quinta-feira, abril 24, 2008

canecão, confusão

da carta capital 488, de 26 de março de 2008. são deslumbrantes as fotos históricas do canecão que acompanharam a reportagem, com "monstros sagrados" (não é curioso, intrigante, esse termo-clichê?) do quilate de chico buarque, caetano veloso, milton nascimento, roberto carlos - mas essas, só mesmo na revista de papel...


CANECÃO, CONFUSÃO

A mais tradicional casa de shows do Brasil sofre processos e denúncias de estelionato, fraude e sonegação

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

No passado, a casa carioca de espetáculos Canecão se firmou como o espaço mais tradicional da música brasileira, ao abrigar momentos históricos como um show consagrador de Maysa, em 1969, o encontro entre Chico Buarque, a Orquestra Sinfônica Brasileira e a escola de samba Unidos de Padre Miguel, em 1971, ou a estréia do ex-"rei do iê-iê-iê" Roberto Carlos no circuito "adulto" de espetáculos, em 1970.

Aos 41 anos de existência, o Canecão segue em plena atividade, mas se vê em apuros com um número cada vez maior de denúncias e processos. Em julho de 2007, os proprietários Mario Hamilton Priolli e Manoel Ronald Priolli do Rego Valença foram denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) do Rio por fraude previdenciária. A dívida com o INSS seria, àquela altura, de 226 mil reais. Uma nota oficial do MPF afirmava que a casa havia cometido 22 vezes o crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias e fazia da sonegação forma de gestão.

Em fevereiro último, Mario Priolli foi denunciado pelo MPF por falsidade ideológica e estelionato qualificado. A casa teria utilizado uma pessoa jurídica diferente da original para garantir um patrocínio da Petrobras, cujo logotipo é exibido em letras garrafais na fachada do agora rebatizado Canecão Petrobras. "O débito do Canecão com o INSS o impede de receber qualquer incentivo de natureza pública, como o da Lei Rouanet", afirmou na ocasião o procurador da República José Maria Panoeiro. "O sócio (...) formalmente optou por usar uma empresa que não tem um único empregado, não recolhe para o INSS e tem o mesmo endereço do estabelecimento."

Conflitos mais antigos e duradouros se referem ao aluguel do terreno no bairro de Botafogo onde está instalada a casa, pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Outro processo em curso na Justiça é movido pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), sociedade civil privada que centraliza toda arrecadação e distribuição dos direitos autorais de execução pública de música no Brasil. Segundo a entidade, o Canecão acumula uma dívida de 5,8 milhões de reais em direitos não pagos.

O Ecad exerce pressão sobre o adversário, indo à Petrobras contestar o patrocínio concedido, ou afirmando à imprensa que "o Canecão utiliza estratagemas para escapar dos artistas". Esse se refere a uma situação aparentemente incoerente, de que a casa repassa aos artistas as contas devidas ao Ecad. Quando um artista que também é compositor se apresenta no Canecão, tem de pagar ao Ecad pelo direito de execução pública de suas músicas. É um dinheiro que, concluído todo o ciclo, supostamente deveria ir parar no bolso dele próprio, como autor.

"Quem tem que pagar o direito autoral é a casa. Em outros casos, a gente recebe das casas de espetáculo, não dos produtores dos artistas", afirma a superintendente do Ecad, Glória Braga. "Por um tempo, o Canecão descontou 10% dos artistas, e mesmo assim não pagava o Ecad. Nem era 10%, mas 5%", diz. Segundo ela, o valor de 5% foi estipulado em comum acordo entre o Ecad e as casas que promovem shows de forma fixa.

"Assim que assinamos o patrocínio, o Ecad nos procurou para reclamar. Disse que o Canecão é devedor deles", lembra a gerente de patrocínios da Petrobras, Eliane Costa. "A situação ficou muito desconfortável. Como o Ecad podia dizer que a empresa é inadimplente, se os músicos estavam pagando os direitos por ela?” Segundo Eliane, a Petrobras seguiu a determinação do MPF e os repasses estão por ora suspensos.

