganhar então, quando eu ganhar, a gente racha no meio o prêmio”. Aí ele pagou as passagens, e fez um puta corre de produção, começou a conversar com umas lojas, essas lojas do centro aqui de roupa de rap. Falava pros cara, tipo um olheiro do futebol, “moleque é bom, se cê quer por um dinheiro nele põe agora que esse moleque vai estourar, hein?”. Aí os caras pagavam as passagens pra gente ir. Teve uns caras que apoiaram a gente algumas das vezes que a gente precisou ir. Tava rolando campeonato lá e aqui, a gente queria fazer os dois, a gente acabou indo e voltando, indo e voltando várias vezes do Rio.

PAS – E você venceu, e deu metade pro cara?

E – Venci, venci.

PAS – Os prêmios são em dinheiro?

E – Na real tinha R$ 1.000 em dinheiro, mas como lá no Rio tem muita batalha de freestyle, a gente ganhou bem mais que R$ 1.000. Tinha batalha que cê ganhava 150, 100, 200, 300. E, como eu tava envolvido em todas essas paradas, onde tinha batalha eu ia, porque a gente tinha que arrumar dinheiro pra ficar lá. Eu ia, ganhava e a gente dividia o dinheiro. Se ganhasse um par de tênis, dava um pé pra mim e um pé pra ele, tá ligado?

PAS – Isso chegou a acontecer de fato?

E – Não, não, ficou só o cadarço.

PAS – Isso já foi um freestyle seu (risos)... O que você faz quando está numa batalha dessa é parente do repente nordestino mesmo, não?

E – Pra caralho. Cara, tem um lado da minha cabeça que defende a ideia de que alguém veio aqui, viu isso, voltou pra lá e chamou de rap (ri). Porque é foda, mano, é muito foda. Tipo tem umas ideias que os caras falam, talvez seja também uma afinidade universal, da maneira como a cultura negra da África conversa com a daqui e de lá, e parece que elas tiveram algum contato. Mas é muito louco isso aí, porque o nome da parada... O nome dos gringos é rap, aqui é repente, tá ligado? As três primeiras letras são a mesma coisa. A parada é falada, tem várias métricas. A única coisa que deu pros gringos essa dimensão foi porque os caras têm uma noção de marketing melhor, tá ligado? Os caras sabem vender mais o peixe deles. Mas a parada daqui é muito foda.

PAS – A menos que eu esteja esquecendo algo, nunca existiu nos EUA antes do rap alguma coisa que fosse parecida com isso, né? E o repente já existia aqui...

E –...Há séculos, né? Vi um livro que diz que os caras trouxeram essa parada de Portugal. Lá fora rolava um lance de ser mestre de cerimônia, nos bailes da década de 1920 tinha os caras que subiam com uma banda e tinham que animar o povo. Gritavam “hare hare hare hô”, e o povo gritava “hare hare hare hô”. Tem até um documentário que fala sobre isso. Mas eu não conheço essa parada da música falada mesmo. Tem algumas coisas do Gil Scott-Heron, que era semelhante a isso, mas não era declaradamente. Agora o repente, o que é foda, é que ele é só isso, uma batida ali...

PAS – Dois caras se desafiando...

E – ...Dois caras se desafiando, ou um cara falando sobre alguma coisa... Durante um tempo foi o jornal dos caras isso aí. O cara ia falar o que tá acontecendo na cidade, ia pra outra e cantava o repente.

PAS – Mas é curioso, que é uma coisa ao mesmo tempo tão brasileira, mas o nome, freestyle, é importado lá de fora.

E – Isso é foda, porque acabou se tornando uma gíria, freestyle. É tipo brother, tá ligado? Pra gente acabou se tornando essa parada. Eu luto contra mim várias vezes pra falar mais "improviso" do que "freestyle". Mas várias vezes escapa freestyle mesmo, porque é bem comum, sabe?

PAS – Também fiquei pensando, quando fala “rinha”... Rinha é uma coisa de galos, e os galos saem muito machucados....

E – É, mas essa é a intenção do nome, né? Porque rola um confronto ali.

PAS – Na sua vida inteira, como você se relaciona com a questão da violência?

E – Você diz em todas as suas formas?

PAS – Sim, porque inclusive outro preconceito da sociedade é esse papo de que violenta é a periferia.

E – Cara, eu vi várias paradas, sabe? Já vi um cara morto na porta de casa. Já vi festa onde começa um tiroteio, dá várias merdas, tá ligado? Sempre tive bem próximo disso aí, mas mais por estar ali mesmo, acontecer o desentendimento. Às vezes os caras tão no boteco bebendo juntos e um se desentende com o outro, já puxa a faca. É uma parada que já vi, que não gostaria de ter visto, mas o meu pensamento com relação a isso é que as pessoas que são expostas a isso são marcadas pra sempre. Cê não vai esquecer, saca? Embora eu tenha visto tudo isso, eu vi várias coisas boas também, sabe?

