sábado, julho 29, 2006

d'estamira

estamira é uma multidão.

ela trabalha, em colônia-comunidade-comunismo, num lixão carioca de verdejante nome: jardim gramacho. personagem principal do documentário "estamira", de marcos prado, dá asas de urubu à própria imaginação e se larga a falar do mundo, no mundo. ela é louca-doida-maluca, pensará quem ouvi-la. pois sim, não é disso que se trata, não.

estamira é esquizofrênica. vive num estado de alucinação, pensará você, ou de hiper-realidade, dirá ela (e eu digo também): "eu, estamira, sou a visão de cada um. ninguém pode viver sem mim". é pelo controle remoto que toda e qualquer conexão se resolve, explica. estamira está plugada no mundo, na sociedade, em nós, em nossos nós.

estamira odeia deus, declarou guerra a jesus cristo, e ninguém pode viver sem ela.

é a asa que se desprendeu da sociedade, estando bem dentro dela mesma, no coração da sociedade, no lixão de jardim gramacho - estamira vive nos jardins, na barra, na óscar freire, no leblon, no nebulon [você conhece vários "loucos"-"psicóticos"-"esquizofrênicos", não (re)conhece?]. nesta mira, estamira declara aquela guerra a deus que muitos anseiam declarar, mas não têm coragem.

corajosa de romper a barreira do espaço-tempo-som, vive eufórica e revoltada contra um deus "estrupador", contra um jesus cristo que é o "trocadilo" em pessoa, contra a quadrilha de médicos "dopantes" "copiadores" que a tentam deter, contra poderosos "espertos ao contrário", contra o próprio filho fanático-rezador-temeroso-do-demo-instalado-no-corpo-da-mãe: "alguém larga de morrer por rezar tanto?".

é que, acima de tudo, dona estamira, sessentona, declarou guerra total aos homens, ao masculino formulador desta sociedade que a atirou ao lixão.

estamira jamais pronuncia a palavra "mulher". para ela, o sexo feminino é "homem formato par" (que, acrescento, pode conter em seu ventre uma outra mulher, ou então... um homem). o sexo masculino, para ela, é "homem formato ímpar", o "um" poderoso, a personificação da solidão, condição mesma em que ela vive em meio à multidão do lixão, lixão no qual a sociedade-ela-própria-estamira a (se) atirou.

prostituída pelo avô na quase-infância, em guerra permanente com amados maridos, estuprada por homens ao longo da vida, (auto)atirada aos lixões, estamira odeia deus, jesus cristo, o filho que quer atirá-la no aterro psiquiátrico, os homens todos - todos do sexo masculino.

ainda assim, é companheira, no lixão, do olhar embevecido de seu joão, preto como ela, olhar apaixonado como o dela.

quando estamira esbraveja diante da câmera num dia de natal, joão lhe dá ouvidos, silencioso, embevecido. "não adianta", estamira esbraveja, para logo emendar-remendar, cantarolando: "não adianta nem tentar me esquecer...". seu joão rebate de pronto, cantarolando idem: "se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer...". o amor, ah, o amor.

"detalhes", "as curvas da estrada de santos", roberto carlos. estamira odeia os homens, mas não odeia, entre eles, roberto carlos, nem erasmo carlos (nem wanderléa). "colombina, onde você vai?/ eu vou dançar o iê-iê-iê", cantarola, compositora, de asas abertas no lixão-albergue-abrigo-asilo-acolhida, sabendo de cor e salteado que o carnaval É o iê-iê-iê e que o samba É roberto carlos (& erasmo & wanderléa). todo menino é um rei, mas quá...

rainha estamira não está em guerra com o masculino. está em guerra é com a violência masculina insatala na sociedade-estamira da qual ela, periférica, é o núcleo, é o centro, é o ventre, é o cerne, é o início & o fim do caminho.

gente viva, para ela, é o homem visível: depois da morte, a invisibilidade (essa mesma que ela vivencia dia-a-dia no jardim gramacho). dos filhos todos que teve, uma nasceu invisível, segundo conta. e essa, ela conta, "é a que mais me ajuda".

contra um painel agressivo de avós, pais, co-irmãos e filhos violentíssimos, o núcleo feminino da família de estamira se une no fio das gerações, numa corrente silenciosa (ainda que verborrágica). contra os violentos violentadores mudos do sexo masculino, as nunca pronunciadas mulheres de estamira se coligam verticalmente na solda da loucura, ou, espertas ao contrário, da resistência amorosa a ela: avó, mãe, estamira, filhas, netas.

a filha caçula, adotada por outra família, vai e volta e vai e volta, e lamenta, transbordando amor pelos olhos: a mãe de sangue criou os demais filhos no lixão, porque não poderia ter criado ela também? a mágoa reside como cimento das gerações, mas é exercida na cumplicidade de uma cabeça encostada à outra, mãe e filha, irmãs.

a cabeça é o controle remoto, dali para acolá, de lá para cá, também de cá para lá.

ao lado dos homens brutais, repousam as damas vitimizadas, ardidas de violência externa(&interna) e ardentes de muito se fazerem de vítimas inescapáveis da desigualdade entre os sexos.

estamira, esquizofrênica, rejeita no grito a condição de vítima. também nisso, descola-se da sociedade-estamira, rumo ao lixão-estamira-mulher&homem - do mesmo modo como roberto carlos, obsessivo-compulsivo, refuta a condição de macho violento e se cola à sociedade-roberto-carlos feito o apático-amoroso-roberto-carlos-homem&mulher.

doida, você diria. mas em plena guerra interna, na faina diária de depurar o lixão da sociedade e reivindicar, pelo esbravejo, a lida missionária, contra deus-homem-feitor-ladrão, a favor da declaração da paz mundial híbrida feminina-masculina (ou preta-branca, ou pobre-rica, e assim por tantos diantes), em favor da reconciliação, em guerra (interna) pela paz (externa).