Procurado por CartaCapital, o Canecão se manifestou por intermédio de assessoria de imprensa e de advogados, sem entrevistas oficiais. Afirma que a segunda pessoa jurídica, Canecão Promoção de Eventos Ltda., é legítima e existe há 11 anos. Queixa-se que a casa não se encontra em dificuldades financeiras, mas ficará se patrocínios forem mesmo suspensos.

Diz que não reconhece a dívida reclamada pelo Ecad, que teria rompido acordos unilateralmente, e por isso passou a depositar os valores devidos em juízo. Reconhece que a situação foi regularizada em 2004, quando os artistas e seus produtores passaram a recolher diretamente para o Ecad.

Se parece irregular a transferência de responsabilidade por parte da casa, algo similar se pode concluir a respeito do escritório de arrecadação. Não seria impróprio o Ecad aceitar pagamento dos artistas, e não da casa de espetáculos? "Mas foram os próprios artistas que quiseram", justifica-se Glória. "Eles eram descontados e ninguém recebia, porque o Ecad não repassava. Num dado momento, os produtores dos artistas concluíram que era melhor pagar ao Ecad, uma máquina montada para eles, que continuar sem receber do Canecão. Se os artistas são os donos do Ecad e estão pedindo, o que é que a gente faz?"

Essa versão é confirmada pelo empresário dos Paralamas do Sucesso, José Fortes, um dos líderes da negociação em nome da Associação Brasileira dos Empresários Artísticos (Abeart). "Estava ruim a situação. Descontavam Ecad e Imposto sobre Serviços (ISS), mas não pagavam. Eu, em nome de artistas com que trabalho, estava delegando a terceiros um pagamento que não ia voltar para nós", explica. "Então fui ao Ecad e fiz o acordo: no caso do Canecão, o Ecad que brigue pela dívida já existente, mas daqui para frente será pago. Foi um acordo para apagar incêndio. Você tem que pagar para depois receber de volta."

Mas as etapas intermediárias entre o pagamento e o recebimento não consumem parte substancial do montante inicial? "É claro, porque há percentual, descontos, a parte do Ecad. Mas isso não tem jeito, é parte do negócio que é o Ecad, que é um representante dos autores." Segundo a entidade, 75% do recolhido chegarão de fato aos autores (divididos entre os parceiros, se houver co-autoria). A entidade embolsa para si 18%. Editoras musicais e sociedades de autores também abocanham fatias.

Embora muitos artistas se queixem do funcionamento do Ecad como se ele fosse um órgão da burocracia estatal, o argumento de Fortes tira os músicos e autores da posição possível de vítimas, e chama atenção para o fato de que são eles próprios os reais gestores do estado de coisas.

Mais além vai outro empresário, Airton Valadão Jr., que agencia shows de artistas como Arnaldo Antunes, Daniela Mercury, Guilherme Arantes, Lobão, Maria Rita e Pato Fu: "Quem tem que pagar ao Ecad é o promotor do show. No meu caso, sou sócio do evento. Se tenho 50% da bilheteria, não é injusto pagar".

Valadão destaca papéis positivos de uma casa de shows: "É ela que divulga e põe o artista na mídia, investe em tevê, rádio, jornal. E arca com custos de som, luz, seguro, segurança. Fizemos um show do Palavra Cantada, o Canecão bancou ônibus e hotel. Rachamos as despesas, foi legal". Ele demonstra que o caso do Canecão não é isolado: "Todos os Sescs, por exemplo, exigem que entreguemos a guia do Ecad quitada".

E onde se coloca o artista nesse xadrez? "Ele também é nosso sócio. A grande maioria pede para a gente zelar pelo Ecad", diz Valadão. Segundo ele, a divisão do bolo arrecadado num show costuma ser de 80% para o artista, 20% para o produtor. "Se Maria Bethânia interpreta músicas de outros autores, é justo que ela participe do pagamento a eles", acrescenta.