Tem uma parada que eu sempre me pergunto, uma parada que sempre me apeguei e me apego ainda hoje. Quando vou dar uma olhada nos meus e-mails, essas coisas, tem maior galera que se identifica com as músicas e aí tem dois e-mails dos caras que falam “ah, cê se vendeu”. Aí eu falo, mano, vou responder esses 300 e-mails dessas pessoas que tão emocionadas, falando que o bagulho é a vida delas, ou vou me ater a esses caras? Mesma coisa na vida. Me perguntei, porra, eu vou despejar mais isso nas pessoas? Elas já são expostas a isso sem querer, e o lugar onde eu poderia fazer com que elas se sentissem melhor pra lutar contra isso até, que é a minha música, eu vou despejar mais uma face disso? Então eu opto por... Não escondo, sei que vi, vejo hoje, vou ver ainda várias coisas que vão ser desagradáveis. Só que acredito que as pessoas têm que saber discernir. Tá, tem várias merdas, mas, mano, você precisa ter frieza, olhar as coisas e falar: mano, não é só isso, tem coisas boas acontecendo, tá ligado? Tem pessoas boas no mundo.

PAS – Rola muito uma crítica de que o rap é violento. Uma parte da sociedade acha que o rap incita a violência. Mas por outro lado outra parte diz que isso justamente é o que muda o caminho, o cara tá falando, não tá praticando.

E – É, mas também é meio foda essa ideia, tá ligado? Porque os caras acham que todo mundo que rima se não estivesse rimando ia ser bandido (ri)?

PAS – É, os dois lados são esqusitos...

E – É, e o outro lado é esse de “é foda porque os caras tão enaltecendo a violência”. Mas é uma maneira que a gente acaba tendo que agir. Porque o rap é durão mesmo, ele se impõe mesmo na parada, eu sou assim, sou bruto mesmo, é bronco o bagulho. Eu ouço vários bagulhos dos caras negos velhos na parada, “mano, cê troca muita ideia, cê não tem que trocar tanta ideia”. Mas eu sou assim, tá ligado? Eu aprendi, vejo vários tipos de pessoas desde criança. Minha mãe trabalhava de empregada num bairro que fui estudar depois, eu ia lá e convivia com os playboys também, tá ligado? E vários deles eram sangue bom, tá ligado? Vários muito mais que os caras que moravam em barraco do lado da minha casa. Então eu sei que pessoas são pessoas, existem pessoas boas e pessoas ruins. O que eu não posso fazer é tipo “pô, fulano nasceu em Alphaville, então ele é um cuzão”, tá ligado? Se ele chegar aqui e puxar uma palha comigo eu vou falar isso, mas até então ele é um sangue bom em potencial.

PAS – Em geral nenhum dos dois lados conhece o outro muito bem, e fica o preconceito das duas partes.

E – Total, acaba criando essa parada, que é ruim pra caralho.

PAS – Não que cê esteja errado, porque a sociedade rica é muito injusta e muito cruel com a periferia.

E – Total. Mas ambos são fechados, não tem diálogo.

PAS – Sempre penso que quem é da periferia sabe muito mais sobre os caras daqui que o contrário. Sua mãe veio pra casa deles trabalhar, ela sabe muita coisa sobre eles que eles não sabem sobre ela...

E – Com certeza. Tem uma música do MV Bill que chama “Declaração de Guerra”, ele fala mais ou menos como se fosse um dia que a periferia se revoltasse e fosse pra tomar a parada mesmo dos boys. É muito louco se isso acontecesse realmente, porque a gente sabe tudo dos caras. Sabe onde eles vão, sabe o que eles gostam, sabe os caprichos dos caras, as vaidades deles. E eles não fazem ideia do que tá acontecendo na favela. Os caras acham que porque a gente tá na quebrada a gente tá moscando nesse lance de informação, de internet. Na quebrada tem três lanhouses, tá ligado?

PAS – É assim que você usa internet?

E – Não, não, eu tenho computador em casa faz uns anos já. Mas já usei pra caralho, eu era viciado em lanhouse. Precisava responder vários e-mails, até quatro anos atrás eu usava lanhouse freneticamente. Hoje eu tenho minha internet lá.

PAS – Ô, Leandro, eu fiquei perguntando sobre violência pra chegar numa outra coisa. É que na verdade quando ouvi falar de você eu achei seu codinome, Emicida, agressivo, bastante agressivo.

E – Pra caralho, né?

PAS – Citei pra chegar nisso, por que Emicida? Até sei por quê, mas não é um nome agressivo, assustador?