é essa mulher (quem é essa mulher?) que a sociedade-nós tarjamos de dentro como "louca", rechaçando-a e fugindo dela como o demo da cruz - porque estamos todos cegos, porque brigamos de tapa&beijo com nosso próprio espelho.

[ouça o(a) louco(a) que mora dentro de você, ninguém é mais loquaz que ela(e).]

estamira (que diz que nunca chora, mas chorou no dia em que lula foi eleito, segundo nos relata ana paula sousa, em reportagem à "carta capital" 403) somos nós.

d'estamira somos uma multidão.

segunda-feira, julho 24, 2006

para lavar a roupa da minha sinhá

o instituto datafolha fornece a informação de que, estatisticamente, 65% dos brasileiros apóiam a instituição de cotas raciais no ensino superior deste nosso país. ["curso superior", todo mundo sabe, é a "faculdade", é onde se formam as "melhores" cabeças, é a "universidade", é a formação "universal" de brasileiros e brasileiras.]

essa aprovação cresce para avassaladores 87% de nós, se o termo "cotas raciais" for substituído por "cotas sociais" - ou seja, por cotas para pessoas "pobres" e de "baixa renda", independentemente da sua "cor da pele", e relevando o fato de que, você sabe, no brasil uma parcela enorme dos pobres é preta e uma parte gigantesca dos pretos é pobre.

contrários às cotas racias são apenas 25% - os 10% restantes na conta abstrata que resulta em 100% não souberam ou não quiseram responder.

tudo muda dramaticamente de figura quando a pesquisa se detém nos estratos sociais que os brasileiros pesquisados formam e que os brasileiros viventes formamos.

entre os nativos aborígenes-nômades-sedentários-cidadãos que abocanham mensalmente mais que dez salários mínimos de renda, apenas 39% se declaram favoráveis à instituição de cotas raciais.

são ínfimos 4% os que, não-sabichões, não se pronuciaram mesmo pertencendo a essas tais classes sociais "cultas", dos dez mínimos "graus culturais" para mais.

noves fora esses e aqueles, 57% dos "informados"-"cultos"-"educados"-"sabidos"-"viajados" berram um sonoro "não" às cotas raciais (sobre cotas sociais, a informação não foi publicada - e eu queria tanto saber, ó, dona informação...).

[os brasileiros que faturamos mais de dez salários mínimos mensais somos minúsculos 2% do brasil pós-indígena todinho, você sabia? possivelmente os 2% com maior teor de violência verbal, "virtual", aqueles do topo do topo do topo que delega à favela a tarefa de verter sangue vermelho na violência "real".]

pois é, você sabe, uma parcela monumental das pessoas que no brasil ganhamos mais de dez salários mínimos por mês é(somos) ou se tem (nos temos) como "branca"(os).

é chocante.

é chocante.

é chocante.

eu leio estarrecido essas estatísticas todas, e me ponho pensar em minha classe social, ou melhor, em minha classe profissional, ou melhor, em minha categoria profissional (e na dos meus-nossos patrões, e nas de seus-meus-nossos pares).

estatisticamente, somos 65% favoráveis às cotas (ou, no mínimo que seja, que somos favoráveis a algum tipo de atitude e transformação que nos tire da inércia escravagista, grotesca, bruta e brutal em que vivemos historicamente). em contraponto a nós, instituições de nomes sólidos como "veja", "folha", globo, "estado" etc. empilham editoriais versando (ou melhor, proseando) sobre o tema controverso. e o tom é (quase) sempre agressivo, estridente, ofensivo, rancoroso, feroz, violento.

como feras feridas, enjauladas, agressivas de medo que vira raiva.

tais editoriais se posicionam, sempre, como contrários às cotas raciais, você sabe. limítrofes, fantasiam-se de favoráveis às cotas sociais, mas deixe só os legisladores trocaram o "racial" por "social", para ver se numerosos ferreiras jugullares e caetanos velozes não se apressarão a assinar manifestos contundentes contra as cotas sociais, as outras cotas, as atitudes, as outras atitudes, as atitudes quaisquer, as cotas quaisquer.

o que me espanta e me chama a matutar, enquanto jornalista, é o quanto, segundo desnuda a pesquisa datafolha, os principais dispersores da "opinião pública" têm se distanciado, no brasil (no mundo?,) dos anseios da maioria da população que eles julgavam (julgavam) domar (domar).

e a população (preta?) anseia pelas cotas que a imprensa (branca?) não tolera. está consolidado o corte, percebe?

eu, pedro, não existiria como pas, se fosse preto. sou jornalista, e sou testemunha ocular da história: há pouquíssimos negros nas redações. aliás, tenho certeza de que você sabe, também há pouquíssimos negros em escolas, bancos, escritórios de advocacia, consultórios médicos-odontológicos-psíquicos, fóruns políticos, hipermercados, hospitais, shopping centers, blá, blá, blá...

ou melhor, há. há cotas raciais em todos esses locais. as cotas para negros estão lá, garantidas, silenciosas, destinadas à porção dos faxineiros, copeiras, motoristas, serventes, cozinheiras de café yuppie, eletricistas, encanadores etc. (isso sem falar dos obreiros que edificaram os prédios em que se sustentam shoppings e redações e aeroportos e lavanderias de dinheiro e world trade centers).

as cotas raciais locomovem o brasil, gerando estradas, túneis, metrôs, edifícios e, até mesmo, a música popular brasileira. a título de mero exemplo, foi o negro monsueto menezes, em parceria com nilo chagas e joão violão (co-autor de "eu bebo, sim", mora?), quem difundiu, na voz da cantora marlene, as frases que dão título a este texto, extraídas do "lamento da lavadeira".