"Não há nenhum problema em os artistas fazerem o recolhimento", opina Marilene Gondim, empresária de Milton Nascimento e Ana Carolina. "A relação dos artistas com as casas de espetáculo em geral não é de venda de shows. É uma parceria em que as duas partes são co-produtoras. Portanto, qualquer um pode se obrigar a recolher os rendimentos devidos. Se o Canecão ou outras casas inadimplentes fazem a retenção, o dinheiro fica preso à decisão final da ação, que sabe-se lá Deus quando acontecerá."

Se isso vale para artistas com décadas de estrada, pode não ser bem assim para aqueles que, em etapas anteriores na conquista por espaço, almejem ocupar um espaço como o Canecão. "É importante ressaltar que fazemos muitos shows por iniciativa nossa. Ou seja, reservamos os espaços e assumimos todos os custos e riscos", diz a empresária do cantor e compositor Zeca Baleiro, Rossana Decelso, ela também artista. "A verdade é que, para trabalhar, a gente acaba, sim, por fazer acordos esdrúxulos, desde que não sejam ilegais. No caso do Canecão, talvez a casa mais importante da história do show biz brasileiro, a gente prefere negociar que não fazer o show", completa.

Irregularidades, desorganização e possíveis abusos de autoridade parecem espelhar de forma aguda, tanto quanto as glórias históricas, os muitos dilemas hoje enfrentados pela cadeia produtiva da música como um todo, dos promotores e artistas aos patrocinadores e espectadores.

Em março de 2008, o concurso de Miss Rio de Janeiro dividia o espaço do Canecão com shows como o de Maria Bethânia e Omara Portuondo. Leilões de cavalos se tornaram habituais em grandes espaços como o Canecão (ou o Citibank Hall de São Paulo, ex-Palace). São cenas que hoje compõem a galeria histórica da casa, lado a lado com as peças de teatro de revista de Carlos Machado, que deram partida à história da então cervejaria, em 1967, os shows internacionais de Amália Rodrigues, James Brown, Miles Davis, bailes carnavalescos ou flagrantes como a exposição de Elis Regina, grávida, no palco. E o show continua.

quinta-feira, abril 17, 2008

um treco assim

um cara chamado rodrigo ribeiro apareceu neste blog, perguntou se podia mudar de assunto, pegou o embalo e já fez um comentário na janela vermelha. pode, sim, claro que pode, rodrigo. pode tanto que comecei a responder o comentário na janela do tópico anterior, as mariposa, e quando vi já não estava mais escrevendo uma resposta-de-janela, mas sim um tópico-de-blog.

adiante, então, mudando agora uma coisinha ou outra que escrevi agora há pouco, meio tópico, meio janela.

não acho, rodrigo, que você tá "errado" ou "certo" (todas as leituras são possíveis, como nos induziria a pensar um certo ney "inclassificáveis" matogrosso), mas...

a) concordo plenamente contigo quanto ao "conteúdo a ser comentado" no "secos & molhados" de 1973. é enorme, gigantesco, e certamente rende mensagem, tópico, site, reportagem, pensamento, livro, tese, música, peça, filme, sonho...

b) discordo quanto à invisibilidade que você atribui à questão gay naquele lp. acho que nem vou me (ops!) aprofundar nos méritos do "vira, vira, vira homem, vira lobisomem" ("o vira", de joão ricardo e luli)... ou do "eu vi el rey andar de quatro/ de quatro poses atraentes" ("el rey", de gerson conrad e joão ricardo)... ou mesmo do (arrepiante) "jurei mentiras e sigo sozinho/ assumo os pecados" + "rompi tratados, traí os ritos/ quebrei a lança, lancei no espaço/ um grito, um desabafo" (de "sangue latino", de joão ricardo e paulinho mendonça). mas copio aqui com prazer e divertimento a íntegra da letra de "assim assado" (de joão ricardo), minha sempre predileta (e com grifos maldosos meus, ok?, hehehe):

"são duas horas da madrugada de um dia assim
um velho anda de terno velho assim assim
quando aparece o guarda belo