E – É, é um nome forte, mas as pessoas gostam disso aí, e eu gosto também, pra caramba. A primeira vez que fui na casa do (rapper carioca) Marechal o pai dele falou “como é o nome desse menino aí?”. O Marechal falou “esse é o Emicida”. O pai dele falou: “É o primeiro nome de rap que eu gosteim, ó que legal o nome dele”. Ele ficou um tempão assim, “Emicida, Emicida, rapaz, eu nunca ia ter pensado nisso”.

PAS – Não é inofensivo, é perturbador, né? Como apareceu?

E – Por causa das batalhas de freestyle.

PAS – Quem inventou foi você?

E – É, eu troquei o “o” pelo “e”, porque os caras ficavam tipo, (faz sotaque pronunciado), “pô, mano, matou ele, hein, mano? Acabou com a vida dele, hein mano, já era pra você, rapaz”. Aí os caras ficavam me chamando de assassino, “ê, mano, cê é maior assassino, cê é maior homicida”. Aí eu catei, homicida, homicida, homicida, mas eu mato só os MCs, então eu sou tipo o Emicida, tá ligado? (um vendedor de artesanato nos interrompe, fico constrangido de cabeça baixa, Evandro acaba comprando uma peça). Também eu nem tinha um nome, os caras me chamavam de Leandro. Aí chegou um momento que eu precisava de um nome.

PAS – O disco que você está gravando vai sair como Emicida?

E – É, porque esse aí é meu nome mesmo, agora ficou isso. Mas o que eu digo é que, antes de partir de cabeça mesmo pra parada, não tinha isso. Pessoal não me chama na rua desde criança (faz voz infantil), “ô, Emicida!”.

PAS – Último assunto: você é casado e tá pra ter um filho?

E – Uma filha.

PAS – Já tem nome?

E – Estela.

PAS – Você é casado há quanto tempo?

E – Três anos.

PAS – Casado de verdade?

E – (Risos) Ninguém casa mais, pessoal acha a igreja cafona agora.

PAS – Depois dá trabalho separar...

E – É (ri), tá ligado?

PAS – Primeira filha, primeiro filho?

E – É.

PAS – Tá assustado com isso?

E – Eu não assusto, man. Até me zoam, falam que eu sou uma máquina. Os caras da MTV ligam e falam que a gente tá indicado em três categorias, e eu digo (faz voz indiferente) “pode crer”. Mês passado a gente ia fazer um show com a Elza Soares, que acabou não rolando. Os caras falaram “ah, vai fazer show com a Elza Soares”...

PAS – “A gente” é você, Emicida?

E – É, digo a gente porque agora é nós tudo que tá indo, né? Antes era só eu na batalha, mas agora, como tem vários shows, tem uma equipe.

PAS – A Elza Soares conhece seu trabalho?

E – Não sei se ela conhece, man, é que uns amigos nossos têm uma banda chamada Sandália de Prata, eles iam tocar com ela e convidaram a gente pra participar desse show também. E aí os caras, “então, nós e a Elza e você, cara”, e eu (voz indiferente), “pode crer, da hora”. Ai eles falam que eu não me emociono. Eu fico bobo, também. Tipo essa parada hoje cedo no hospital, cê vê o ultrassom, tá ligado? Primeira vez que cê vê fica “meu, foda, o bagulho tá se mexendo, tá ligado?”. É foda, cê sai besta, é muito louco. Mas eu, sei lá, sou bem fechado com isso, eu guardo muito pra mim, sabe? Então dentro de mim eu tô besta, tá ligado, tá dando uns pulos aqui, mas eu não exteriorizo muito.

PAS – Quer dizer, você se emociona como qualquer pessoa, só não mostra tanto?

E – Como qualquer pessoa. Tipo, sou uma pessoa normal.

PAS – Ficou emocionado com história de Olimpíada (a entrevista aconteceu pouco depois do anúncio de que o Brasil sediará os jogos em 2016), ou nem ligou?

E – Não, não, eu tenho limites. Tem várias pessoas falando que essa parada dá uns gastos pra cidade, e aí penso que, pô, os caras podiam investir esse dinheiro em vááárias coisas. É bem louco, um investimento em marketing da cidade, tipo “ah, vai ter as Olimpíadas, vamos trazer vários turistas”, mas, pô... A grana dos turistas que vão vir não vai nem se igualar com a grana que vai ser gasta (uma moradora de rua interrompe, mas vai embora diante das negativas).

PAS – Eu tinha pensado muito: vou entrevistar um cara chamado Emicida, será que ele é bravo? Mas não achei nem um pouco...

E – Mas eu não sou mesmo, não, mano. Eu sou bem tipo tranquilão, tá ligado? Todo mundo pensa isso aí. A primeira vez que fui trampar no Nordeste as pessoas não falavam comigo, porque achavam que eu ia sair xingando eles e brigando, tá ligado? Tinha uma mina que trampava na produção, lá na Paraíba, ela ficava tipo pedindo prum cara vir falar comigo, “pergunta pra ele se ele quer almoçar agora”. Aí o cara vinha dando risada, “meu, a mina tá morrendo de medo de falar com você”.