[o "lamento da lavadeira", você lembra, já foi apropriado, noutros tempos, pela cantora de paixões ciganas marisa monte ("sabão, pedacinho assim/ olha água, um pouquinho assim/ do tanque, um tanquinho assim/ a roupa, um tantão assim"). antes, os manos maria bethânia e caetano veloso também quedaram embebidos de monsueto, mas privilegiando a nobilíssima política do corpo: "mora na filosofia/ pra que rimar amor e dor?". viva o hedonismo!]

mas, então, lavadeiras, pedreiros e seus pares ocupam esses postos porque são "preguiçosos" e não "quiseram" estudar, segundo o que pensam silenciosamente muitos dos lordes e condessas do topo das pirâmides - os mesmos que agora se arremessam contra a dita "opinião pública", nos editoriais, tentando garantir espalhafatosamente a permanência dos "iletrados" à distância do ensino, fora do alcance da formação e da informação, longe da papinha "intelectual" da sopa de letrinhas.

[só não sabiam que no futuro - no presente -, em cada favela, haveria uma lan house, e em cada lan house, um burburinho incandescente de videogames, sites, blogs, representações virtuais da vida real que antigamente morava tãããão longe.]

depois são esses, os duques e as marquesas, que xingam o presidente do país de bêbado, analfabeto, ignorante, cultuador da ignorância. quando o presidente do país adota a postura (enfim!) de reagir à ira apavorada dos coronéis da oposição, fazem como fez o senador pefelista jorge bornhausen ind'agorinha mesmo, quando lula sugeriu que ele(s) lavasse(m) a boca antes de falar de corrupção: chamam o presidente de "desdentado" (percebe o tom, o emblema, o significado de classe por trás do termo "desdentado"?).

[você entende quem o coronel bornhausen está "xingando" de "desdentado"? bidu, são esses mesmos 65% que se afirmam pró-cotas, entre os quais pode até mesmo estar... você. já não é mais cazuza, hoje é a oligarquia fóbica que se suicida aos poucos (ou a galope?), em praça pública. didaticamente.]

precisavam olhar um pouquinho para o espelho, para o espelho.

para o espelho.

[a gente sempre fala do mundo e das coisas do mundo como se não participássemos dele, como se não estivéssemos dentro dele, já reparou? como as coisas que estão no mundo e precisamos aprendê-las (alô, paulinho da viola e nara leão), nós também estamos no mundo e precisamos aprendermo-nos, pois não?]

o espelho é a chave secreta para o encontro dos maiores mistérios, todos eles, sempre.

é ele que evidencia, por exemplo, o dramático corte de classes sociais que estamos vivendo aqui neste maravilhoso brasil exatamente agora. é ele que revela do lado de lá o pcc, que também somos nós do lado de cá (e não vemos que somos).

no espelho bípede bipartido, os do topo reclamam e vociferam continuamente contra tudo e contra todos e contra todas as instituições. fazem-no refestelados no próprio conforto ilusório, cada vez mais assemelhado a um bunker americano-do-norte, ou libanês, ou israelita, ou afegão, ou nordestino do sertão.

no espelho bipolar, os da base da pirâmide trabalham silenciosamente, abrigados no desconforto ilusório que, nessa multidão que recebe até dois salários mínimos por mês (e, abaixo do "dois", existe o "zero", você sabe), motiva um índice histórico de 70% de aprovação às cotas raciais (deve ser numerosa a porcentagem de não-sabidos nos 30% restantes, mas isso dona divergência também não nos informa).

os "formadores de opinião" não escutam essa voz majoritária. não conversam com seus próprios porões e suas próprias cozinhas se eus próprios sótãos e suas próprias senzalas pós-modernas e seus próprios banheiros (é nesses que costumam se assentar os espelhos empoeirados da falta de uso).

os "formadores de opinião" não ouvem, ou, quando ouvem, não compreendem o que escutaram. ficam catatônicos, ou então se fingem de surdos.

["todos estão surdos", já reclamavam dois dos brancos mais pretos do brasil, roberto carlos e erasmo carlos - "outro dia um cabeludo falou: não importam os motivos da guerra/ a paz ainda é mais importante que eles/ esta frase vive nos cabelos encaracolados das cucas maravilhosas/ mas se perdeu no labirinto dos pensamentos poluídos pela falta de amor/ muita gente não ouviu porque não quis ouvir/ eles estão surdos". chico science & a nação zumbi, você sabe, se apropriaram mais tarde de "todos estão surdos", mergulhando-a no mangue, na zona portuária, no puteiro, no lodo, na lama radioativa.]

estão surdos, porém estridentes e barulhentos. de "formadores de opinião", parecem celeremente se transformar (e isso é o que mais me dói - eu, jornalista, terei escolhido errado meu super-herói?), suicidas, em "deformadores de opinião".

