quarta-feira, outubro 31, 2007

o silêncio ensurdecedor, vol. 2

para continuar falando do mesmo e silencioso assunto, copio abaixo a letra do rock "tudo vai dar certo", que foi composto e interpretado em 1976 pela cantora e autora carioca diana, a mesma que foi lindamente re-revelada meses atrás pelo maravilhoso filme "o céu de suely", do cearense karim ainöuz.

imagino que, na letra copiada aqui abaixo, diana estivesse falando transversalmente sobre si própria, sobre o silêncio ensurdecedor com que determinados estratos de público recebiam (ou rejeitavam) sua música sempre afoitamente rotulada como "cafona".

repara só se "tudo vai dar certo" não comunica um monte de coisa sobre o modo indiferente e/ou hostil como a gente se habituou a receber não só uma cantora "cafona", mas também um artista estreante, um novo e ainda desconhecido programa político-cultural, alguém com hábitos diferentes, uma idéia distinta das que freqüentam nosso imaginário cotidiano etc. e tal.

(a crítica, quando automática e circular, É acrítica?)

diga lá, dona diana.

"tudo vai dar certo"
(diana)

"eu sei que você acha bonito
quando eu apareço usando meu boné
sei que você acha distinto o fecho do meu cinto
o meu tamanco no pé

prefiro ficar bem calada
fingindo não saber de nada
mas sei que qualquer dia desses
esse seu segredo vai se revelar

eu sei que você perde é a graça
quando alguém lhe pergunta como é que é
finge não saber de nada, muda até de assunto
e diz que não me quer

eu sinto que você tem vontade é de me conhecer de perto
me falar do seu sentimento
e se for sincero
tudo vai dar certo

eu sei que você age esquisito quando toco no assunto
pra saber qual é
eu não consigo entender
você não me acredita, mas eu levo fé

porque eu sinto que você tem vontade é de me conhecer de perto
me falar do seu sentimento
e se for sincero
tudo vai dar certo"

quinta-feira, outubro 25, 2007

o silêncio ensurdecedor

política? política cultural? xiiiii...

será tabu debater esse tipo de assunto sem ser brandindo uma ameaçadora faca estripadora nas mãos, o canto da boca espumando sangue, os olhos cuspindo fogo?

e ainda por cima colocar o termo "periferia" na equação?

e vislumbrar um horizonte de possíveis notícias "positivas", para além da tempestade apocalíptica ininterrupta que enche de dinheiro as burras dos impérios de comunicação? (e as notícias que vêm de lá de dentro, você cultiva o hábito de acompanhar?)

ficam aqui uns convites.

reportagem extraída da "carta capital" 467, de 24 de outubro de 2007.


A PERIFERIA NÃO IMPORTA
O "PAC da cultura", de 4,7 bilhões, é recebido sem entusiasmo

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Ouve-se um silêncio ensurdecedor no Brasil desde o último dia 4, quando o ministro Gilberto Gil lançou, na presença do presidente da República, o Programa Mais Cultura, também (des)conhecido como "PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da cultura". Foram anunciados investimentos de cerca de 4,7 bilhões de reais até o final do governo, destinados prioritariamente a municípios com os maiores índices de violência e os menores índices de educação básica, áreas de conflito, territórios de identidade (como reservas indígenas e comunidades quilombolas), favelas, periferias e regiões rurais.

A imprensa compareceu em peso à solenidade, mas nos dias seguintes as notícias publicadas foram escassas e telegráficas. A comunidade cultural, que se insurgiu agressivamente contra o Ministério da Cultura (MinC) em episódios como a tentativa de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), se calou.

Há quem aponte, mas apenas sob a condição do anonimato, um possível viés assistencialista ou de um suposto pendor populista do PAC cultural. Isso seria detectável na disposição de um parágrafo do decreto que instituiu o Mais Cultura, de que "as regiões do Semi-Árido e do São Francisco são, para fins deste artigo, prioritárias". Mas, em público, a (pouca) repercussão oscila entre o silêncio e o elogio. Um crítico feroz em episódios anteriores, o produtor Luiz Carlos Barreto afirma, provocado por CartaCapital: "O PAC cultural representa um avanço histórico. Até esta data nunca se elaborou um plano visando estabelecer políticas públicas de forma sistemática para a cultura".

Gilberto Gil interpreta as reações silenciosas: "A imprensa vive basicamente do mal do mundo. É como no jargão americano, 'bad news is good news'. Estamos dando boas notícias que não estão na linha de conflito, divergência e polêmica". E ensaia uma leve provocação: "O silêncio também pode significar aprovação, ausência de questionamento".

O aporte anunciado até 2010 é de 2,2 bilhões de reais vindos do orçamento da União e 2,5 bilhões de reais oriundos de parcerias, contrapartidas, financiamentos e patrocínios por leis de incentivo. "É um programa com abrangência e escala, que poderemos fazer com números, quantitativamente, no País inteiro", diz Gil. "Dos 4,7 bilhões previstos, pelo menos metade é de recursos que serão executados em outros ministérios, em programas conjuntos", explica.

Com o Ministério da Justiça, foi firmado acordo para implantar nos territórios com os maiores índices de homicídios do País 384 Pontos de Cultura (um dos eixos centrais da atual gestão, em geral ignorados pelo noticiário), oito Pontões de Cultura e sete bibliocas multiuso.

"A idéia é não tratar o problema da violência só como questão de polícia", justifica o secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira. "Os índices atestam uma enfermidade social profunda, que afeta primeiro as comunidades carentes, sem acesso a saúde, educação, cultura. Em geral só se fala em polícia, e como não está dando certo se exige cada vez mais ação violenta, a ponto da histeria, da exigência de extermínio", diz, em defesa da utilização de cultura como ferramenta antiviolência.

Há sinais de que a dita comunidade cultural não se sente a princípio tocada pelo PAC da cultura. "É mais direcionado à base da população, não aos produtores culturais e artistas de classe média. Prioriza a feitura de cultura como promoção de cidadania, pela população, e não pela nossa categoria", diz o presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, Ney Piacentini.

"Ou o meio cultural concorda que o governo dirija atenção para o lado mais carente, ou então está tão preocupado com o próprio umbigo que nem percebeu. O meio profissionalizado só se interessa por uma notícia quando há dinheiro envolvido. É uma visão curta, por parte de um meio que quer questionar, que pretende ter um ponto de vista crítico", ele completa.

Diz o presidente do Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo, André Sturm: "É uma iniciativa muito boa. Lembra aquelas coisas muito grandes, ambiciosas, cheias de grandes intenções. Vai depender de como serão alocados os recursos. Numa primeira impressão, o cinema não parece algo que sofrerá um impacto significativo. Parece ser relativamente inócuo para o setor".

"O programa me surpreendeu, porque é uma atitude real, factível, que integra ministérios, torna a cultura uma questão de Estado. A preocupação é como se vai dar a distribuição dos recursos", diz Carlos Zimbher, que preside a Cooperativa de Música. "O fato de as pessoas terem mais acesso beneficia a cultura de um modo geral, mas não senti que efeito direto possa ter para a música, para um músico".

O impacto não deve ser pequeno, se forem de fato cumpridas metas como a de zerar o déficit de bibliotecas nos municípios brasileiros e a de fazer os Pontos de Cultura instalados pelo País saltarem dos atuais 630 para 20 mil até 2010.

Quanto aos Pontos de Cultura, discorre Juca Ferreira: "Com eles, o Estado reconhece a cultura que é feita nas comunidades. Gera-se qualidade de vida, sensação de pertencimento e uma economia informal que cabe ao Estado qualificar. São um sucesso, estão conectados em rede, repercutem para fora do próprio gueto".

Para o editor Felipe Lindoso, autor do livro O Brasil Pode Ser um País de Leitores?, a meta de levar bibliotecas a todas as cidades do País é factível. "O governo avançou bastante nessa questão. Até 2003, avaliava-se que cerca de 20% dos municípios não tinham nenhuma biblioteca. Os números atuais indicam que cerca de 600 municípios ainda não têm. Ou seja, o programa do MinC já atingiu metade do que havia antes. Outra coisa é a renovação e modernização das bibliotecas existentes. Quanto a isso, pouco foi feito."

Lindoso diz que não vê pontos negativos no Mais Cultura, mas parece sugerir dúvidas quanto à execução. "É incontestável que o ministério não tem estrutura. Não tem delegacias em todos os estados, não sabe o que acontece efetivamente com os recursos que transfere, não sabe se as bibliotecas estão abertas, se os Pontos de Cultura estão funcionando."

Ferreira sugere que o patamar quantitativo inédito do programa deve colocar o ministério na mira de novas cobranças. "Solicitamos a parceria da Controladoria Geral da União (CGU) para que não haja desvio de dinheiro. Esta gestão do MinC está até hoje transparente, republicana, em estado de excelência ética", diz, em tom de desafio.