PAS – E aí, pra terminar mesmo, eu desconfiei pela conversa que você tá vivendo só de música agora, que teu sustento vem daí e tá dando, tá legal?

E – É, tá legal pra caralho. Eu agradeço a Deus todo santo dia, porque todo mundo reclama que tá foda, a crise, bababá, e a gente tá meio que surfando nessa onda aí. Não sei como vai estar amanhã, espero que teja melhor, pra mim e pros outros. Mas no meio disso tudo a gente tá conseguindo fazer a parada rolar legal pra mim, tá ligado?

terça-feira, novembro 24, 2009

as artérias desobstruídas da américa latina

Graças ao tição aceso pela "Caros Amigos", comecei a ler "Espelhos - Uma História Quase Universal" (L&PM, 2008), do escritor uruguaio Eduardo Galeano (autor, cê sabe, do clássico "As Veias Abertas da América Latina"). E me deparo com um livro maravilhoso, monumental, de tirar o fôlego pelo discurso que vai construindo, lentamente, num sem-número de microcontos (ou coisas que os valham) repletos de intenções.

Por enquanto, que ainda não cheguei à página 100, fico com um trecho da entrevista concedida a propósito pelo Galeano à "Caros Amigos" 152, de novembro de 2009, quase tão universal e emocionante quanto o "Espelhos" no qual me miro.

É mais ou menos assim. Diante da pergunta "O que falta para a América Latina ser completamente independente?", diz Galeano (com meus muitos grifos entusiasmantes e itálicos indesejáveis):

"Romper com o velho hábito da obediência. Em vez de obedecer à história, inventá-la. Ser capaz de imaginar o futuro e não simplesmente aceitá-lo. Para isso é preciso revoltar-se contra a horrenda herança imperial, romper com essa cultura de impotência que diz que você é incapaz de fazer, por isso tem que comprar feito, que diz que você é incapaz de mudar, que aquele que nasceu, como nasceu vai morrer. Porque dessa forma não temos nenhuma possibilidade de inventar a vida. A cultura da impotência te ensina a não vencer com sua própria cabeça, a não caminhar com suas próprias pernas e a não sentir com seu próprio coração. E penso que é imprescindível vencer isso para poder gerar uma nova realidade".

Logo a seguir, Galeano adentra por histórias da história, aquelas que raramente frequentam telas como as de Hollywood, da Fox e da Globo, ou páginas como as da "Veja" e da "Folha":

"Atualmente os EUA possuem 850 bases militares em quarenta países. A metade do gasto militar mundial corresponde aos gastos de guerras dos EUA. Esse é um país em que o orçamento militar se chama curiosamente orçamento de defesa por motivos, para mim, misteriosos e inexplicáveis. Porque a última invasão sofrida pelos EUA foi em 1812 e já faz quase dois séculos. O ministério se chama de defesa, mas é de guerra, mas como que se chama de defesa? O que tem a ver com a defesa? A mesma coisa se aplica às bases na Colômbia, que também são 'defensivas'. Todas as guerras dizem ser 'defensivas'. Nenhuma guerra tem a honestidade de dizer 'eu mato para roubar'. Nenhuma, na história da humanidade. (...) Os pretextos invocados para a instalação dessa base dos EUA na Colômbia não são só ofensivas contra a dignidade nacional dos nossos países, como também ofensivas contra a inteligência humana. Por que dizer que serão colocadas lá para combater o tráfico de drogas e o terrorismo? Tráfico de drogas, muito bem... 80% da heroína que se consome no mundo vem do Afeganistão. 80%! Afeganistão é um país ocupado pelos EUA. Segundo a legislação internacional, os países ocupantes têm a responsabilidade sobre o que acontece nos países ocupados. Se os EUA têm interesse de verdade de lutar contra o narcotráfico, têm que começar pela própria casa, não pela Colômbia e sim pelo Afeganistão, que faz parte de sua estrutura de poder (...)".

E, por fim:

"Foi em nome o livre comércio que o Paraguai foi aniquilado no século 19. Foi em nome do livre comércio que a China foi obrigada a consumir ópio. A rainha Vitória (da Inglaterra) era narcotraficante. E foi em nome do livre comércio que a indústria têxtil da Índia foi exterminada. Ou seja, o livre comércio tem uma história horrível e está claríssimo que se os EUA tivessem aplicado o livre comércio logo após sua independência continuariam sendo colônia da Inglaterra. Portanto, essa identificação da liberdade do dinheiro com a liberdade das pessoas é mentirosa e inimiga da liberdade humana".