[porque cota racial, você sabe, é só um jeito de falar um monte de coisas de uma vez só. cota racial é igual a cota étnica, cota sexual, cota de gênero, cota de idade, cota indígena, cota de peso, cota psíquica, cota de veneno (alô, nobre marília pêra!), cota política, cota ideológica, cota cigana, cota circense, cota sem-teto, cota infantil, cota animal, cota isso, cota aquilo, cota aquil'outro (quando você desonra qualquer um desses não-cotistas, desonra a si mesmo, pois todos esses não-cotistas ajudaram nuclearmente a compor sua própria carta genealógica, queira você reconhecer isso ou não. pergunte ao pó, pergunte aos genes, pergunte às gentes)... aliás, você sabe?, "cota" também é um jeito ainda muito temeroso-medroso-assustado-traumatizado de pronunciar um montão de outros signos, bem mais cruciais que "cotas". "cota" é o nome amedrontado de "transformação", "mudança", "atitude" (alô, erika palomino, nosso nelson rodrigues dos anos 90...). atitude.]

pensando melhor, não são deformadores de opinião (foram antes, sempre foram), mas deformadores dessa (daquela) opinião que a voz "real" das ruas cada vez tem menos interesse e razão em ouvir, que a voz "real" das rampas e campos e descampados cada vez respeita menos.

essa voz das ruas, "real", que sempre calou sem auxílio de alto-falantes, viceja e se dissemina hoje até mesmo com o auxílio nômade das vozes "virtuais" da blogosfera (onde cada cabeça é uma opinião, cada escriba é um jornalista, cada "analfabeto" pode fazer os experimentos que quiser com a própria linguagem) - várias vezes, umas e outras são as mesmas, ou híbridas malucas entre elas.

porque, a acreditar na pesquisa que o grande instituto tem de trombetear, as vozes do espelho já falam(os) mais alto (sem gritar), e já traduzem(imos), em música, mais novas e belas e formosas melodias em canto-fala. pagãos, esperamos que os deformadores de opinião possam fazer meia-volta, olhar para nós (seu espelho), formar um naco de suas caudalosas opiniões também a partir das nossas, na rua, na fazenda, no blog e nas periferias do mundão.

ao fundo, ao sol, marlene canta(mos): "quintal, um quintalzinho assim/ a corda, uma cordinha assim/ o sol, um solzinho assim/ a roupa, um montão assim/ para secar a roupa da minha sinhá".

nos fundos, à lua, canta(mos) monsueto: "trabalho, um tantão assim/ cansaço, é bastante sim/ a roupa, um montão assim/ dinheiro, um tiquinho assim/ para lavar a roupa da minha sinhá".

quarta-feira, julho 19, 2006

o bagulho é doido


38 anos..., êita..., vida loka... os amigos da "vida real" já devem estar recebendo convites por meios variados... e, para essa novíssima categoria que é a dos amigos-blogueiros virtuais que tanta alegria & vida inteligente têm trazido aqui para este espaço, taí uma oportunidade de materializar amizades flutuantes, hein?, hein?, hein?...

espero todo mundo lá!

quinta-feira, julho 13, 2006

o cedê desce a ladeira

"carta capital" 395, 31 de maio de 2006. você gosta de cedê?


O CD DESCE A LADEIRA
Pressionada pela decadência do formato, a indústria cede e baixa os preços

Por Pedro Alexandre Sanches

Já vai tarde o tempo em que executivos de grandes gravadoras declaravam em alto e bom som que era impossível reduzir o preço de seus produtos – isso mataria a indústria fonográfica e a própria música, chegavam a ameaçar. Hoje, nas gôndolas das lojas, já é fácil encontrar novidades de Marcelo D2 ou Sandy e Junior por 25 reais, ou um álbum duplo novinho em folha dos Red Hot Chili Peppers por 48 reais (até outro dia, esse seria o preço de praxe de um CD internacional simples).

A tendência é importada do Primeiro Mundo, em que as reduções de preços se mostram ainda mais impressionantes: favoritos de mídia como Morrissey e o grupo Arctic Monkeys já chegam às lojas por 9,99 dólares, no dia do lançamento. O presidente da multinacional Universal Music, José Antonio Eboli, admite com algum constrangimento a mudança geral de discurso: "Tudo é uma questão de adaptação. O mercado é que fala mais alto".

Parece boa notícia, mas não é tão simples assim: a desvalorização do CD toma ares de canto de cisne. "O CD não morre tão cedo", afirma Gustavo Horta, presidente da Som Livre (a gravadora da Rede Globo), que logo em seguida afirma: "Se não controlar, a tendência é acabar mesmo".

Até o DVD, tido como "salvador" da indústria musical em 2004, já é largamente pirateado e ostenta reduções de preço ainda mais velozes que as do CD. A versão especial de Sandy e Junior com CD mais DVD, por exemplo, já chegou aos grandes magazines com etiquetas do tipo "de R$ 49 por R$ 39". "O drama da gente é que, da classe A para a E, temos a pirataria digital, e da E para a A, a pirataria física. Estamos espremidos entre essas duas pontas", define o presidente da Som Livre.

Números recém-divulgados pela Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) atestam essa avaliação. O faturamento do mercado fonográfico brasileiro encolheu 12,9% em 2005. No mundo como um todo, a queda foi de 3%.

Contradição difícil de compreender esconde-se atrás da diferença de queda de arrecadação (12,9%) e de cópias vendidas (20%), o que parece indicar que na temporada 2005 o desinteresse dos consumidores pelo CD possa ter sido "compensado" por preços mais elevados. A ABPD afirma que não e cita que o preço médio de um CD em loja, em 2005, foi de módicos 9,96 reais.

A avalanche de coletâneas "baratas", tanto em preço como em qualidade, ajuda a entender a média tão baixa, mas confunde o raciocínio de quem vá à loja adquirir os novos CDs de Marisa Monte e Chico Buarque e não os encontre por menos que 37 reais.