é posto em cena fazendo cena um treco assim
bem apontado ao nariz chato assim assim
quando aparece a cor do velho

mas guarda belo não acredita na cor assim
ele decide no terno velho assim assim
porque ele quer um velho assado

mas mesmo assim o velho morre assim assim
e o guarda belo é o herói assim assado
porque é preciso ser assim assado"

metáforas, imagens e viagens na maionese a valer, você pode dizer. mas nada me tira da cabeça que se trata da descrição de uma cena de sexo, seca & molhada, na borda dos limites máximos que 1973 e o general médici (não) permitiam. como já chegamos a comentar aqui (quero dizer, ali) na janela vermelha há uns tempos, parece um autêntico "george michael vai ao bosque em busca do lobo", 30 anos adiantado, não?

mas, ó, só para arrematar, e discordando agora tanto de você quanto de mim mesmo no texto da "rolling stone": tanto faz se era gay, heterossexual, bissexual ou pansexual, nem há nada aí que faça desmerecer a força poética das letras e canções (puxa vida!, "amor" e "primavera nos dentes", de joão ricardo em parceria com seu pai, joão apolinário, ou "fala", de joão ricardo e luli, ou mesmo a cafonice latejante da "rosa de hiroshima" de seu vinicius de moraes, musicada por gerson conrad...); mas o discurso pulsante e sofrido sobre a sexualidade, sobre o sexo, é que me parece, sim, a lenha mais sequinha na fogueira da caldeira da locomotiva velocísisma que é o "secos & molhados" 1973...

e era médici. e era censura & repressão. e era pau no cu (no sentido da tortura, não do prazer) dos "terroristas" de esquerda. e era pleno e atroz "reinado de terror e virtude" (como explica mui convincentemente paulo cesar de araújo em "eu não sou cachorro, não", da página 51 em diante) de uma ditadura de direita. e era mole? não era, era duro (hoje também é, mas, ainda bem, por razões diversas e inversas).

bem, agora que já tagarelei a falar, contextualizemos, que é sempre bom, gostoso e de graça. segue abaixo o texto da "rolling stone" 13, de outubro de 2007, que deu mote ao comentário do rodrigo no tópico das mariposa (obrigado, companheiro, pelo mote que agora passo adiante):

Secos e Molhados
Secos e Molhados (1973 . Continental)

Odair José conta com orgulho seu embate com um general, em 73, na tentativa de safar sua "Pare de Tomar a Pílula" da Censura. "O senhor permite o Ney Matogrosso e os Secos & Molhados fazerem uma proposta de gay num show no Maracanãzinho e não permite que eu faça uma proposta de homem?! O senhor é gay? O Exército é gay?", teria indagado, segundo relatou no livro "Eu Não Sou Cachorro, Não" (2002), de Paulo Cesar de Araújo. Era uma disputa entre semelhantes. No Brasil de 73, quase ninguém fez mais sucesso que Odair e os S&M. Em comum, ambos afrontavam os costumes de uma ditadura brava, amofinando-a no campo do comportamento, da política do corpo. Odair testava letras simples que debatiam sexo, amor livre e a estrutura de classes sociais no país. Os S&M de Ney, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias sugavam a poesia de Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes, mas falavam pelo corpo, por visual andrógino e (homo)sexualidade explícita – era o glam rock à brasileira [, que tinha em Maria Alcina uma explosiva versão feminina (dizia trecho original do meu texto, que sobrou na edição final porque escrevi mais do que devia)]. Rotulado de "cafona", Odair era enjeitado por nove em cada dez estrelas da MPB, uma confraria que já iniciava a trágica rota rumo a um elitismo atroz. Os S&M fundavam o "roque" dos anos 70, com toques hipnóticos de rock progressivo, mas incorporando a sigla MPB mais que a negando. Talvez Odair se sentisse enciumado do colossal poder transgressor (e comunicativo) do denso LP de estréia dos S&M, com "Sangue Latino", "O Vira" e "Assim Assado". Talvez o efêmero grupo prog-MPB também se ressentisse do imenso fogo comunicativo (e transgressor) do "cantor das empregadas" em "Deixe Essa Vergonha de Lado" [e "Eu, Você e a Praça" (dizia outro fragmento que sobrou)]. Voltando-se uns contra os outros, se neutralizavam e ajudavam o opressor. Mas, lá fora, a massa aprovava igualmente as transgressões dos "cafonas" e dos "andróginos", no apogeu do terror & tortura. A marca S&M era em si uma revolução, confirmada 30 anos depois pelos milhões de civis que marcham em paradas pacíficas de diversidade sexual. Quanto à rivalidade entre iguais de 1973, não se sabe ao certo que curso tomou. Fato é que, em 77, Odair gravou um controverso disco gay. Em 76, Ney Matogrosso lançara a romântica "Cante uma Canção de Amor", co-escrita por Odair José. PEDRO ALEXANDRE SANCHES