Arrepiante, não?

segunda-feira, novembro 23, 2009

putameutiponossacaraentão

E que tal falar(-ouvir) um pouquito sobre música brasileira nova? Ou vamos continuar discutindo(-escutando) parassempre chicoecaetano?

"CartaCapital" 572, de 18 de novembro de 2009.


Ouvir para Crer

Os novos autores populares seguem livres das tradições, mas ainda voam longe do grande público

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Edu Krieger. Lulina. Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta. Lucas Santtana. Desconhecidos da maior parte do público, esses são alguns dos nomes que levam a (boa) música brasileira adiante e têm feito de 2009 um ótimo ano em termos musicais. Em terra aplainada pela pulverização via internet e pelo esfarelamento das gravadoras multinacionais, esses e outros nomes partem de uma relação zerada com seu ofício, mas ainda voam longe do sucesso de massa.

O cenário é de grande transformação e de muitos intercâmbios. Exemplar dos cruzamentos operados na música brasileira atual é o compositor e cantor carioca Edu Krieger. Filho do compositor erudito catarinense Edino Krieger, ele preferiu enveredar pela combalida MPB a seguir o pai na música de concerto. Mira as correntes de MPB, bossa nova e samba, mas desafia seus dogmas em prol de despretensão, leveza musical, guitarras, sanfonas, programações eletrônicas, cuícas como instrumentos harmônicos.

“Misturar cavaquinho com guitarra ainda é visto com certa reserva. Ouço comentários do tipo ‘este samba é lindo, mas eu gostaria de ouvir com formação tradicional’”, conta. Sobre influências ainda predominantes, o artista diverge em parte de seus pares: “Não é preciso seguir necessariamente o que João Gilberto fez. Ele é genial, mas desde que surgiu revolucionando tudo apareceram tantas outras formas de tocar violão. Acho limitador seguir João só porque os outros vão achar o máximo”. Krieger acaba de editar seu segundo álbum, Correnteza (Biscoito Fino), onde pratica essa distensão de conceitos de modo discreto, avesso a confrontos diretos ou rupturas. A carreira individual segue escoltada pela adesão de cantoras como Maria Rita e Roberta Sá, que levam sua música a públicos amplos.

Mais radical na demolição da MPB como a conhecíamos é Lucas Santtana, ativo militante da cultura digital, cujo ímpeto provocador deve estar inscrito no código genético, pois é sobrinho de Tom Zé e filho do também baiano Roberto Sant’Ana, produtor musical ligado às origens do grupo tropicalista. Lançado em julho, seu Sem Nostalgia (ybmusic) tornou-se um dos discos de ponta de 2009, pelo trabalho de desconstruir (e reconstruir) a importância, a sombra e o peso do violão brasileiro, por intermédio de trechos instrumentais “sampleados” (de modo não raro imperceptível) de Dorival Caymmi, Baden Powell, Jorge Ben, Gilberto Gil, Tom Zé e Novos Baianos.

A banda Ronei Jorge e Os Ladrões de Bicicleta participa da vanguarda musical destes primeiros anos 2000, seja por injetar algum amor pela MPB no rock’n’roll, seja por praticar rock’n’roll em terra até há alguns anos colonizada quase exclusivamente pela axé music. “Comecei em 1994, época da explosão da música baiana, do axé. Aqui era meio deserto, a gente não tinha uma grande profissionalização, e a música de carnaval tomava a frente de tudo”, diz, de Salvador. “Até hoje é meio assim, mas diminuiu.”

No recém-lançado Frascos Comprimidos Compressas (Gira Independente), o grupo distende a relação tensa com a hoje enfraquecida axé music. A letra de Aquela Dança, por exemplo, dialoga com os ex “inimigos”, e Ronei comenta: “Alguns do rock torceram o nariz. Os mais jovens adoram, são muito mais abertos que nossa geração”. Como a ecoar o título farmacêutico do CD, o cantor e compositor recebe como opressora a alegria hegemônica do axé. “Se você não fizer parte, fica parecendo que é meio doente. E às vezes é uma alegria meio tensa, alguns artistas ficam meio dopados na alegria. Ninguém é assim sempre”, afirma.

Se ninguém é sempre alegre, tampouco deve ser triste sempre (como o rock independente costuma induzir). “Quando a tevê daqui faz reportagem sobre rock, é todo mundo de preto, morcego, tachinha. Não tem relação com a música pop. A gente tenta trazer um discurso de leveza e as bandas mais jovens são muito mais relax”, opina. “A relação entre o rock e o carnaval é de ódio e de amor. A gente odiava, mas todo mundo corria para ver Pepeu Gomes e Armandinho tocando guitarra. Hoje revisitamos Gerônimo, Luiz Caldas, Moraes Moreira. A gente está mais à vontade.” Ronei concorda que a distensão se relaciona à morte de Antonio Carlos Magalhães e ao declínio do carlismo na Bahia: “Se estivéssemos em período de Antonio Carlos, seria impensável a diversidade. Hoje se apresentam aqui a Mariana Aydar, o (coletivo experimental paulista) Instituto. Abriram-se editais, antes nem sabia o que era isso”.