"Marisa Monte não é 'pirateável', Chico Buarque também não. Eles têm um consumidor de nível educacional maior, que sabe que comprar pirata prejudica o artista", ajuda a explicar Horta, da Som Livre. Trocando em miúdos: o consumidor que ajuda a combater a pirataria leva como "prêmio" um acréscimo de preço, enquanto sucessos de pirataria como Chitãozinho & Xororó e Pearl Jam saem por 27 reais na venda "oficial".

Para complicar ainda mais, os critérios que apartam "classe A" e "classe E", ou "popular" e "sofisticado", ficam insuficientes para explicar certos resultados, como demonstra Eboli: "Entre as duas versões de Sandy e Junior, é a mais cara que está vendendo mais". Essa edição de formatos alternativos mais chamativos (e caros) é o que se costuma chamar de "valor agregado", e é aí mesmo que reside a crítica do dissidente João Marcello Bôscoli, da Trama.

"Em vez de encontrar alternativas para ficar mais criativa, a indústria foi cortando despesas com capa, encarte etc. Seria como se a Disney economizasse nas cores dos desenhos animados", diz Bôscoli.

Eboli menciona o comportamento de repulsa crescente do consumidor pelo formato CD: "A percepção do consumidor é de que o CD é um produto caro. Mas por 30 segundos de música em truetone de celular ele paga 4 reais, não dá para explicar".

Bôscoli arrisca uma explicação: "Meus amigos que fazem hip-hop pagam 40 reais num boné, mas não num CD. O CD foi tão mal administrado pela grande indústria que foi perdendo valor, foi se desmoralizando. A lição que o pirata trouxe é de que música tem que ser como água, tem que estar em todo lugar, o preço pode ser menor. O pirata jogou esse vetor para baixo".

Se o CD só faz perder valor, a indústria busca estratégias alternativas de gerar receitas – até mesmo aquelas mais duvidosas. Uma é bater de frente com o avanço da circulação virtual de música, que na estatística global já gera de 7% a 8% da receita das gravadoras (no Brasil, a conta ainda nem é feita).

Uma das táticas é a da EMI, que a partir do lançamento duplo de Marisa Monte instalou um dispositivo anticópias que impede seu consumidor até mesmo de copiar em seu próprio computador o disco que comprou.

"A proteção anticópia, na minha visão, é inconstitucional", protesta Bôscoli. "E, pior, ela não adianta nada. Qualquer moleque que tenha entrado duas vezes no computador sabe como contornar. Isso desgasta o artista, o moleque pensa: 'Pô, o cara tem grana, precisa disso?'"

Outra "inovação" polêmica que a indústria tenta emplacar para estancar a sangria de receitas é a de se tornar "parceira" nos lucros que o artista tem com shows. "A cláusula de direitos pelos shows vale para artistas novos, com os consagrados não temos nem como discutir. Mas ela não é exercida em 99% dos casos, porque são artistas que ainda nem fazem muitos shows. Existe taticamente, para o futuro", defende Eboli.

Em qualquer caso, é evidente a retração geral, como descreve o presidente da Som Livre: "O aperto é enorme, de 250 funcionários, estamos com 90. De três prédios, passamos para um. Tudo isso acaba tirando dinheiro do bolso de todo mundo, inclusive do artista". Chega-se aqui, enfim, à ponta dos artistas que se fizeram dentro da grande indústria.

Até há artistas que há tempos já não se ancoram no CD, como é o caso de Paulinho da Viola, que não lança um disco inédito desde 1997. Diz João Bosco Rabello, assessor do artista: "Paulinho tem sua receita em direitos autorais e de shows que nunca deixou de fazer mensalmente, país afora. Como ele diz, ainda tem que trabalhar bastante, aos 60 e poucos anos".

Caso-exemplo dos novos tempos é o do músico Leandro Lehart, que nos anos 90 foi o maior arrecadador brasileiro de direitos autorais, por conta da explosão de seu grupo Art Popular e de toda uma nova geração do samba (ou do "pagode mauricinho", segundo rotularam os detratores).

Leandro hoje tem gravadora própria, a Against All Music, pela qual acaba de lançar o inspirado álbum-solo Deixe Eu Ir à Luta, que procura equacionar sofisticação musical que não exibia no Art Popular e o apelo popular que não quer deixar de portar. "Comecei a perceber que não preciso ficar falando de amor o tempo inteiro, como o rádio exige, quando a minha realidade não é assim. O rap é irmão de sangue do samba, muito mais do que se imagina", diz, falando da linguagem musical e do discurso social hoje presentes em sua obra ao lado das baladas de amor.

"Este é o primeiro disco em que estou arregaçando as mangas, fazendo por mim mesmo o que a gravadora fazia. O investimento é complicado. Se comparar o que gasto hoje e o que a gravadora colocava de dinheiro em rádio, não consigo entender, a conta não fecha. Em São Paulo custa o dobro do que para o resto do País", afirma, roçando no tema espinhoso do jabaculê.

Lehart reavalia sua trajetória junto à grande indústria: "A EMI fazia contratos milionários com artistas de MPB, e tirava o dinheiro para isso dos grupos de samba. Nós pagamos o contrato de muita gente. Aí, quando o Art Popular passou a não vender tanto mais, não interessava mais a eles, tchau".

Ele admite que é mais penoso ser ao mesmo tempo artista e empresário, mas diz encontrar soluções tanto na periferia como no centro, ou melhor, em improváveis fusões entre os dois pólos. "Canto no Recife e em Belém para 6 mil pessoas, com ingressos a 5 reais, e ali sou tratado como um deus. É melhor que fazer uma temporadinha para dizer que estou por cima da carne-seca." Ironicamente, o espaço recifense a que se refere se chama Pagode da Mídia.