putz, reli só agora, depois de ter escrito as linhas gerais do que vai escrito aí acima. e não é que encontro vários pontos em comum com o que andamos discutindo atualmente ali (ou aqui) na janelinha vermelha (sobre autofagia entre semelhantes, por exemplo)? bacana, que bacana. estamos juntos, e misturados, quandionde tudo se mistura!

por fim, e da maior importância, aqui fica guardada (para todo o sempre, espero - esperamos?) a fala dele, em pessoa, sobre esses & outros assuntos.

e, para além do por-fim, abre-te sésamo para a minha fala sobre a fala dele, entre uns & outros assuntos. aliás, essa coexistência permanente entre passado, presente e futuro via internet (alô, márcia) não é mesmo uma conquista maravilhosa, nova, fresca, acachapante? índios, mulheres, ciganos, gays, negros, japonesas, velhos & crianças, todos juntos-e-fortes aqui-e-agora-mesmo, sim, senhor, seu ney (e sr. arnaldo antunes, e sr. chico science)!, e por que não?

quarta-feira, abril 09, 2008

as mariposa

há muito tempo eu (não) vivi calado, mas agora resolvi falar (de novo).

lá vem mais um show de roberto carlos, e lá vem nova leva de reportagens sobre o cara, a árdua busca por novidade onde novidade não há, nem pretende haver. do final de 2007 para cá, os textos dos colegas jornalistas têm repetido, um atrás do outro, que "nunca antes na história deste país roberto carlos havia deixado de lançar um disco no natal", ou "um disco com músicas inéditas", ou (pequenas) variações sobre esse mesmo, mesmíssimo tema.

mas... mas... mas... de onde tiraram essa originalíssima (e equivocadíssima) informação, a ponto de enfim roubarem dela a originalidade, à custa de incessante e estrondosa repetição de erro, em efeito-manada (como luis nassif costuma nomear)?

só para revisitar o óbvio, o chavão, o tediosamente enciclopédico, a retreta:

em 1997, roberto "só" lançou "canciones que amo", um disco de sucessos latino-americanos, em espanhol (ok, boiava lá pelo meio "coração de jesus", dele e de erasmo carlos, em português mesmo, mas...). no disco híbrido de 1998, havia um punhadinho econômico de canções "novas", em meio a um banhado de "hits" ao vivo. em 1999, nada (a não ser uma coletânea de sucessos e outra de canções religiosas). em 2001, "só" o "acústico mtv", "só" músicas não-inéditas. em 2002, "só" outro disco ao vivo, com "só" uma nova ("seres humanos") perdida lá no meio (ou melhor, no início), mais o bônus de uns remixes eletrônicos, "modernos", de "o calhambeque", "se você pensa", "jesus cristo". em 2004, "só" mais um plácido disco ao vivo, "só" com a sessentista "a volta", regravada em estúdio, deslocada ali no meio (ou melhor, no final). em 2005, "só" um disco quase "só" de regravações, dele ("meu pequeno cachoeiro") e de outros ("índia", "loving you"). 2006? "só" "duetos", um cd-e/ou-dvd de, er, duetos puxados de especiais passados do homem na globo. 2007? nada, ufa. e aí a incompreensível avalanche: nunca antes na história deste país...