Outro ponto sensível que ressurge é o da "contrapartida social", que no início do primeiro mandato causou gritaria geral no establishment cultural e colocou Gilberto Gil em contraponto com o ministro Luiz Gushiken. Então contrário à contrapartida, o MinC ajuda a relançar o conceito, primeiro num decreto de 2006 e agora numa portaria que disciplina a democratização do acesso a bens culturais, inclusive em relação às leis de incentivo. Assinada no dia 4, a portaria ainda não foi publicada no Diário Oficial.

Fala-se, ali, na obrigatoriedade de "distribuição gratuita de obras ou de ingressos" por parte de beneficiários dos programas de incentivo, como medida de promoção de igualdade de oportunidades.

"O MinC tem tentado mudar a Lei Rouanet, mas em alguns casos de forma sub-reptícia. Lei se muda no Congresso, mudar por portaria fere o Estado de direito", critica Lindoso. Ferreira diz que o ministério "se atrasou" na "necessária" modificação da legislação, mas garante que isso será feito por projeto de lei.

Outro projeto que deve ser atrelado ao PAC é o Vale-Cultura. "O maior impacto será a possibilidade de recolocar de 30 a 40 milhões de espectadores nas salas de cinema. Com o vale cultural, a população trabalhadora de baixa renda voltará a freqüentar cinema, teatro, comprar livros, discos", opina o produtor Barreto.

Ney Piacentini aborda a contrapartida por outro ângulo: "Dizem as línguas que os produtores não vão querer a burguesia misturada com o populacho num mesmo palco, e aí haverá um afastamento da iniciativa privada da Lei Rouanet".

Mesmo sob esse aspecto, o silêncio é ensurdecedor.

*

a seguir, "bônus track", uma transcrição da rápida entrevista telefônica com o ministro que originou as declarações inseridas na reportagem.

pedro alexandre sanches - o sr. faria uma tradução do programa mais cultura para a vida real? em que ele pode e pretende modificar, alterar, melhorar o cotidiano dos brasileiros?

gilberto gil - se a gente considera, e tenho impressão que a sociedade brasileira vem compreendendo essa consideração cada vez mais, que a cultura em todas as suas dimensões é um bem essencial para a vida das pessoas, e além disso um direito, um programa desse se coloca como um atendimento a essas considerações. é um programa que cria escala, aproximando-se da dimensão das necessidades brasileiras, pela grande população que o brasil tem, pela grande variedade de formação cultural ou de formações culturais que tem. então uma possibilidade que dá escala a um trabalho já ambicioso de ampliação da visão de cultura, da abrangência da cultura no brasil, é um programa com abrangência e com escala. abrangência no sentido das variedades todas, culturais, do ponto de vista sociológico, de tratos sociais diferenciados, do ponto de vista econômico das diferentes classes. e em escala, porque é uma coisa que podemos fazer com números, quantidades, quantitativamente, de uma forma bem ampla no país inteiro. vamos sair de um para dez, em termos de escala.

pas - uma coisa bastante evidente nele é que pretende um atendimento à populações mais carentes, de regiões mais violentas, e assim por diante, um conceito diferente daquilo que nos acostumamos a entender como a dita comunidade cultural do brasil. há uma mudança de foco?

gg - é por isso que falei da abrangência. o conceito cultural do brasil, nesta nossa gestão, está ganhando uma outra abrangência, que nós acreditamos que não é apenas um capricho nosso, um viés nosso ou uma vontade nossa. é uma necessidade do país, da nação inteira, e é um atendimento a uma visão contemporânea de cultura, que se instala no mundo inteiro. veja que nós acabamos de aprovar na unesco um estatuto internacional de alto porte, de alto significado, que contempla exatamente a diversidade cultural como uma característica importante da civilização moderna, que precisa ser atendida. então um programa como esse está na linha desses atendimentos, de visões dessa ordem.

pas - ele pode ajudar, desse modo, a transformar a cultura brasileira e o brasil?

gg - evidentemente. não diria transformar, mas ajudar que ela se estenda, se consolide em profundidade e em extensão, naquilo que ela pretende ser, precisa ser e possa ser. é um país com uma diversidade cultural imensa, com manifestações de extrema originalidade, com uma importância muito grande para a transformação do mundo, da humanidade, não só do próprio brasil. a contribuição própria, particular que o brasil pode dar para o mundo hoje é reconhecidamente importante para o processo civilizatório todo. então, se a gente mexe aqui nessa questão, como eu disse, com abrangência e com escala, a gente está dando uma contribuição importantíssima para o país e para o mundo.

pas - em outros momentos e ações dessa gestão do minc, houve muita controvérsia e muita discussão. o programa mais cultura foi lançado já faz algumas semanas, e parece haver um silêncio forte ao redor dele. não parece mobilizar a mídia, nem para o lado positivo nem para o positivo. como o sr. interpreta isso?

gg - olha [ri], não sei lhe dizer. como a gente conhece muito bem, a imprensa vive do mal do mundo, basicamente. 'bad news is good news', é um jargão americano celebradíssimo no mundo inteiro. é um pouco por causa disso, estamos dando boas notícias que não estão digamos assim na linha de conflito, de produção de divergência, de polêmica. acho que a leitura que a imprensa faz é "não estão fazendo nada mais que a sua obrigação" [ri].

pas - e como o sr. recebe essa leitura, ao lançar um programa dessa extensão?

gg - aí não sei, isso aí a imprensa é que tem que dizer, não é uma resposta que eu possa dar. é papel da imprensa, não sou eu que vou dizer, se a imprensa diz "não, é assim mesmo"... isso nós não temos que abordar com ênfase nem ver com entusiasmo, porque é nada mais que a obrigação do estado que está sendo cumprida. essa é uma forma de ler. outra seria dizer que, não, isso é uma coisa excepcional, afinal de contas é uma coisa positiva que está se conseguindo, que tem essa coisa da abrangência e da escala, que é nova, e tudo isso deve ser noticiado, celebrado como notícia, como importância noticiosa, e portanto deveríamos dar mais espaço. essa é uma outra leitura. mas, aí, essas perguntas sobre leituras desse tipo ou de outro tipo, escolhas a serem feitas pela imprensa, é uma resposta que só a imprensa mesmo pode dar, não é? essa pergunta tem que ser feita a seus colegas.

pas - uma coisa que já abordamos em outra ocasião é a instância autocrítica: o que haveria na capacidade do ministério ou do governo em comunicar essas boas notícias, de sensibilizar a imprensa e a população. sei que isso não é totalmente verdade, porque soube que havia muitos jornalistas no lançamento, mas mesmo assim no dia seguinte as reportagens não apareceram.

gg - justamente.

pas - não há algo errado no próprio modo do governo se comunicar, nesses momentos?

gg - não sei. é uma questão que já vem sendo levantada, o que é a boa comunicação, o que é a comunicação eficiente, o modo ágil de trabalhar com a comunicação social hoje no brasil, especialmente do ponto de vista do governo. também não sei direito o que é isso. há a visão produtivista da comunicação, que perpassa o setor privado, por exemplo, e que confere a ele uma aura de eficiência e de capacidade de comunicar rapidamente os marketings etc. tudo isso, transposto para a área do governo, do estado, não sei em que medida é a mesma coisa, até que ponto são os marqueteiros que têm que trabalhar a comunicação social do governo ou não. é uma outra questão também que não sou eu que tenho que responder. há várias possibilidades. a gente trabalha de uma forma mais clássica, partindo primeiro do pressuposto de que o interesse público é sempre básico, prioritário e importante. portanto, tudo que está sendo feito pelo estado tem que ser divulgado e promovido, para tudo, para que haja crítica, aplauso, tudo. a gente trabalha com essa visão, de que a notícia do trabalho do governo é importante. portanto, a mídia deve estar atenta, trabalha com isso, basicamente as notícias sobre desempenho do estado estão nas primeiras páginas do jornal o tempo todo. mas em geral estava dentro daquela questão que a gente conversou antes, "bad news is good news", quando a coisa é polêmica, provocativa, negativa, constrangedora etc. etc.

pas - até mesmo nesse sentido, sendo um projeto que lida com grandes questões e com escala, como o sr. disse, o fato de a repercussão negativa não ter havido também, como poderia ser interpretado? desta vez não há interesses contrariados?

gg - quando você falou, no início, que havia um silêncio, eu pensei logo: um silêncio significa aprovação, digamos, a ausência de questionamento. porque para a imprensa fazer alarde de uma coisa desse tipo, só se fosse a partir de uma sensação de coisa mal resolvida, mal digerida, mal acatada.

pas - sua expectativa é que essa leitura negativa não aconteça, já que não aconteceu num primeiro momento?

gg - espero que não. acho que, tudo bem, lançou-se esse programa, tem abrangência e tem escala, ataca problemas importantes na relação da cultura com a vida social do país, com segurança, meio ambiente, saúde, educação etc. "Ah, que bom, não estão fazendo mais que a obrigação, vamos agora ver se funciona" [ri]. acho que é sempre essa, basicamente, a visão que a imprensa tem das coisas. "vamos ver se o dinheiro sai, se o programa funciona, se o governo tem fôlego para executar nessa abrangência e nessa escala." ali, se não tiver, provavelmente estarão preparados para dirigir as baterias contra nós. mas é assim mesmo.