Por outro lado, ele foi uma das estrelas da segunda edição do novo programa global de Regina Casé, Central da Periferia, gravado ao vivo em Heliópolis, na periferia paulistana. "Aquelas pessoas ali são 100% das que compram pirata, têm emprego informal, integram um mercado paralelo, que não faz parte de lugar nenhum", avalia. No entanto, passou na tela mais que central da Globo.

Falando sobre outro assunto (o PCC e a violência em São Paulo), Lehart condensa sem querer contradições como essas e aquelas que fazem a indústria fonográfica baixar os preços de seus antes intocáveis produtos: "O céu e o inferno muito em breve vão ser muito mais próximos do que a gente imagina".

terça-feira, julho 11, 2006

tarja preta: gog

genival oliveira gonçalves, vulgo gog, mora? "tarja preta" circula pelo mundo há tempos (foi lançado em 2004, evidentemente de modo independente), garbosamente à margem daquilo que se convencionou chamar de indústria musical, fonográfica, ou coisa que o valha (alô, mestre itamar "tarja preta" assumpção!).

simulando (ou melhor, subvertendo) uma embalagem de medicação da famigerada indústria farmacêutica, a capa de "tarja preta" ostenta uma advertência ("venda sob prescrição periférica") e uma informação ao consumidor ("contém 23 faixas extraídas da raiz musical brasileira"). está tudo indicado, ali, nesses três estatutos - o que se possa acrescentar é variação sobre o mesmo tema. variemos.


gog, que antes já havia promovido, entre seis outros discos, uma "cpi da favela" (2000, também independente), segue arrumando sua própria casa, de dentro para fora. o hip-hop, como o brasil, está em plena reforma, a todo vapor (reformam-se casas!, reformam-se vidas!), rumo a novos e ainda não testados estatutos. aos exemplos, em piluletas, pílulas e pilulonas.
@
a faixa de abertura, "chamada a cobrar", é o que o nome indica. numa chamada telefônica a cobrar, dona sebastiana, mãe de genival, conversa a partir de brasília com o filho radicado em são paulo. "ai, genival, eu vou te pedir. vem, vem pra brasília, meu filho. vocês nasceram aqui em brasília, são daqui de brasília, são filhos natos de brasília", ela insiste-e-seduz, o doce sotaque do brasil de cima, norte-nordeste, produzindo música nos ouvidos alheios.

dona sebastiana reclama que genival levou embora seus velhos discos de vinil: "você não devolve, genival, pior é isso, você levou e não traz". amoroso, gog acalama "mamãe" (sim, ele a chama mamãe). a partir dos vinis confiscados de mãe para filho, entabulam um bate-papo sobre a música popular brasileira. genival promete devolver gerson combo, azimuth... sebastiana lista os lps de que mais sente falta: "o que eu queria é djavan, é linda a música dele, né? wanderléa, toni tornado, 'o bem-amado', cláudio santoro, altemar dutra... zé ramalho, genival!, tava esquecendo zé ramalho, zé ramalho tá faltando também. mutantes. vanusa. ah, gostei tanto de quando vanusa era casada com antonio marcos, que eles cantaram juntos".

genival lamenta a memória mal preservada da mpb, o modo precário como vários daqueles nomes citados pela mãe vivem e/ou viveram. fala do objetivo de preservação que leva os lps de dona sebastiana viajarem de brasília a são paulo - os vinis de mpb serão matriz para um disco (duplo) de hip-hop, "tarja preta". "é pra isso mesmo que eu guardo, é pra isso que eu quero. é pra vocês divulgarem tudo isso. quantas pessoas não sabem nada sobre um lenine desse?", filosofa mamãe.

gog explica à mãe a tática de guerrilha: exemplifica. cita o lindo samba-rock-balada "como?" (1973, de luis vagner), cantado por paulo diniz, e se põe a rimar e a dizer da saudade que também sente: "mãe, sem palavras, obrigado/ sou de brasília há três anos em são paulo/ trabalho gratificante e suado/ (...) várias vezes a saudade fez perder o sono". entra a voz suave de paulo diniz, "como vou deixar você/ se eu te amo?", e gog decifra: "é a senhora e brasília, como é que eu vou deixar vocês, se eu amo vocês, né?".

"brasília é linda, brasília é um amor", rebate a comadre sebastiana. "meu sonho é ficar em brasília, não quero mudar." "tá certo", concorda gog, enquanto paulo diniz completa ao fundo: "talvez esteja andando em linhas tortas...". o disco começa, a viagem pela raiz musical brasileira se inicia.
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em "a rima denuncia", interpenetram-se à voz de gog outras duas, uma do rock universitário, outra da mpb universitária: o tarja brasiliense renato russo canta "música urbana 2" com sua legião urbana, a tarja gaúcha elis regina vibra "terra de ninguém" (dos surfistas tarja carioca marcos valle & paulo sérgio valle). o 1986 de russo e o 1965 de regina se misturam a 2004/2006, e elis prenuncia (ou "posnuncia"?) as curvas do tempo: "mas o dia da igualdade tá chegando, seu doutor".
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"é o crime" estabelece o primeiro manifesto, entrelaçando noções sobre o que é "crime" de acordo com o "centro" e noções sobre o que é crime de acordo com a "periferia". "amante das causas das canções que me comovem", o narrador contrapõe, aos "criminosos da comunicação" (do outro lado da muralha social), "o crime da identidade própria" (o dele - é crime?).
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"talvez seja querer demais" seria combustível para o eterno chororô de críticas aos humores sombrios e violentos no ar do rap brasileiro. "esteja presente aos enterros, aos velórios", "vá ao iml assistir o corpo ser autopsiado", "esteja presente/ alguém sendo reanimado/ descargas elétricas, choques, familiar desesperado", "visite um centro de reabilitação de drogados/ crise de abstinência, tremor, maus tratos", enumera a letra, tematizando sem medos nem meios termos aquilo que, na vida, lateja, machuca e assusta.