[só para o seu conhecimento, spc: (quase) nenhum desses dados acima eu sei de cor, ok? eu "só" tive o trabalho de ir até o site oficial do cara e copiar. como poderia ter ido ao meu próprio livro "como dois e dois são cinco - roberto carlos (& erasmo & wanderléa)" (boitempo, 2004), que também reúne (quase) todas essas informações.]

se você disser que nada disso tem (quase) nenhuma importância, eu concordarei, tambéma acho que não - afinal, em que rc é diferente de (quase) todo mundo, na desaceleração criativa e na sanha de revivals "ao vivo" que fizeram nos últimos anos a derrocada da indústria de cd e o nascimento (natimorto?) da indústria de dvd?

ok, concordo. mas é que me aflige e me exacerba testemunhar (e às vezes participar d)a facilidade displicente com que o jornalismo diariamente cozinha (e a freguesia - você? - gostosamente saboreia) mentiras, descuidos, descasos, desleixos, mistificações, alienações, sei lá quais e quantos nomes dar a esse tipo de treco. quando se refere a roberto carlos, então, nossa senhora.

e aí, bem, certamente você já sacou, mas chego agora ao âmago da minha irritação. é "só" uma entre incontáveis outras, essa mentirinha boba de "pela primeira vez roberto carlos interrompeu uma rotina", erigida por mariposas que ficam dando voltas ao redor da lâmpada do factóide como se ela(e) fosse o sol que daria acesso ao reino dos céus, quero dizer, ao rei-roberto, quero dizer, à liberdade.

um tipo afim de "mentira" (esquecimento? desconhecimento? amnésia? ignorança?) dessas que rondam o carlismo, e particularmente o jornalismocarlismo, me afetou e afeta diretamente, e muito. envolve meu já citado "como dois e dois são cinco", um livro (quase "só") sobre roberto carlos que roberto carlos não censurou, nem proibiu, nem sequer agrediu.

pois, começando por (quase) todo mundo na imprensa (e fora dela) e terminando no colega ruy castro, eu ouço (quase) todo dia repetições em efeito-manada sobre o fato de roberto carlos ser "censor de livros", de "atentar contra a liberdade de expressão" etc. etc. etc.

[é que, outro dia mesmo, ruy castro escreveu mais do mesmo, sobre os "paradoxos" censores de rc; intrigado, fui sondá-lo em pessoa, por e-mail, sobre o por quê da reiterada omissão. respondeu que era "normal" ele, ruy, não saber da existência de algum outro livro sobre rc, mesmo se não-censurado - "anormal", disse, era rc não ter "partido para dentro de você"... ai, ai, ai...]

não que eu não concorde que, em certa medida, roberto carlos age, sim, como "pai censor" cerceador de diversas liberdades, mas... até hoje ninguém, nenhum coleguinha sequer, me perguntou por que ele não "censurou" nem "proibiu" meu livro, que segue em (pequena) circulação até os dias de hoje.

não que eu soubesse responder, se alguém me perguntasse. mas é que, pelo que me conste, ninguém até hoje tampouco perguntou a roberto carlos, nem a ninguém de sua corte íntima, por que é que ele proíbe uns, não proíbe outros, e la nave va. como dizia adoniran barbosa, as "mariposa" ficam todas lá noutro canto, em volta da "lâmpida", procurando o sol atrás dos 100 watts de quão censor anti-liberdade de expressão rc é, ou dos 40 watts de quantos discos rc não lançou neste ano.

tudo isso sem nem começar a falar das "mariposa" girando atrás doutras "lâmpidas", luzinhas fátuas e fosforescentes de dossiê, de dengue, de menininha assassinada etc. etc. etc.

jesus cristo, minha nossa senhora, meu coração de jesus! dos patrões fazedores de jornal e de "jornal nacional" eu nada sei, mas será "só" por culpa do(s) patrão(ões) que os jornalistas chegamos a este estado deplorável de desorientação, sucateamento, auto-sabotagem e autodesprezo?

sabe o que acaba acontecendo com as "mariposa" suicidas que teimam e insistem e persistem e não desistem de encontrar o sol escondido por detrás da luz da "lâmpida", não sabe? sabe, sim.