pas - como está seu fôlego dentro do minc para enfrentar os desafios que vêm a seguir?

gg - está de bom tamanho. e eu diria que seria muito difícil executar coisas nessa escala com a envergadura que o ministério tem de cargos etc. mas, como vamos executar transversalmente com o governo... dos 4,7 bilhões previstos, pelo menos metade deles são recursos que vão ser executados em outros ministérios, com programas conjuntos com outros ministérios. isso também vai facilitar um pouco nossa vida do ponto de vista de estarmos preparados como estrutura para trabalhar uma coisa desse tamanho.

pas - eu queria que o sr. destacasse alguns pontos que considera de maior ou de fundamental importância dentro do programa. o que ele traz de realmente inédito e importante?

gg - eu não destacaria assim... alguns deles são extensões de programas que já estão sendo realizados pelo ministério, alguns outros vão começar - é a transversalidade, ou seja, o trabalho com outras áreas, como é caso da educação, da saúde. a criação dos agentes de cultura é importante, porque vão trabalhar levando a lógica dos agentes de saúde e de outros setores para a cultura, fazendo transversalidade com esses outros setores. acho uma coisa auspiciosa. a ampliação dos pontos de cultura, um programa já consagrado do ministério, é uma coisa auspiciosa. sair de mil pontos para possíveis e prováveis 15 mil ou 20 mil pontos eu também destacaria.

pas - em pronunciamentos recentes o sr. mencionou uma vontade de sair do minc, como está isso hoje?

gg - não, eu já esgotei minhas explicações sobre isso. estou no governo, estou aí no ministério, trabalhando, lançando esse programa, articulando as áreas todas do ministério e as outras áreas do governo para fazer tudo isso. estou trabalhando, a perspectiva é trabalhar. a última declaração que dei dava conta de que com certeza até o fim do ano ou janeiro do ano que vem eu estarei no ministério.

pas - pergunto isso porque este parece ser um momento de retomada de fôlego, um projeto que renove o...

gg - ...o entusiasmo, o interesse, é. pode ser isso, sim, também. é um dos significados de termos conseguido o que conseguimos agora.

o ministro tem de desligar, vai tomar o próximo avião, precisa embarcar.

quinta-feira, outubro 18, 2007

"quem quiser gostar de mim, eu sou assim"...

O TEMPO DELE É HOJE (*)

Paulinho cria as primeiras músicas inéditas em 11 anos, põe dois filhos na banda e fala do desapego pelo disco

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Autor de sambas belos e melancólicos como Dança da Solidão (1972), Sinal Fechado (1969) e Na Linha do Mar (1973), Paulinho da Viola anda transbordando alegria. É o que se pode notar no documentário que acompanha o DVD recém-gravado para o modernoso projeto Acústico MTV, no qual histórias contadas pelo artista de 64 anos levam os colegas músicos a sonoras e gostosas gargalhadas.

O efeito se reproduz na entrevista que o sempre sério e compenetrado artista concede a CartaCapital. As histórias soam engraçadas, mesmo que não sejam. E ele exprime prazer especial em relembrar situações difíceis em que se meteu pelo lado oculto da vida de um músico, quase sempre vivido longe dos olhos e ouvidos da grande maioria do público. "A gente enfrenta de tudo, cara", resume, no rosto uma expressão entre desconsolada e divertida.

Um exemplo: "A primeira vez em que toquei neste espaço (a entrevista se dá no saguão do hotel Maksoud Plaza, em São Paulo) foi uma das piores coisas que aconteceram comigo. Uma das inúmeras. O show começou, aplausos, quem estava sentado bebendo se virou para ver. Mas um homem ficou o tempo todo de costas para mim. O tempo todo. É um direito dele, claro, vou dizer o quê?".

Admite que a indiferença do não-espectador o perturbou e desconcentrou, e conta como fez para contornar a situação. "Teve uma hora que disse para mim: olha, essa pessoa não existe (risos), é um fantasma que está aí, deve estar ouvindo, curtindo, só não quer ver".

Outro caso: "Conheço uma pessoa de Campina Grande (PB), o Silvestre, que trabalha numa grande indústria de couro. Eu estava fazendo o Projeto Pixinguinha lá, e no meio do show uma gambiarra quebrou e caiu em cima do público. Parei, pedi calma, tiraram uma pessoa que se machucou. Anos depois o encontrei em Copacabana com a família, veio conversar comigo, disse: 'Era eu, quebrou meu nariz, tenho o maior orgulho disso!' (risos)".

Recorda-se de Belarmino, técnico de som num show em Juiz de Fora (MG). "Fazíamos muitas coisas com os estudantes, estava lotado, a turma começou a chegar cedo. Mas a mesa de som do Belarmino queimou, ele estava resolvendo. Passaram-se horas, voltou dizendo que não tinha achado mesa nenhuma. As pessoas na platéia já queriam quebrar tudo. O pessoal da organização começou a sumir. Sumiu todo mundo."

Ele conta o desfecho: "Quando percebi que algo ruim ia acontecer, entrei no palco, sem ninguém me chamar. O público urrava, eu não tinha microfone, comecei a gritar, pedi que quem estava nas primeiras fileiras fosse falando para os de trás. Prometi que voltava na quinta-feira seguinte, que os ingressos iam valer. O clima foi serenando, o pessoal foi saindo. Na outra quinta voltei e fiz o show, tive que ir de ônibus".

Aquele incidente, totalmente "acústico" e sem música, contrasta com o chamariz da marca Acústico MTV a que Paulinho agora adere. Ele mostra saber da inadequação do título do projeto. "Não sei o que chamam 'acústico'. Já toquei até com sintetizador, nos anos 80. Uso baixo elétrico desde os anos 70, no próprio show uso violão eletro-acústico. O acústico total, sem nenhum microfone, é impossível."

O repórter comenta que ficou preocupado num show recente no teatro Fecap de São Paulo, em que Paulinho esquecia algumas letras, parecia não estar bem. "É possível. Tem dias legais e outros não. Essas coisas podem acontecer, acontecem mesmo, com muita gente. Preciso de concentração, às vezes dá um branco. A gente enfrenta muita coisa, né?"

Mais uma saia justa: "Aconteceu uma vez de uma pessoa na platéia estar tão entusiasmada (gesticula com as mãos erguidas) que falava, cantava junto, chorava. Aí tive que, muito assim..., dizer 'olha, estou muito contente de você estar me acompanhando, mas queria que você desse uma força, fizesse isso um pouquinho mais baixo, para eu poder me concentrar'. Improvisei um negócio para a pessoa não ficar chocada, né? O cara ficou triste, rapaz. Sentou, não falou mais uma palavra. Acabou o show, todo mundo foi embora, ele ficou lá (faz gesto de imobilidade)".

São histórias que soam banais, mas cujas entrelinhas estão repletas de significados profundos, até porque emitidas por um artista que não sabe (ou não deseja) nunca tratar de banalidades, como atestam letras simples apenas na aparência, como 14 Anos (1966), Coisas do Mundo, Minha Nega (1968), Pecado Capital (1975) ou Vela no Breu (1976).

Como ele próprio canta num samba de Wilson Batista e José Batista, Paulinho é assim, quem quiser gostar de mim, eu sou assim. Em vez de explicar literalmente por que andou tão arisco a contratos com gravadoras e composições novas, usa de sutileza. "Estive várias vezes com contrato na mão para assinar, mas alguma coisa me dizia 'não faz'. O pessoal estava dizendo que ia acabar tudo, por causa de pirataria, MP3, e eu: 'Ah, então ótimo, tá bom' (risos)". E conta mais uma história.

"(O músico) Charles Gavin estava fazendo aqueles CDs de resgate, ligou para mim propondo relançar os discos do início dos anos 80 na Warner. Eu sabia que havia algum problema com aqueles discos, mas não me lembrava mais. Fui ouvir e comecei a lembrar de coisas desagradáveis, que o disco não foi muito bem aceito até pelo pessoal da gravadora. Havia o momento do corte, da mixagem, em que a gente não estava presente, quando chegava o disco pronto o som era totalmente diferente. Eu pensava (põe as mãos na cabeça): isso vai ficar para sempre."

Gavin propôs que ele ouvisse a versão original do disco, a "fita máster". "Quando ouvi, fiquei emocionado. Pô, mas esse era o meu disco, não o que saiu. Isso acontecia com todos os artistas, todo mundo reclamava. Tinha muita briga, discussão." Autorizou a reedição por Gavin.

E sintetiza: "Desde Eu Canto Samba (1989), achava que o disco não era a primeira coisa". O Acústico MTV inclui apenas quatro músicas novas. Bebadosamba, o CD de inéditas mais recente, é de 1996, e foi o primeiro de seus trabalhos que recebeu um disco de ouro, equivalente, na época, a 100 mil cópias vendidas (hoje, por inanição do mercado, os produtores de discos baixaram o prêmio "de ouro" para 50 mil).