Terra de frevo e maracatu, o vizinho Pernambuco não teve seu axé, mas viveu uma contrapartida ao comercialismo desenfreado baiano, na figura do cultuado, experimental e nem sempre muito comunicativo mangue bit. Se há distensão por esse outro lado, um de seus nomes é Lulina. Cantora e compositora imersa em anos de gravações caseiras (e do emprego principal em agências de publicidade), ela acaba de publicar um brilhante álbum de estreia, Cristalina (ybmusic), em que a doçura se faz matéria principal de dezoito canções pop daquelas de decorar as letras após a segunda audição e cantar junto.

Lulina explica como recebeu, ainda adolescente, o advento do mangue bit: “Fui só uma vez a um show do Chico Science, um dos últimos dele. Ele era vizinho da minha tia-avó, vi o carro batido, a relação era mais com a pessoinha que com a música. Eu era mais garota revoltadinha, na onda Nirvana, Sepultura, camiseta com caveira”. Mas nem Nirvana, nem mangue bit, nem o samba (que também diz admirar) deram cartas em seu som. Ela descreve sensação parecida à de Ronei Jorge na Bahia, quanto ao predomínio de um ou outro gênero musical: “Era difícil a banda que não tocasse regional ter espaço. Se você não faz regional com rabeca, ciranda ou mangue bit, não é Recife”.

O disco é composto de versões retrabalhadas de músicas que já havia gravado em CDs artesanais. “Só Meu Príncipe eu guardei para estrear no Cristalina”, conta. O tal príncipe foge a quaisquer padrões MPB (ou mesmo mangue bit), e é definido por ela como “o troco da Amélia”, a personagem submissa do samba de Ataulfo Alves. Meu príncipe (...) limpa o banheiro/ Eu trabalho o dia inteiro/ Ele lava a roupa suja/ E eu bebo, bebo, bebo, diz a letra, em característico estilo “lulinês”.

“Sempre fiquei com muita vergonha de mostrar minhas músicas. É muita metáfora com barata e minhoca, nem todo mundo está acostumado com isso”, descreve o próprio temor em se assumir artista pop. E explica: “Metáfora é uma forma de disfarçar sentimentos, de se esconder. Minhoca fala de morte. Barata é se sentir como um inseto que vai ser pisado”.

A crônica do dia-a-dia é o mote de Lulina, que diz transformar em doces canções suas tristezas, insônias (para livrar-se de uma, compôs Narcolepsia), gastrites e bolhas na pleura (Blebs fala de tal doença, que ela teve de fato). “Novalgina era meu remédio favorito da infância, docinho, sabor morango”, brinca, num apartamento cheio de números 13 espalhados, um “museu do extraterrestre” instalado no banheiro e uma bebida verde chamada Sangue de ET (que também virou música). “Estava ficando tão obcecada pelo 13 que comecei a ficar com raiva do 14, aí fiz um disco caseiro, Aceitação do 14”, diverte-se.

Lulina radicou-se em São Paulo há sete anos e sua música faz jus a uma habitual identificação musical entre pernambucanos e paulistas, à base de humor cáustico. Uma prova é Bosta Nova, humorada declaração de horror aos festejos de réveillon. “Eu até gosto de bossa nova, é que não conheço muito. Tenho várias homenagens à bossa, uma chama João Gilberto É Mariana.”

Pois São Paulo não sai ilesa de sua doçura e timidez. A deliciosa Balada do Paulista ousa cutucar a fera e emerge como uma retumbante gozação aos sotaques e gírias da terra adotiva. “Um menino do meu trabalho falou essa frase: ‘Puta, meu!, tipo, nossa, cara!, então, eu fui lá e...’ A frase mesmo só começava no ‘eu fui lá’. Eu pensei, nossa, isso é uma música”, conta a gênese do amontoado de gírias que pronuncia “putameutiponossacaraentão”, sem tentar despistar o próprio acento pernambucano.

Cada um a seu modo, o que esses artistas têm feito é tentar derrubar as ditaduras musicais. “O problema é a monocultura. Se estivesse numa cidade onde só houvesse rock, eu ia odiar o rock”, sintetiza Ronei Jorge. “Nos anos 1980, quem não era do rock no Brasil é que estava mal.”

O ponto frágil ainda por superar, para artistas como esses, situados das classes médias para cima, é o da comunicação com públicos mais amplos. “Posso marcar um show na quadra da Mangueira na hora que quiser. Mas não tenho vontade, porque minha impressão é a de que vou ser mal compreendido ali”, defende-se Krieger a princípio, diante da discussão sobre a muralha que nas últimas décadas separou a MPB da música popular produzida por funqueiros, sertanejos e tecnobregas.