[ah, e só reiterando o convite, sempre e sempre, ao ruído - há umas pílulas sobre rita lee lá, recém-colocadas.]

quarta-feira, abril 02, 2008

me deixe hipnotizado

então, aí eu fui pela segunda vez assistir a "chega de saudade", da laís bodanzky, e queria falar umas coisinhas sobre esse filme.

mas, como não sou, er, "crítico de cinema", peço licença para ser (se conseguir) um pouquinho sentimental, ok?

é que da primeira vez assisti numa sessão para jornalistas e fiquei (sei lá se exatamente por essa razão) levemente tenso, travado, bloqueado para certas provocações emotivas que o filme faz (e, nossa, isso me acontece tantas vezes em shows, também; às vezes até, vai ver, porque eles não são mesmo emocionantes, mas... vai saber, lalaialaiá...).

só que aí fui de novo, atraído por sei lá o quê que o filme tem (e pelo prazer de acompanhar quem me acompanhava), e... fiquei lá chorando, durante um montão de cenas (e no final, ah, o final, que final!...), feito um bobão, todo arrebatado pelo discurso nada inofensivo, nada ingênuo, nada truculento, nada duro, nada tolo, nada frio do filme da bodanzky.

a propósito, e antes que eu me esqueça: yeah, trata-se de um filme brasileiro, e eu quero dizer acima de tudo que eu sinto um enorme orgulho desse filme e do fato de ser contemporâneo e conterrâneo desse filme.

posto isso, umas notas livres, leves e soltas (espero), sobre "chega de saudade", então:

* tenho ouvido várias pessoas dizerem como o filme é "triste", como o acharam "triste", "melancólico", "doloroso", tal e coisa. eu próprio achei justamente isso na primeira vez que vi, a ponto de sair da sala escura com um baita nó na garganta. mas, ai, será que é "triste" mesmo? onde é que tá tanta "tristeza", se tem tanta "alegria" deslizando junto no salão? "chega de saudade" não é "triste" como a vida é, não é "alegre" como a vida é?

* pelo menos dentro de mim, a idéia da "tristeza" se atou a princípio à idéia da "velhice", mas, puxa, nem sobre a "velhice" o filme é propriamente! estão lá o paulinho vilhena, a maria flor, a cássia kiss (ops, quase falo "cássia eller", amoroso ato falho...). e o salão de baile de "terceira idade" do filme, nossa, é tão, tão, tão parecido, na organização social e na estrutura das relações, com lugares que conheço como a palma da minha mão, tipo a loca, a torre, o glória etc. de tal. "terceira idade"? pfff.

* e o filme tem tanta diversidade (etária, de gênero, até de cor da pele), mas, hmmmm, mas e gays? não há gays em "chega de saudade", ou eu é que não enxergay? ficaram todos lá na av. vieira de carvalho?

* me parece que "chega de saudade" possui dois grandes blocos de personagens, ambos interessantíssimos, ambos riquíssimos. de um lado, há os essencialmente amargurados, os sempre previamente vestidos a rigor para o baile do rancor: os de leonardo villar, betty faria, paulo vilhena (que amargura não tem idade, né?)... de outro, há aqueles que se vestem de leveza, de gana, de vontade de viver: os de stepan nercessian, cássia kiss, tônia carrero (essa com alguma ambigüidade)...

* não são estanques, os dois grupos. há personagens que transitam de um para o outro (e de outro para um), como os de maria flor, miriam mehler, jorge loredo (ele!, o zé bonitinho!, desconcertante e comovente participação)... e há os que se mantêm misteriosos, impenetráveis, como os de clarice abujamra, elza soares, marku ribas... fauna riquíssima, florescente.

* e, nossa, há o personagem de marcos cesana, o garçom, que é uma coisa, uma coisa, uma coisa. mal percebi as cenas dele na primeira vez que vi, mas, ai, na segunda... é de uma grandeza a atuação daquele garçom bailando a bandeja na mão entre os que bailam só no sapatinho. é o síndico, o anjo da guarda, o capataz, o guardião. e sonha se aposentar (leia-se envelhecer) logo, para poder enfim pular da periferia para o centro dos acontecimentos (ou estou confundindo, e é outro personagem que sonha esse sonho? o barman, será?). de ficar chorando escondidinho, no cantinho.