Curiosamente, desta vez Paulinho topou assinar os papéis da Sony BMG, exatamente quando gravadoras apertam o cerco e propõem contratos não só de lançamento de discos, mas também de agenciamento de shows e publicidade (leia texto à pág. 66). "Hoje há um departamento que se propõe a cuidar da carreira do artista, a oferecer um pouco mais. Achei a proposta razoável. Discutimos muito, mostrei como é minha forma de trabalhar. Sinto o entusiasmo de todo mundo, vai ser bom para as duas partes", justifica.

Sem nunca perder o tempo da sutileza e do bom humor, Paulinho passeia por assuntos diversos. Relembra Natal da Portela, o antigo benfeitor de sua escola de coração, ligado a samba, futebol e contravenção. "Seu Natal era uma pessoa muito generosa, e muito autoritária. Tinha um braço direito, Armando Passos, frágil fisicamente e uma das pessoas mais doces e inteligentes que conheci. Seu Natal estourava por qualquer coisa, aí seu Armando falava baixinho no ouvido dele, ele acalmava na hora", lembra.

"O jogo do bicho era reprimido, mas não era. Havia repressão para ter certo controle, mas todo mundo jogava no bicho. Minha avó Júlia jogava no bicho. Pelo telefone."

Compara os tempos de diálogo interrompido e solidão opressiva de Sinal Fechado com os de agora. Conclui que hoje não faria mais aquela música e que o tempo de agora é melhor. "Com tudo, o Brasil é melhor hoje. Este é um sentimento meu muito recente. Tomara que as coisas se mantenham num nível de tensão, que é importante, em que seja possível algum diálogo. A gente tem que tentar preservar isso, mesmo que às vezes precise ser quase agressivo. Estamos avançando. A vida não está parada, não sou pessimista. Começo a sentir que precisamos das discussões efervescentes que estão aí."

A avó Júlia volta a boiar pelo ambiente, em mais uma historinha. "Ela conversava com as novelas, falava com os personagens. Nunca vi novela, mas me divertia vendo minha avó (faz gesto de quem tricota). O personagem dizia que ia fazer alguma coisa, e ela: 'O quê? Você vai fazer? Não vai fazer coisa nenhuma'. Entrava na novela."

Também sobre política, prefere não ser literal, mas não deixa nada sem resposta. "Leio todo dia, acompanho. Estou percebendo que há um embate, interesses atingidos. Espero que isso possa, de alguma maneira, trazer benefícios a todos, sem distinção. Que o interesse de todos seja maior que o de meia dúzia."

Confirma que atravessa uma fase de bom astral. Conta, sem entrar em detalhes, que resolveu "umas coisas domésticas, particulares". Atravessou o momento difícil de ter de afastar do palco o pai, César Farias, ex-integrante do histórico conjunto Época de Ouro, que o acompanhava ao violão há décadas. "Ele está com 88 anos, o tempo do acompanhamento não estava dando mais. Mas ele está legal, converso muito com ele, com minha mãe também."

O substituto é um de seus filhos, João Rabello. Outra filha, Beatriz Baptista, integra o coro do Acústico MTV, ao lado de Muiza Adnet e Cristina Buarque, irmã de Chico. César Farias não aparece em pessoa, mas o CD e o DVD começam com o samba Timoneiro (1996), e a voz calma de Paulinho da Viola profere os versos imaginados por Hermínio Bello de Carvalho: Meu velho um dia falou com seu jeito de avisar/ olha, o mar não tem cabelos que a gente possa agarrar.


NOVA ORDEM
Outro modelo de contrato
(o tal "texto à pag. 66")

Após uma década sem contrato fixo e duradouro com gravadoras, Paulinho da Viola cedeu à proposta da Sony BMG. O Acústico MTV é o primeiro projeto a sair com o selo Day 1 Entertainment. Trata-se de uma "agência de talentos" fundada pela multinacional em âmbito latino-americano, e propõe integrar lançamento de discos, produção de shows e intermediação em contratos publicitários.

Agressiva, a estratégia provoca temores em artistas e empresários musicais, alguns dos quais vêem na novidade uma ofensiva competitiva sobre lucros que antes pertenciam somente a eles. Segundo o gerente-geral da filial brasileira, Alexandre Schiavo, a Day 1 tomará para si fatias de 10% a 20% dos contratos publicitários e em torno de 20% das receitas obtidas com shows. "No caso de artistas novos, é natural que a porcentagem seja um pouco maior", completa.

"Pago ensaio, instrumento, cenário, marketing, apoio jurídico. Mas não tem questão leonina, a outra parte tem que aprovar tudo. Não é pegar uma parte do lucro, é investimento em artistas." Ele diz que contratados da gravadora que não queiram aderir ao projeto não serão isolados ou desprestigiados.

Entre os parceiros iniciais da Day 1 está a ZV2, de Zeca Vitorino, que agencia contratos publicitários para artistas da Rede Globo, entre outros. Em alguns países onde se instalou, a Day 1 administra carreiras de jogadores de futebol. "Acaba resultando em sinergia, fala-se de mercado de celebridades", resume Schiavo, com a ressalva de que, aqui, a prioridade será da música. Mas, adiante, conta que já foi procurado por jogadores, e "está conversando".

Nos últimos anos, artistas como Chico Buarque, Maria Bethânia, Gal Costa e Elba Ramalho abandonaram a gravadora por não concordar com os termos de renegociação de contratos. "Para mim, é questão de ego e vaidade", dispara Schiavo.

E Paulinho aparece na contramão, como primeiro artista da Day 1. "É muita sorte nossa, né?", comemora o executivo. "Ele é sensacional, estou muito feliz." – PAS


(*) textos extraídos da "carta capital" 466, de 17 de outubro de 2007. uns "bônus" aparecerão aqui mais adiante.

terça-feira, outubro 09, 2007

eu (não) sou cafona (, não)!

da "carta capital" 464, de 3 de outubro de 2007. na seqüência, frases-bônus extraídas das entrevistas com waldick soriano, patrícia pillar e josé milton.


1
NÃO SOU CAFONA, NÃO
Censurado pela ditadura e até hoje desprezado pela MPB, Waldick Soriano é cultuado em DVD dirigido por Patrícia Pillar

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Pelo visual altivo, o homem no palco parece um sambista carioca de raiz, um garboso cantor norte-americano de blues ou um nobre membro da velha-guarda musical cubana. Mas, não, ele é Waldick Soriano, expoente da música rotulada como "cafona" na década de 70 ou "brega" dos anos 80 em diante.

Aos 74 anos, o autor e intérprete do sucesso popular Eu Não Sou Cachorro, Não (1972) tem a obra reavaliada pelas mãos de uma moça da "fina flor", a atriz Patrícia Pillar. Na companhia de Waldick, ela se torna diretora de um show recém-lançado em CD e DVD e de um documentário que deve ser finalizado até o início de 2008. A eles se somou um produtor ligado à MPB, José Milton, que recrutou uma orquestra formada por músicos de naipe para a gravação em Fortaleza, Ceará, onde mora o cantor. "Ele é um cantor de verdade, um cara popular, que está aí, vivo, chiquérrimo, muito bem arrumado. Aquele cara sabe das coisas", elogia José Milton.

A produção esmerada e o apuro musical contrastam com a imagem pública fixada em torno do jeitão abrutalhado, dos boleros derramados e da fala desbocada de Waldick, nascido em Caetité, no sertão da Bahia. "Ele é um doce. Criou o lado bruto para sobreviver. Não é mole, o cara foi lavrador, garimpeiro. Em São Paulo, foi engraxate, faxineiro, servente de pedreiro", resume Patrícia, que se declara fã desde a infância.

Tampouco a coexistência harmoniosa entre profissionais egressos de universos bem distintos foi constante durante a trajetória do artista. Houve, de fato, um cisma entre as facções "cafona" e "sofisticada" da canção nacional.

"Não sou contra ninguém", afirma Waldick, em referência ao time da MPB. "Não sou, sendo. Música popular brasileira é música romântica, samba, forró. Essa chamada MPB é coisa de elite. O estilo que eles acham o melhor não tem nada a ver com música popular brasileira. É a menos tocada em todos os lugares. Elite já acabou, hoje o povo vive de realidade", prossegue, no mesmo tom de doçura observado por Patrícia.

Ela coloca em contexto a cisão: "Havia uma questão política de esses artistas serem colocados como quase de direita, em contraponto aos movimentos de universitários. Mas eram eles que sustentavam a gravadora para que pudesse gravar Chico e Caetano".

"Waldick sempre fez muito sucesso e foi muito verdadeiro, sem nunca depender de grandes esquemas de gravadoras", diz José Milton, que o acompanhou em alguns shows no início dos anos 70, mas nuca havia gravado com ele. Lembra que o erudito Guerra Peixe foi um dos primeiros arranjadores com que o cantor trabalhou, como em Perfume de Gardênia. "Ele chegou a ir a reuniões de comunistas com Guerra Peixe", diverte-se o produtor.