Discorre sobre a contraposição entre os pais “loucos” dos anos 1960 e os filhos “certinhos”, temerosos de excessos. “Já reparou que as cantoras da minha geração surgem todas com vestidos compridos? Acredito que é pensado, é a preocupação de não chocar ninguém no País- que já foi e é significado de bunda, de É o Tchan.” E então ele depara com o próprio temor de se comunicar com mais espectadores: “Ao mesmo tempo que tenho medo de como meu trabalho vai ser recebido na periferia, Maria Rita me prova o contrário, com a visibilidade popular que me dá cantando minha música”.

Curioso é notar que a filha de Elis Regina, lembrada por ele, tem abarrotado casas de shows com um repertório de sambas cantados em coro pela plateia. Um deles se chama Corpitcho, que Maria Rita tem apresentado com minissaias comparáveis à da jovem aluna da Uniban. Parafraseando Paulinho da Viola, as transformações da MPB estão no mundo, só é preciso enxergá-las.

quarta-feira, novembro 18, 2009

desperta, américa do sul

Esta minha atual fase paraense segue rendendo frutos suculentos, inclusive uma reportagem na edição 2 da "Billboard", já nas bancas, e anterior a essa nova visita que fiz ao festival Se Rasgum, no fim-de-semana passado.

Teria tanta coisa a dizer que até me perco, então por ora quero reproduzir aqui, com consentimento do autor, o depoimento que (o jornalista e codiretor dos documentários "Brega S/A" e "As Filhas da Chiquita") Vladimir Cunha me concedeu para a reportagem da "Billboard".

O que o Vlad escreveu por e-mail me parece mais que um depoimento, um texto pronto - e excepcional -, com reflexões úteis e importantes muito além das fronteiras do Pará. Quando ele diz "elite paraense", por exemplo, acredito que a gente pode facilmente substituir o termo "paraense" por qualquer canto do Brasil onde vicejem gêneros musicais locais. Ou podemos trocar, de modo mais amplo e igualmente justo, "elite paraense" por "elite brasileira" e e "música paraense" por "música brasileira". Cê não acha?

(Esclarecendo para quem não viu a "Billboard": a reportagem versa sobre o perrengue entre os grupos paraenses de tecnomelody e a Banda Djavú, baiana, que andou abocanhando uma série de hits paraenses e os transformou em música "da Bahia" de alto potencial comercial. Assunto candente, muitíssimo pano pra manga.)

Fala, Vlad:

POR VLADIMIR CUNHA

Pedro,

Belém é ao mesmo tempo um lugar de passagem e um ponto onde várias culturas se encontram. Passagem porque é a entrada da Amazônia e a saída para o sul do país, e para a Europa, para quem está no norte do Brasil. Uma cidade portuária onde o tráfego de informações sempre foi muito intenso, onde desde os anos 50 se contrabandeavam discos de rock dos
Estados Unidos e discos de cumbia, soca e merengue do Caribe e das Guianas. Foi o que possibilitou, por exemplo, a criação da guitarrada e da lambada, ritmos nascidos do contato da periferia da cidade com ritmos criados em outros países.

E sempre se ouviu muita música na periferia de Belém. Eu nasci e me criei no bairro do Jurunas e na parte baixa da Cidade Velha, duas áreas bem pobres da cidade (para tu ter uma ideia, a rua onde nasci somente foi ter asfalto e saneamento básico há cerca de 15 anos, antes era chão batido, valas a céu aberto e mato). E nesses locais era comum a gente estar brincado na rua e ouvir música de todos os lados, brega, merengue, lambada, carimbó, guitarrada... Porque sempre foi um hábito
do belenense pobre colocar as caixas de som na janela, na calçada ou na porta da casa. Em parte para mostrar aos vizinhos que ele conseguiu ter um aparelho de som (naquela época um status absurdo), em parte porque em Belém faz muito calor e na periferia da cidade ir para a rua ouvir música nos finais de semana é uma forma de escapar do ambiente sufocante das casas de madeira e alvenaria sem ventilação dos bairros mais pobres.

Então, essa musicalidade, ela sempre esteve presente no cotidiano do paraense da periferia, que desde cedo aprendeu a conviver com esses diversos matizes musicais. Antes de criar a Banda Calypso, Chimbinha tocava em bailes de Creendece Clearwater Revival a Pink Floyd, de Odair José a disco music. Isso é comum. Então, como o sujeito cresce ouvindo todo tipo de música desde cedo, aprende, na hora de tocar e criar a, combinar esses diversos estilos musicais.