* o que é a betty faria, o que é a sempre sexy-e-gostosona betty faria encarnando aquela mulher que ninguém quer tirar para dançar, aquela mulher lotada de mágoa-por-dentro-guardada, aquela mulher linda de doer que sai reclamando que os homens a acham "baranga"? nossa, nossa. não é qualquer atriz (ou ator) que peita tamanho encontro com espelhos quiçá assustadores, ou tô enganado?

* o que é o personagem do stepan nercessian, que inverte toda e qualquer expectativa e perspectiva, e começa parecendo "escroto", mas no final você descobre no fundo do peito que não era nada daquilo (e descobre, ainda por cima, que ele faz carretos, como esclarece uma das cenas finais)? nossa.

* bem, e tem a música, né? ai, que vontade quentinha de chorar quando toca martinho da vila ("disritmia", "mulheres"), quando toca reginaldo rossi ("meu amor, meu bem, ma femme", "tô doidão"), quando toca jorge ben ("bebete vambora" - bebetty?!), quando marku ribas solta o vozeirão, quando a câmera entra pela boca de elza soares, quando elza canta "lama" ou evoca alcione ("não deixe o samba morrer"), quando se (re)misturam erasmos-caetanos-simonais-dorismonteiros ("de noite na cama"), cubanismos ("tequila", "cha cha cha"), lulus-santos ("como uma onda"), boleros, ritas-lee ("lança perfume")...

* a música, por sinal, comenta astuta e ferinamente o enredo do filme, o tempo todo, sem trégua. sem perceber, o dj paulinho vilhena solta reginaldo rossi no salão, "tô doidão, tô doidão, bicho, tô doidão/ porque roubaram minha mina dentro do salão", no exato instante em que a letra talvez esteja se materializando bem em frente, com a mina dele, do dj, a maria flor. paulinho entra em parafuso, não era para menos, né? mas esse é só um exemplo, eles acontecem às dezenas.

* e a abundância e a exuberância dos figurantes, dos casais que rodopiam graciosamente pelo salão à chapeleira negra e velhinha que tricota para passar o tempo enquanto o baile corre solto dentro do salão? meu deus, nem tenho palavras.

* enfim. não é que eu conheço aqueles personagens todos, todos, todos (alguns deles, por sinal, sou eu mesmo, ou somos pedaços de mim), como as palmas das minhas mães? (n)os conheço menos idosos, talvez, vários, ou menos isso ou menos aquilo, mas sinto conhecer todos, um por um. conheço até mesmo o cenário, o salão do espaço fraterno, lapa paulista, pompéia, vila romana, onde uma vez fui a um baile de aniversário do xu, cujos freqüentadores éramos tão diferentes dos personagens do filme, e ao mesmo tempo tão semelhantes a eles.

* me perdoem os entusiastas das jóias hollywoodianas e/ou das sutilezas do cinema asiático, mas essa familiaridade que me provoca um filme como "chega de saudade" (ou outro como "juízo", de outra mulher-cineasta, cuja sala estava dramaticamente vazia na sessão a que fui) eu não troco por nada neste mundo.

* não há nada neste mundo que me cause tanta vontade (boa & ruim) de chorar quanto o quintal da minha própria casa (talvez seja por isso mesmo que fujo tanto de lá, não seja?).

* ai, e, façavor, não me enche mais o saco com essa lengalenga nhenhenhém chororô friquetrique de que "o cinema brasileiro não presta", "a música brasileira não presta", "a política brasileira não presta", "o brasileiro não presta", "o brasil não presta"? não cola, essa cola d'água cansou de colar já faz um bom bocado de tempo. e, não, nem vou cantar, como naquele hard-forró arrasa-quarteirão presente no filme, que "você não vale nada, mas eu gosto de você". chega de melancolia, chega de auto-sabotagem, t'esconjuro.