A muralha entre gêneros musicais e ideologias crescia na década de 70, mas o compositor de versos como eu também existo/ eu também sou gente, de 1972, não hesitava em transpor barreiras, como no namoro com a socialite Beki Klabin. "Tinha gente da alta que comprava disco meu escondido", ele provoca. "Com a saudosa Beki Klabin foi bom, quebrou aquele gelo de que Waldick Soriano era o cantor da ralé. Ela me colocou na melhor boate do Rio, foi um sucesso maravilhoso. Depois fui para São Paulo, idem, só tinha elite, empresário. Só casaca."

No mesmo ano de Eu Também Sou Gente ecolodiu o maior emblema musical do artista, de versos como eu não sou cachorro, não/ para ser tão humilhado/ eu não sou cachorro, não/ para ser tão desprezado. Waldick refuta qualquer teor de protesto social em Eu Não Sou Cachorro, Não. "Não tem nada de protesto. Só canto música que vai pelo caminho certo que é o amor. Realmente é um protesto, mas não político. É um grito que está na garganta de todo mundo que ama."

A empatia podia ocorrer pela via prosaica do romantismo, mas repercutia no sentimento de exclusão compartilhado pelo artista e seu imenso público, como defende o escritor Paulo Cesar de Araújo em Eu Não Sou Cachorro, Não (2000). O livro trouxe de volta um fato escondido há décadas sob o tapete da MPB, de que os “
"cafonas", embora tachados de "alienados", também foram amplamente perseguidos pela ditadura militar.

Foi censurada a regravação de 1974 do bolero Tortura de Amor, que Waldick lançara no início dos anos 60. "Tem coisa que não dá para entender. Sempre tive boas relações com os militares, até hoje tenho. Só porque a música falava de tortura. Censuraram essa e Fujo de Ti, que só fala de amor. Não deu para entender."

À época, expôs-se à fúria da imprensa e de políticos tanto da Arena como do MDB, ao defender que Maria Madalena havia sido amante de Jesus Cristo. Um funcionário estatal o diagnosticou "portador de deformações psicológicas". Mesmo assim, hoje afirma que gostaria que a Censura voltasse. "Estão avacalhando, tem muita música aí falando bobagem. Hoje todo mundo quer ser cantor, tenha voz ou não, com musiqueta de letra sem pé nem cabeça. Aí tem que pagar, tem que entrar na lei do jabá. Se pagou, toca. Aparece cada figura, meu Deus do céu. A mídia é muito culpada, porque aceita dinheiro. Muitos caras na tevê e no rádio são jabazeiros, mas, se for falar disso com eles, não gostam".

Declara-se saudoso do regime militar, "doa a quem doer": "Vivi por este Brasilzão, só tinha asfalto até Feira de Santana, para cima ninguém conhecia asfalto. Hoje tem asfalto em todo lugar, e foi feito pelo Exército". Isso não implica antipatia por Lula: "Ele não está tendo pulso para resolver o problema, mas não chegou ao ponto que chegou à toa, não. É quiabo, escorrega à beça. Acho ele o político mais interessante do Brasil".

Diz que "violência" é o principal problema do País, e, nessa toada, não poupa nem a Rede Globo, cuja gravadora, Som Livre, bancou a edição do CD e DVD Ao Vivo. "De madrugada, às vezes estou com insônia, mas certos filmes da Globo não vejo. A Globo me desculpe, que sou 'globense' agora, mas é muito filme violento. Não é mais tempo para isso."

Patrícia Pillar, esposa do deputado federal cearense Ciro Gomes, planeja lançar o documentário pelo Canal Brasil, da Globo. E diz que é coincidência a proximidade física: "Só descobri que ele morava em Fortaleza depois da primeira entrevista. Para o show, seria mais fácil trazê-lo para o Rio, mas eu queria o encontro com um público que é doido por ele. Mesmo fora do circuito da imprensa, ele lota duas noites num teatro de 1.200 lugares". Soriano explica a opção pelo Ceará: "Estou prestigiando o pessoal do Nordeste, que sempre foi o que mais me acolheu. É outro povo, mais aberto, que não esconde as coisas".

Patrícia se declara fascinada pelas contradições do personagem. "Ele se coloca como machão, o poderoso garanhão, mas é quase um escravo das mulheres. Isso está nas letras. Em Fujo de Ti, reclama da mulher e termina dizendo mas se quiseres voltar pra mim ainda te quero. Talvez o lado durão seja para esconder a fragilidade", diz.

Do mesmo modo, ela procura compreender as declarações pró-ditadura e censura. "Waldick tem só o quarto ano primário. Quando veio a inteligência e a politização da MPB, acho que ele sofreu alguma humilhação. É uma reação que teve lá atrás e repete até hoje, um mecanismo de defesa." Eis aí de novo, no termo "humilhação", a razão de ser do bolero de amor Eu Não Sou Cachorro, Não, com o qual, de modo explícito ou envergonhado, tantos brasileiros se identificaram.


2
waldick soriano fala

"o dvd é ao vivo mesmo, não é montagem. o nosso está sendo considerado como um filme, mais um filme que um disco. já tinha feito um dvd, mas montado. agora, as pessoas que aplaudem notam que não tem nada de falso ali. assistem o cantor, a orquestra, o povo cantando e dançando."

"esse estilo que acham que é o melhor estilo não tem nada a ver com música popular brasileira. é a menos tocada em todos os lugares. é uma meia dúzia de pessoas que gostam de inventar as coisas de maneira errada. eles acham que são outro tipo de gente, musicalmente diferente da gente. não tem nada a ver. criaram essa diferença. chico buarque, que respeito como grande compositor, faz música romântica, popular. eles passaram a fazer música de protesto."

(sobre "eu não sou cachorro, não")
"é não pise em mim, não me maltrate, eu também sou gente. eu morava no rio, na ilha do governador, e criava muito cachorro. o maestro portinho falava que eu precisava fazer uma música sobre cachorro. fui cantar em natal, o avião atrasou, quando cheguei meu empresário abriu os braços, 'que demora! eu não sou cachorro, não!'. o cachorro estava me perseguindo. tinha um piano na casa da mãe dele, meu guitarrista tocava um pouco de piano, pedi um tom, estava com a música na cabeça. se não cantar ela, não tem show. eu gosto de cantar, não sou aquele cantor preguiçoso, não. também dependo do público."

"brasileiro é interessante. se não tem dinheiro, você é classe ralé, mas pode ter dinheiro e cultura nenhuma que passa a ser elite. deixa rolar. hoje me chamam até de frank sinatra."

"hoje o jabá é marca registrada pela mídia."

"o jabá veio das gravadoras também, todo mundo queria ser produtor de gravadora, sem condição. Naquele tempo não era em dinheiro, era em disco. saíam da gravadora com pacote de disco, 'para divulgar' (ri)."

(sobre a saraivada de críticas que recebeu nos anos 70 por "destratar" jesus cristo)
"foi em porto alegre, fui a uma churrascaria com a turma de rádio de lá, todo mundo bebendo, todo mundo falava o que queria. falei que maria madalena foi amante de jesus cristo. todo mundo ficou contra, mas a folha de lá me defendeu. não agredi ninguém, só falei o que pensava. sou católico. temos que ter respeito grande por jesus cristo. era um ser humano igual a nós. mas, para pessoas que não lêem, não se pode falar certas coisas. hoje não falo mais nada, peço a jesus que me ajude. o que sei da vida dele eu li nos livros sagrados, pelo que nos consta a bíblia não mente."

"não gosto de política. a gente acompanha, é obrigado, mas não gosto, não. mudo de canal. acompanhei muito a ditadura, o governo militar. não resta dúvida de que na época nós conhecemos grandes militares. cada um teve sua opinião."

"não tenho nada contra o lula. se for contra ele tem que ser contra os outros que passaram também."

"em feira de santana, um médico amigo meu perguntou de lupicinio rodrigues. foi um grande amigo meu, começamos a fazer uma música antes de ele morrer, que nunca terminei. dizia que 'o espelho ainda vai fazer careta para você'. é o homem falando para a mulher vaidosa, que acha que a beleza nunca acaba."

(a frase "o espelho ainda vai fazer careta para você" não caberia a um homem, também?)
"claro, todas as pessoas têm vaidade, e esquecem da realidade."

"eu vivo sozinho. sou casado, mas estou separado da mulher. ela vive no rio, tenho filhos lá, eu vivo em fortaleza."

"tenho duas filhas no rio, um em vitória, dois filhos em são paulo, uma filha na bahia, um no maranhão. de vez em quando aparece mais um (ri)."

"patrícia (pillar), muito inteligente, trouxe músicos do rio, material técnico, engenheiros. foi uma coisa bonita. vai dizer que desprezou músicos daqui? não, pegamos dois músicos daqui, outros do recife."