Por causa da batida, por exemplo, "Blue Monday", do New Order, e "This Is Not a Love Song", do Public Image Ltd., foram hits absurdos nas aparelhagens nos anos 80, junto com músicas de Mauro Cota, Teddy Max, Juca Medalha, Pinduca e outros músicos locais. Como ninguém entendia a letra, as pessoas cantavam o refrão de "This Is Not a Love Song" como "bife, coloral e sal". Mas cantavam e se divertiam. Sempre que me lembro disso fico pensando o que sentiria um pós-punk metido a sebo ao saber que em Cametá, no Baixo Tocantins, lavradores, estivadores e pescadores dançavam as mesmas músicas que ele dançava no Madame Satã ou no Crepúsculo de Cubatão.

Isso tudo é para tu entender que essa confusão sensorial e de inputs de informação sempre existiu aqui em Belém e se intensificou ainda mais com a pirataria e o acesso à internet, pois as referências passaram a ser não somente musicais, mas também referências de moda, de seriados de TV, de filmes (tipo "Velozes e Furiosos", "Transformers" e
animes) e dos videogames ("Street Fighter" é, até hoje, sampleado em diversos tecnobregas).

É isso que colabora para essa inventividade do paraense pobre que resolve fazer música, que resolve criar esses gêneros híbridos e, agora, eletrônicos. O problema é que, ao contrário do axé e do forró, por exemplo, nunca existiu em Belém uma tentativa de profissionalização e institucionalização do tecnobrega. Isso porque não existe boa vontade da elite local com o ritmo. A elite local prefere escondê-lo, ridicularizá-lo e abraçar ritmos e modismos importados.

Isso se deve ao fato de que a elite local tem como hábito escamotear certos aspectos que constituem a identidade do povo paraense. Ela não gosta de ser ligada ao índio, ao negro, ao povo ribeirinho, ao morador da periferia. Ela nega seus traços índios, pinta o cabelo de loiro, sonha em morar em condomínios fechados, passar frio, usar casaco. Sonha com o dia em que Belém sera igual aos Jardins em São Paulo. Para ela, o tecnobrega, a lambada, o melody... tudo isso lembra que ao redor das
ilhas de conforto que ela ergueu, e nas quais perpetua a sua ilusão de embranquecimento e de pertencimento a uma realidade que não pode ser replicada numa cidade pobre e caótica como Belém, existe uma gente "feia", de pele escura, "mal-educada", "mal-vestida" e que ouve essa música dura, sexual, rude e que fere os ouvidos: o tecnobrega.

Por conta disso, o paraense médio nunca viu o tecnobrega ou o melody como uma cultura genuinamente local, que poderia ser exportada e gerar benefícios para a cidade e para o estado. Por ter vergonha do tecnobrega, e por conseguinte de uma infinidade de aspectos ligados à identidade do povo paraense, a elite local ergueu uma série de barreiras definindo o que pode e o que não pode, criando um apartheid não só social, mas também cultural, segregando essas manifestações para os salões de terra batida da periferia, para os balneários classe C e para os portos que circundam a cidade, onde são realizadas festas
todos os finais de semana.

Por ter sido relegado à periferia, o tecnobrega acabou encontrando na informalidade e na pirataria o seu meio de sobrevivência. Se por um lado isso foi bom, já que a informalidade criou um sistema de distribuição eficaz, por outro largou o ritmo numa espécie de terra de ninguém, onde direitos de patrimônio e de autor não são respeitados, onde não se tem controle sobre os processos criativos.

Por exemplo: a Banda Djavú roubou músicas de autores paraenses. é um fato. Mas, ao mesmo tempo, uma série de músicas do tecnobrega são roubadas. "No More Lonely Nights", do Paul McCartney, virou "Galera GDK", "Das Model" virou "Bole Rebole", "Beat It" virou "O Rei do Pop", cujo refrão, no lugar de "beat it", diz "é firme, firme". Junto a isso, existe uma via de mão dupla, na qual as bandas de forró roubam músicas paraenses e as bandas paraenses roubam forrós que são transformados em tecnobrega.

Um caso exemplar é da musica "Amores", que estourou em Belém numa versão tecnobrega, mas foi gravada originalmente pela banda Forró do Muído, que, por outro lado, roubou a musica de um grupo espanhol e gravou uma versão nao-autorizada dela em português. Nesse cenário caótico, informal e confuso, sempre me pareceu só uma questão de tempo até alguém vir aqui, pegar o melody e as músicas locais e lançar para todo o Brasil.

Em parte porque, ao empurrar e confinar o tecnobrega e o melody para espaços bem delimitados, a elite local perdeu o bonde da história, já que, espertamente, foram os empresários nordestinos, muito mais bem resolvidos com suas questões de identidade, que enxergaram no ritmo excelentes possibilidades de negócios. E enquanto o empresariado local dançava Biquíni Cavadão nos bares "classe A" de Belém e definia que melody era "coisa de caboco", a Bahia criava a Banda Djavú e fatura
milhões em cima de algo criado a partir do talento e da inventividade do povo paraense.