seria sombrio e violento, não tivesse a intenção que tem: conversar cara a cara com um interlocutor que ensaia entrar para o mundo do crime. fala a um favelado, possivelmente, mas quem disse que o discurso não se ajusta a um candidato a deputado federal, a um aprendiz de jurista, a um empresário de colarinho branco?... "os ricos são tão pobres que não percebem a frieza/ a triste pobreza em que usufruem suas malditas riquezas", o narrador chama a elite pálida à consciência.

e ainda conclui: "quer entrar pro crime, vai/ mas antes respeite os argumentos deste ignorante". ignorante?, pois sim, quem seria mesmo o "ignorante" nesse diálogo?
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em quase nove minutos, a melancólica epopéia "...o amor venceu a guerra" começa citando "eduardo e mônica" (1986), da legião urbana, sem que se entenda de início ao certo o porquê. mas a história se desenrola, e aos poucos vai ficando evidente que se trata de um drama shakespeariano de amor vivido na periferia, na favela, na prisão, nos extremos: "aqui tortura tem o nome de depoimento/ adivinhe quem me visita fim de semana?/ quem eu amo sem ter levado pra cama, quem?". ela, a amada, é claro.

"eu?, apaixonado por uma moradora da favela?, não. além de petulante, vendedora de panela?, que é isso?", inconforma-se o amante amado que a amada amante xingara de "traficante".

a atmosfera pode parecer pesada, negativa, mas só se o ouvinte não compreender a espinha dorsal da intenção (anti)(pós)romântica do rapper. "é bem mais fácil falar da dor/ é bem mais fácil que falar do amor/ dá mais ibope", ele indica, referindo-se aos vícios de romantismo doentio dos corações, mas num recado que poderia -e deveria- ser espalhado à mídia e às classes mais "altas" da sociedade.

"é bem mais fácil guardar rancor/ é bem mais fácil que dizer que perdoou/ dá mais ibope/ chama atenção/ mas faz mal pro coração, né, não?", arremata o narrador, tentando pulverizar os males sorumbáticos que infestam a sociedade de terra batida e a sociedade de asfalto surrado.
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"eu e lenine (a ponte)", mais um título explícito, celebra o pavimento das inter-relações de classes, origens e geografias, inclusive aquela de lenine (e lula queiroga), "a ponte" tarja pernambucana de 1997, sampleada no rap. mas reconhece que atravessar as pontes que separam as periferias "pobres" de são paulo do centro "rico" rico de são paulo não é mole, não - é matéria concreta, abstrata, vivenciada muito mais de lá para cá (alô, empregadas domésticas, office-boys, garçons, trabalhadores do comércio central...) que de cá para lá.

"a ponte simboliza união/ no nosso caso, brasília e o sertão", diz gog a lenine, simulando um diálogo virtual entre a mpb de pedra e o rap de responsa.
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"tarja preta", a tensa faixa-título, vai direto ao ponto na prescrição periférica. em entrevista ao site real hip-hop, gog explicou o título, da faixa e do disco: "nos últimos anos medicamentos tarja preta foram freqüentes na prateira da casa dos meus pais. como filho acompanho isso de perto, cheguei a consumir também durante um pequeno período. meu pai acabou falecendo, e os tarja preta são presença forte na minha mente".

ora, direis, isso não é tema para música - não é?, não foi?, não tem sido sempre, mpb, rock, canção sertaneja & eletrônica afora? é, foi, tem sido. aqui é literal, sem tarjas censoras.

"a palavra que define o estilo da favela contagia, contamina quem tá dentro dela/ o efeito é forte, o efeito é forte, o efeito é forte, o efeito é forte", diz o refrão, cê sabe, né?
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um pouco de descontração testa "g.o.g. no jogo", a faixa seguinte. o sampler é de são jorge ben, o pai de todos os rappers: a vital "ponta de lança africano (umbabarauma)" (1976), para animar a festa, a luta & a lida - raiz musical brasileira com tarja preta, mora?
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"dias de fúria", grave vozeirão nervoso - a raiz musical brasileira também é ratos de porão, garotos podres, cólera, olho seco, a punkadaria paulista toda. tarja preta não veta entrada para o rock, nem para a testa pálida dos punks.
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"pra mim foi difícil/ foi preciso me libertar/ e derrotar o senhor do fracasso", emenda "o incendiário", encarando de frente um fantasma pálido que, sim, os ignorantes das elites quejandas de cá também conhecem muito bem. não é fácil.
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hora de suavizar mais uma vez, por intermédio da maciez do samba. "dinheiro na mão" incorpora "pecado capital" (1975), de mestre paulinho da viola. aí você ouve ali pelo meio do rap que "dinheiro na mão é vendaval, é vendaval/ na vida de um sonhador, de um sonhador" e lembra que, epa, nem o samba doce de paulinho era assim tão suave, tão inofensivo. tarja preta.
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lado a lado com paulinho da viola, raul seixas vem dizer presente, o reclame do rock selando alianças com a loa do samba, em "parei pra pensar" (qual a melhor maneira de parar para pensar, senão com raul?). os primeiros acordes de "maluco beleza" (1977) se repetem à exaustiva canseira por oito minutos, enquanto gog discursa reavivando memórias de seu trampo no rap nacional, desde 1983.