"patrícia é fora de série. nos conhecemos numa festa que fizemos em sobral, lá estavam ela e ciro gomes. ciro é meu amigo há muitos anos, ela eu conhecia de novela. no show, estava eu cantando, e ciro dançava com patrícia. ela veio, ficamos amigos. declarou que desde mocinha já era minha fã. os dois cantam todas, lembram de minhas músicas mais do que eu. ciro é muito popular, não é metido a besta, senta no chão, não está nem aí. patrícia não usa maquiagem, é uma moça muito simples. falo que ela caiu do céu, é a filha que não tive."

"estava sem freqüentar os programas do sul. chega um ponto em que vem a preguiça. agora tem que aproveitar a oportunidade, até tenho rejeitado shows, porque cansa demais, não sou mais o mesmo."

"estive em caetité em maio, foi uma beleza, uma festa total. dá saudade, um interiorzinho é bom, você passa uma semana e volta leve."

(peço o endereço para mandar a revista quando for publicada, ele conta que mora no mucuripe, lembro da música homônima de fagner e belchior)
"o bairro é considerado de elite. é bom, meu apartamento fica a 500 metros da praia."


3
patrícia pillar fala

"no processo do documentário, eu quis fazer um show nos moldes que ouvia nos lps de certa fase dele, com orquestra e grandes arranjadores, inclusive guerra peixe. dirigi o show, vi o material, achei que era um documento da obra, que aparecia como uma coisa específica."

"foi profundo, fiz um estudo da obra dele com (o compositor) fausto nilo, ouvimos mais de 500 músicas."

(quando pergunto "por que o waldick?")
"por que não o waldick? waldick soriano tem não sido por tantos anos, e como ele tantos outros. mas esse é um pensamento pós. sempre gostei dele, desde criança, no radinho de pilha. fui me ligar de quem era só depois, no programa do chacrinha."

"ele tinha um humor, uma certa galhofa, aquele jeitão americano e ao mesmo tempo do sertão da bahia."

"acho 'tortura de amor' uma das mais bonitas do cancioneiro brasileiro. fui procurar e descobri músicas lindas, para o meu gosto. ele tem muita sensibilidade musical. e me interessa a pessoa, o processo de vida."

"seria mais fácil trazê-lo para o canecão, mas eu queria o encontro com um público que é doido por ele. me interessa o fato de que ele é um cara que está fora do circuito da imprensa, mas tem os shows sempre cheios. quis fazer um encontro, era um cinema com palco pequeno, aumentamos o palco, abrimos uma pista de dança."
(falando da coincidência de seu personagem morar no ceará, ela lembra que a cantora cláudia barroso, ex-mulher de waldick, e que participa do dvd cantando uma faixa, também mora em fortaleza)

"a história é sempre contada sob o ponto de vista dos vencedores. (lembro que waldick é, sob vários aspectos, um "vencedor") sim, é um vencedor total!, ele fala isso. diz que falou que se vencesse na vida nunca mais voltaria à terra natal. eu perguntei se voltou, já sabendo que voltou. 'voltei para arrasar', respondeu."

"tem o depois do sucesso, que é interessante também. ele foi se isolando, foi não se achando. é muito altivo (comento que em geral quem alcança grande sucesso tende a abusar de tal sucesso, também). sim, e como é um cara bruto em certo sentido sofreu com isso. tem uma ingenuidade aí. é um tarzan, como ele diz. ele se expõe, fala coisas que as pessoas às vezes por conveniência não falam. volta como uma fera. (comento como ele foi doce ao telefone, durante a entrevista) ele é um doce. o lado bruto foi para sobreviver. não é mole, o cara é lá de caetité, vi fotos tão comoventes dele lá. foi lavrador. em são paulo, demorou entre gravar e estourar, e enquanto isso foi engraxate, faxineiro, servente de pedreiro. no início foi garimpeiro, é pesadíssimo. é tão bonito, tão cheio de humanidade."

"se tornou uma amizade (comento que waldick disse que ela é a "filha" que ele não teve). são dois anos de convivência. é muito na dele, reservado. só há dois meses falou isso de eu ser como uma filha, fiquei muito comovida. ele se coloca como machão, o poderoso garanhão, mas é quase um escravo das mulheres. isso está nas letras, talvez o lado durão seja para esconder uma fragilidade."

"os fãs, na fila do show, são um pouco como ele mesmo, por isso se identificam tanto, homens e mulheres."

(sobre as frases conservadoras que ele ainda exprime, como aquela em favor da censura)
"o tempo da ditadura era uma coisa cruel, ou você era comunista ou de direita. esse patrulhamento era muito violento. e se você não fosse nem uma coisa ou nem outra? o que observo é ele espremido em ter que ser uma coisa que não conhecia. é cheio de contradições, e isso é que é interessante e me causava curiosidade."

"gosto de música e tal, mas não penso numa carreira. há dois anos produzi um cd da eveline hecker cantando zé miguel wisnik (comento que ela transitou num largo arco, de wisnik a waldick). a gente tem uma riqueza no Brasil, não precisa jogar ninguém fora para o outro existir. viemos da guerra fria, hoje as coisas são mais sutis. não tem que escolher entre rock ou mpb. não tem que ter essa necessidade de se posicionar de uma forma radical, porque hoje a verdade não está numa coisa radical."


4
josé milton fala

"tenho um trabalho grande na mpb, mas já fiz muitos álbuns de nelson gonçalves. no caso do waldick, apesar dessas separações que fazem, é um cara que sempre foi amigo da gente. conheço ele desde moleque, vim do recife, ele sempre fez muito sucesso e sempre foi muito verdadeiro. nunca dependeu de grandes esquemas de gravadoras. é de uma honestidade e de uma sinceridade gritante. um grande intérprete de romance, na linha de bienvenido granda. não acho brega."

"trabalhei com ele agora, e uma vez no início dos anos 70. nos encontramos em belém e ele disse 'vamos viajar comigo uns dias'. fui. não sabia tocar guitarra, mas ele me convenceu, foi uma experiência maravilhosa."

(sobre o desprezo -repulsa?- que mídia e mpb costumam devotar aos "cafonas")
"não tenho noção disso, tem muita gente forte da mpb que também está sumida da mídia. ela corre atrás de quem interessa. waldick fez temporada com Xangai. todo mundo adora ele, zeca baleiro, fagner, nana caymmi."

“ele canta muito bem, não tem problema de andamento e afinação. é um cantor de verdade. não deu problema nenhum nas gravações, tomou seu uísque, nós também tomamos. voltou a tocar a sanfoninha que teddy vieira deu a ele, não pegava no instrumento fazia muitos anos. chamei os melhores músicos que temos para o trabalho, todo mundo foi e adorou."

terça-feira, outubro 02, 2007

pobres meninos ricos

já que o pedro noizyman trouxe o assunto à baila, vamos falar um pouquinho sobre ronnie von?

como preâmbulo (1), segue abaixo um pequeno texto publicado sob a finada vinheta "o não-lançamento", da falecida coluna "ruído", na "folha de s.paulo" de 28 de junho de 2002. lá eu falava do disco em questão como sendo de 1968, mas, ao que parece, ele só foi cair no comércio no começo de 1969.

depois (2), vem a reportagem publicada originalmente na "carta capital" 444, de 16 de maio de 2007. nessa ocasião, o não-lançamento virava lançamento, neste tempo maluco em que lançamentos (quanto mais relançamentos) valem menos e menos a cada dia...

em seguida (3), como contraponto, emendo uma historinha sobre um anti-ronnie von, alguém que nada (nada?) tem a ver com ele: dori caymmi, numa reportagem da "carta capital" 397, de 14 de junho de 2006, que eu nunca havia copiado aqui (como várias outras, aliás, êita, vida corrida), e ficou meio perdida no espaço-tempo concreto de lá, e a partir de agora fica perdida no cyber-espaço-tempo de cá, lado a lado com um seu antípoda.

por fim (4), um outro "não-lançamento" da era pré-cambriana, este de dori caymmi, extraído da "folha" de 18 de abril de 2003.

(obs.: os poucos grifos que surgem lá pelo meio dos textos são meus -óbvio-, mas feitos agora, posteriormente.)

dá-lhe, ronnie dori von caymmi!


1
O NÃO-LANÇAMENTO

Não ria. Em 1968, Ronnie Von aderiu à tropicália e lançou este curiosíssimo álbum verde-amarelo-azul-anil-vermelho e experimental. Na caldeira couberam arranjos do maestro erudito Damiano Cozzella, canção de protesto, falsos jingles comerciais, paródia a Orlando Silva e o nascente soul brasileiro. O fracasso foi retumbante, e Ronnie se converteu em maldito até se voltar aos hits bregas tipo "Tranquei a Vida" (77). A riqueza perdida é da Universal.


2
POBRE MENINO RICO
Os jovens descobrem os rocks de Ronnie Von, enquanto ele se distrai com um programa de variedade na tevê aberta

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A Jovem Guarda foi um movimento musical ultracomercial desenvolvido nos anos 60 por jovens pobres, suburbanos ou interioranos, culturalmente desinformados e politicamente alienados, certo? Mais ou menos. Perdido nas malhas do "reino" governado por Roberto Carlos, havia ao menos um rapaz oriundo de família rica, filho de diplomata, formado em economia, admirador de jazz, bossa nova e música erudita. Ronnie Von era o nome artístico dele.

Mais de 30 anos depois da estréia como cantor de iê-iê-iês dos Beatles traduzidos para o português, Ronaldo Lindenberg Von Schilgem Cintra Nogueira toca em frente a carreira de publicitário (é dono de uma agência) e vive afastado da criação musical. De herança dos tempos da jovem guarda, quando cantava e apresentava programas televisivos movido pela pinta de galã, mantém contato direto com o público de segunda a sexta, na tela da Rede Gazeta.

O programa Todo Seu liquidifica um perfil popular com certas pitadas de sofisticação, e sem as apelações habituais. Pesquisas mostram que cerca de 70% dos espectadores pertencem às classes A e B, assim como o apresentador, um fluminense de Niterói que mora em uma mansão no bairro paulistano do Morumbi.

O dado simultâneo de conflito e aproximação espontânea entre camadas sociais distantes é uma constante na história de Ronnie. Ele se lembra de quando a família descobriu, ouvindo no rádio o programa Disco Estrelinha, que o jovem herdeiro havia virado cantor.

"Minha tia-avó convocou uma reunião familiar, o tom era 'onde foi que nós erramos?', 'criamos uma cobra para nos picar', 'esse menino vai colocar nosso nome na lama, nesse ambiente promíscuo'...", lembra. "Outras famílias tinham os filhos envolvidos com bossa nova, e estava tudo bem. Comigo não teve acordo, saí dali arrasado. Vim para São Paulo, com a mão na frente, a outra atrás. Fiquei num hotelzinho discutível na praça Júlio Mesquita, com moças de vida difícil, rufiões, policiais."

Convertido em sucesso instantâneo, conheceu o que hoje chama de "preconceito às avessas": "Comecei a ouvir textos no rádio, 'esse filhinho de papai está ocupando o lugar de alguém que precisa'. Eu tinha cara de quem acabou de sair do banho, era pior ainda. Diziam que eu era 'o usurpador do trono do Rei'. Aconteceu essa segregação e essa realidade, eu nunca participei da Jovem Guarda."

Tampouco os amigos de juventude e colegas de "música brasileira ortodoxa" o pouparam. "Meus pares da esquerda não aceitavam aquela 'música de alienados' feita com 'instrumentos eletrônicos'. Minha amiga Elis Regina dizia: 'Você ficou louco? O que está fazendo com esse bando de cabeludos?'. É um ambiente muito cruel, muito duro. Fui considerado menor a vida inteira. E foi preciso a molecada da garagem para redescobrirem o que fiz."

Refere-se ao fato de que se afastou da música há dez anos, mas a música não parece querer se afastar dele. À revelia, um Ronnie Von surpreso testemunha o interesse crescente de jovens roqueiros de perfil independente e experimental pela obra inconseqüente que criou, sobretudo no intervalo entre 1968 e 1973.

O resultado mais recente do interesse é o Tributo ao Ronnie Von, que a jornalista Flávia Durante dirigiu de modo independente, com bandas recrutadas numa comunidade de devoção ao cantor no Orkut. Sem edição tradicional em CD por enquanto, o projeto está disponível na Internet (www.ronnievon.blogspot.com), para download exclusivo e gratuito. O tributo virtual reúne 30 bandas em recriações dos rocks e baladas da chamada "fase psicodélica" de Ronnie. Já rendeu mais de 15 mil downloads. Ou seja, tem sido mais consumido que a grande maioria dos discos brasileiros em circulação no mercado tradicional.

"Procurei a discografia dele na internet, e me apaixonei perdidamente", conta Flávia. "Alguns dos participantes são realmente fãs, vários com histórias curiosas, como a Royale, de Piracicaba, cujo vocalista não se chama Ronaldo à toa: a mãe era fanática pelo Ronnie."

Grande parte do culto atual ao artista se origina de Ronnie Von, gravado em 68 com o maestro erudito Damiano Cozzella e recém-relançado em CD pela gravadora Universal. Era um disco de humor não só psicodélico (nome que se dava à época ao rock feito supostamente sob o efeito de drogas alucinógenas), mas também tropicalista, sem que o autor tivesse muita consciência disso.

Mal-sucedida em termos de vendagens, a "fase psicodélica" se espremeu entre duas outras, de apelo fortemente comercial. Entre 1966 e 1967, Ronnie firmara a imagem de "pequeno príncipe", com sucessos como A Praça, de Carlos Imperial, também descobridor de Roberto Carlos. De 1977 em diante, virou ídolo romântico com baladas radiofônicas como Tranquei a Vida (1977) e Cachoeira (1984).

"Quem dizia o que eu tinha que cantar era o departamento de marketing da gravadora. Cantava o que mandavam, se o diretor dizia 'vai por aqui' eu ia. Até hoje, na tevê, é assim. Eu me deixo envolver, não tenho personalidade forte o suficiente para me insurgir, dizer 'não, eu não quero'. Quanta bobagem eu fiz na vida. Errei muito mais que acertei", auto-avalia.

Mas Ronnie Von também marcou alguns gols. Foi ele, por exemplo, quem impulsionou a primeira banda 100% original de rock brasileiro, os Mutantes de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias.

Assim ele se lembra do episódio: "Eu só tinha uma ligação mais forte com os Mutantes. Dei o nome ao grupo, levei para meu programa na Record, O Pequeno Mundo de Ronnie Von. Muitos anos depois fiquei sabendo que fui contratado para ser anulado, para não concorrer com o Jovem Guarda (o programa de Roberto Carlos na Record). Não havia elenco, éramos só os Mutantes e eu. Tocávamos o lado A de Revolver (disco de 1966 dos Beatles), intervalo comercial, o lado B de Revolver, pronto".

No mesmo embalo, foi criado o álbum Ronnie Von Nº 3 (1967), um dos primeiros balões de ensaio para o lançamento da Tropicália. "Foi o maior fracasso da minha vida, quebrou minhas duas pernas. Ninguém comprou, foi devolvido à gravadora", avalia. Os arranjos eram do maestro Rogério Duprat. Os Mutantes e os Beat Boys, futuras bandas tropicalistas, o acompanhavam. Nenhum desses nomes constava dos créditos do disco, apenas o do então iniciante Caetano Veloso, como compositor e vocalista da faixa Pra Chatear.

"Não aparecia o nome de ninguém, não sei por quê. Perdi completamente o contato com Rita Lee. Convidei 36 vezes para ir ao meu programa, não sei se ela não gosta de mim", lamenta. "Não sou chegada em programas de tevê. Dia desses a gente junta a creche e faz um piquenique", Rita responde.

Algo parecido aconteceria em 1981, quando ele gravou Visagem, de Fagner e Fausto Nilo. "Tecnicamente é a canção mais bem gravada da minha vida, com arranjo de Cesar Camargo Mariano. Não aparece o nome dele, a mesma história de novo."

De modo geral, profissionais de renome pareciam se envergonhar de imprimir a assinatura lado a lado com a de Ronnie Von. Àquela altura, ele já andava imerso na onda dita "romântica", ou "brega".

Diz que se sentiu alijado e viveu situações de humilhação por conta da segmentação vigente. "Eu comungo dos mesmos ideais dos formadores de opinião, leio o que eles lêem. Mas acham que no ofício deixo a desejar. Quando é assim, você nem se olha no espelho. A pior luta do homem é a luta com ele próprio."

A zona máxima de confusão entre tantos valores se deu nos impopulares discos "psicodélicos", cinco LPs confusos por excelência, que misturavam Tropicália, rock rural, canções de Tom Jobim, Ivan Lins e Zé Rodrix, utopia pan-americana, até um ponto de umbanda levado na guitarra (Cavaleiro de Aruanda, do argentino Tony Osanah, dos Beat Boys).

São essas as canções que seduzem o público roqueiro jovem de 2007. Aqui, os músicos de agora sublinham a empatia pela inconsciência do "pequeno príncipe", como relata o entusiasta Leonardo Bonfim, um dos participantes do tributo virtual: "Eu pirei completamente no disco de 68. Acho um dos melhores discos psicodélicos de todos os tempos". No Japão, o LP tropicalista chega a ser vendido por 1,8 mil dólares.

Aos 62 anos, o pobre menino rico do iê-iê-iê assiste à movimentação como um espectador incrédulo e algo distante. Talvez seja esse, desde sempre, um retrato fiel dele e da música pop que tentava fazer, ao comando dos departamentos de marketing, para o "povão".


3
DORI E SEUS "PRIMOS"
Hoje um nacionalista exilado nos EUA, o filho de Caymmi comenta as divergências da geração heróica da MPB

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Aos 62 anos, o arranjador, compositor e cantor Dori Caymmi vive imerso em uma profunda dicotomia. Filho mais velho da instituição nacional Dorival Caymmi e reconhecido pela nata da sua geração como um dos músicos mais completos do Brasil, ele se define como um "nacionalista" por excelência, até mesmo um "xiita" em favor da musicalidade à brasileira.

Sim, ele é mesmo. Mas Dori é um nacionalista atípico, que, desde que Fernando Collor confiscou a poupança dos brasileiros, optou por viver e trabalhar em Los Angeles.
"Não saí daqui para ser o imigrante. Saí porque já estava de saco cheio do sistema. Saí assim meio triste, meio decepcionado", explica, de passagem por São Paulo. "Eu não podia gravar, porque se tivesse que gravar teria que ser independente. Lançamento de disco meu é pela janela. A gente joga e quem pegar, pegou. É fora do mercado, uma coisa que aconteceu com a maioria dos artistas que têm amor pelo Brasil."

Ele exerce o amor nacionalista do exílio voluntário e em visitas esporádicas à terra natal, como a de agora, quando lança por aqui o disco Rio-Bahia, encomendado por ingleses e japoneses e gravado em dupla com a colega de geração Joyce. Quando volta para os Estados Unidos, leva revigorada consigo a sensação de que este aqui "não é o Brasil formidável que me prometeram".

"Você chega a um lugar, sempre tem aquelas três pessoas com muito dinheiro, aí tem uma classe média abonada que puxa o saco... E depois tem o povo, a grande maioria", sintetiza.

O rumo que traçou para si faz pensar no de outro colega de geração. Como Dori, Sergio Mendes se formou na bossa nova. Diferente de Dori, logo virou ícone mundial kitsch-tropical, ao criar versões bilíngües de músicas de Jorge Ben, Tom Jobim e Burt Bacharach. Recentemente, rejuvenesceu a fórmula no vigoroso disco Timeless, em que se coligou com rappers daqui e de fora, como Marcelo D2 e will.i.am,. "Não gosto de hip-hop, sou xiita mesmo", protesta Dori.

Mas foi Sergio Mendes quem o levou aos EUA, onde produziu o primeiro disco estrangeiro de Dori, que diz que as coincidências entre ambos param por aí. "Não pude mais trabalhar com Sergio, porque ele queria tomar conta, queria que eu fosse um objeto dele. Ele só gosta de rico, eu lido com pobre, e procuro, seguindo a vertente do meu pai, não me tornar um milionário", dispara.

O xadrez de diferenças e coincidências leva, agora, a outro colega de geração, sempre citado ao lado de Dori no rol dos mais completos criadores de música brasileira. Edu Lobo, diferentemente de Dori e de Mendes, jamais deixou o País. Mas vive um outro tipo de isolamento, derivado da própria discrição, do freio no ritmo de criação e, talvez, das incompatibilidades entre as fontes mais elaboradas da MPB e o Brasil que toca nas rádios e tevês.

"Edu é, para mim, o grande compositor da minha geração. É o meu favorito. Ele, Chico Buarque e Francis Hime são pessoas que também têm as mesmas preocupações nacionalistas, sem serem baratas. É uma coisa da gente como país, com a geografia, o Nordeste, o problema social", identifica-se.

Não, ele não se vê num meio termo entre o pólo norte de Mendes e o pólo sul de Lobo – diz que é 100% pólo sul, mesmo radicado lá no Norte. "A minha preocupação nunca foi de fazer nada para americano. Faço meu trabalho, eles que toquem. Não faço nenhuma concessão, não vou fazer fox-trot. Fiz frevo, nos meus discos é tudo ligado ao Brasil."

Evidentemente, não se resume ao trio Edu-Dori-Sergio a diáspora da estridente geração musical a que eles pertencem. Em início de carreira, Dori lustrou a face de produtor, diretor musical e arranjador trabalhando com artistas de que depois ele se desencontraria. Depois de trabalhar com Nara Leão no musical militante Opinião (1965) e em outros discos, veio a ser o produtor dos álbuns de estréia de Gilberto Gil (Louvação, 1967) e de Caetano Veloso e Gal Costa (Domingo, 1967).

A divergência se chamou tropicália, que num primeiro momento cindiu a antes chamada "segunda dentição da bossa nova" entre os que aceitaram a assimilação brasileira dos Beatles e do rock (Caetano, Gal, Gil, Mutantes etc.) e os que não a aceitaram (Chico, Edu, Dori, Joyce etc.).

Dori ensaia teoria mais excêntrica para explicar a diáspora, dividindo aqueles grupos em "centro" e "periferia". "Você, sendo da megalópole, não é tão questionado. Não se expõe tanto, não se arrisca tanto. O cara que vem do interior vem com tudo, 'pô, tenho que fazer meu nome'. Meu pai fez isso. Caetano Veloso ia ser famoso em Santo Amaro da Purificação? Gilberto Gil ia ser famoso em Vitória da Conquista?", pergunta-afirma. Filho daquele que alguns chamam de "o homem que inventou a Bahia", ele próprio nasceu no Rio, assim como Chico, Edu, Marcos Valle, Joyce e a irmã Nana Caymmi.

Põe mais pimenta no vatapá: "Isso continua acontecendo. Ana Carolina seria famosa em Juiz de Fora? Hoje é a maior vendedora de discos do Brasil, e pega clássicos como Retrato em Branco e Preto e Beatriz e transforma numa piada, numa coisa completamente...", suspende o adjetivo no ar.

Compositora e arranjadora quase solitária entre as mulheres dessa geração (e também de outras), Joyce contemporiza as desavenças: "Isso é briga de primo. É todo mundo da mesma família, todos filhos de João Gilberto e Tom Jobim".

De perfil também discreto, a artista carioca que não saiu do Brasil, mas se apóia no entusiasmo de selos estrangeiros para seguir criando fala de Dori o mesmo que Dori fala de Edu: "Acho que Dori é o melhor de todos nós, o mais completo. Seguramente não é o mais popular, famoso ou reconhecido, mas entre nós é unanimidade, é só ver o respeito que todos têm por ele".

Joyce ressalta outras dimensões, para lá do desconhecimento do Brasil de hoje em relação ao músico que foi diretor musical em sucessos populares globais como Sítio do Picapau Amarelo (1977) e Gabriela (1975). "Morar na Califórnia, junto à indústria de cinema e fonográfica, dá outro perfil à carreira dele. Ele se inseriu nesse mercado, trabalhou com Sarah Vaughan, Diana Krall."

Outro filho da diáspora é Nelson Motta, o mais constante parceiro de composição nos primeiros anos. No festival de MPB que marcou o advento da tropicália, a dupla inscreveu O Cantador, defendida pela gaúcha Elis Regina; hoje, estão distanciados.

"Dori é um grande músico, mas para ele os valores são estritamente os musicais. Para mim, não, música sempre foi uma coisa maior. Dou tanto valor às palavras quanto às notas, dou mais valor ainda à soma de tudo isso com o que a música provoca nas pessoas e na sociedade, não só com acordes e melodias", delimita Motta.

Desde os anos 70 até hoje, o mais constante fornecedor de palavras à música de Dori é Paulo César Pinheiro, que no disco Rio-Bahia oferta a poesia amarga de Saudade do Rio, com versos como cada vez que alguém no Rio abre a janela/ já tem mais uma favela.

"Na primeira versão ele tinha pegado mais pesado, eu corrigi um pouco. A música tem um lado romântico muito bonito, que não pede a agressão", conta, em tom brincalhão, mas que realça o Dori sempre em contradição com quaisquer "primos", talvez também consigo mesmo.

Nesse balanço, o nacionalista migrante preserva o pai de sangue (anda contrafeito com o que considera desrespeito da imprensa à saúde frágil de Dorival, hoje com 92 anos). Mas não se exime de concluir com uma história "ruim" sobre o pai supremo de todos os primos briguentos, João Gilberto, que ele classifica, sem papas na língua, como "castrador" ("você vai cantar junto, ele atemoriza de tal maneira que você canta igual a ele").

"Fiz um arranjo para ele num especial de televisão (em 1980), ele mudou a harmonia completamente. Quando ouvi larguei o estúdio e fui embora, nunca mais tive contato."

João bronqueou? "Não sei, nem tive idéia. Eu nunca tive muita importância. Não devo ter nenhuma importância para ele, foi ele que me influenciou e teve importância para mim. Mas eu não vou mais aturar maluco, não, isso eu evito", completa, dias antes de voar de volta para Los Angeles.


4
O NÃO-LANÇAMENTO

Diretor musical de momentos como a estréia de Caetano e Gal em LP (em 67) e a trilha do "Sítio do Picapau Amarelo" (77), Dori Caymmi está prestes a lançar o novo "Contemporâneos", em que canta com os irmãos Nana e Danilo, Edu Lobo, Chico, Caetano etc. Enquanto isso, sua pequena discografia de MPB densa e elaborada continua quase toda abandonada. É o caso deste álbum homônimo de 1980, que reuniu versões do próprio autor para músicas que ele havia criado para festivais da canção ("Saveiros"), filmes de cinema ("Tati, a Garota") e telenovelas como "Gabriela" ("Porto", "Alegre Menina") e "Terras do Sem-Fim" ("Estrela da Terra"). Está no catálogo da gravadora EMI.