ao final de tanta reminiscência, surge a voz passional (alô, elis regina!) de vanusa, tarja loura, "folhas do tempo" (1981): "hoje eu preciso de um mundo melhor pra viver/ hoje eu preciso entender esse rio, esse pranto que corre"... o coração de dona sebastiana pulsa mais forte, não foram em vão os vinis guardados com amor pela mãe brasiliense.
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termina o cd 1, "comprimido 1". começa o cd 2, "comprimido 2".
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"próxima parte" faz prosa concreta com a letra "p", pobres pretos para cá, playboys petrificados para lá: "por que, presidente? pra patricinha princesinha, prestígio, patrocínios, progresso, patrimônios, propriedades, palacetes, porcelanas, pérolas, perfumes, plásticas, pumas, paetê. por que, prossegue? pro plebeu predestinado, pranto, perfurações, pêsames, pulseira pro pulso, pinga, poeira, pedradas, pagar prestação por prestação, parceiros paralíticos, paraplégicos, prostituição". percebe?

acima das hostilidades de classe, chama à fala os próprios parceiros periféricos: "por que pele preta, postura parda?". percebe?
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visitando de novo a candura, "periferia ao vivo" usa por base o iê-iê-iê romântico "ternura", lançado em 1965 por wanderléa (ah, o coração de mãe de dona sebastiana...). o tema - a vida na periferia - é menos terno que a ternurinha da jovem guarda: "só direitos pra eles e deveres pra nós/ muita fartura pra eles, migalhas pra nós".
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"comédia no crime" tampouco é inofensivo: um desagradável barra-pesada da marginália faz ameaças de violência física e morte ao narrador. ao fundo, a malemolência se estabelece nas cuícas do samba gingado tarja branca-e-preta do trio azimuth, no "melô da cuíca" (1975). estabelece-se quase um samba-funk, gog luta por (se) descontrair - não é fácil, ele já havia avisado.
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em "quebra-cabeça", o tributo à raiz brasileira atinge a grandeza afirmativa da auto-homenagem: o próprio hip-hop é o foco, com citações cruzadas a racionais mc's, mv bill etc. é difícil, mas nunca impossível.
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"três corações": a melancolia se impõe novamente, com depoimentos gravados de pessoas de carne e osso, lavadores de carro, catadoras de papel, feirantes, o povo enfim que faz na metrópole a ponte cotidiana entre o subúrbio e a rua - aqueles mesmos que inspiram rezas de "segura" distância por parte dos desalmados (alô, soul music!) daqui de baixo.

"eles falam que o crime organizado tá na favela, mas não, tá é na política", opina um (sub)cidadão. "periferia tem seu lado bom", sentencia o narrador tarja preta.
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"rua sem nome, barraco sem número" ostenta uma base funkeada, mas o título explicita que o tema não dá refresco nem facilita a vida de ninguém, pois não?
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"a ambição falou" detona bush e hussein, e o tema de fundo é aquele da telenovela "o bem-amado", de 1973, santuário coronelesco do atraso atávico de odoricos paraguassus, zecas diabos e antonios carlos magalhães [esse último resta citado por gog - com ojeriza, é lógico - noutra faixa do álbum duplo]. "pra ele o poder valia muito mais que a razão", sintetiza o coral som livre (alô, dona globo!), fazendo voz às linhas compostas por toquinho & vinicius de moraes, quase 506 anos atrás.
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sob a lírica kitsch e a épica renitente da unidade latino-americana, "sonhos latinos" reúne uma multidão de artistas setentistas que sonharam aquela utopia (utopia?) na voz feminina que entoa o refrão-símbolo tropicalista de "soy loco por ti, américa" (1968), de gilberto gil e capinan. tarja preta de tropical melancolia, gog também é louco de amores por ti, américa latina.
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eis a "lei de gerson", e você pensa que lá vem mais ode brejeira à lei do "bom malandro", do "racista cordial", do "espertalhão" que tenta sempre levar vantagem em tudo. mas não. o gerson em questão é gerson king combo, patrimônio tombado do funk brasileiro. a homenagem se estende ao toni tornado de "podes crer, amizade" (1972) [dona sebastiana suspira...], e o funk de raiz se faz raiz brasileira; tarja preta, preta, pretíssima.
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seguem-se mais duas faixas tensas ("em alta tensão" e "américa sem reféns"), e acabou - acabou? acabou, mas ainda tem. abra-se o encarte-bula do "tarja preta" de gog, as contra-indicações não existem e os efeitos ideológicos-musicais são os mais saborosos e eloqüentes. pílulas de bula, para concluir:

"gog (original rap nacional) pertence aos grupos de linha consciente do hip-hop, tendo ação resgatadora, estando indicado nos casos de baixa auto-estima e distúrbios causados por séculos de bombardeio cérebro-cultural agudo."

"gog (original rap nacional) não está indicado para pessoas que se vêem como superiores aos demais, com surtos de prepotência e portadores de guetofobia, podendo causar danos irreparáveis aos sonhos de eterna dominação dos mesmos."

"gog (original rap nacional) não deve ser ouvido paralelo ao consumo de bebidas alcoólicas, televisão e outras drogas lícitas ou ilícitas."

"mantenha sempre ao alcance das crianças." [gênio, gênio.]

"em ouvintes idosos ou debilitados todas as faixas podem ser ouvidas devido a ausência de palavrões, embora as narrações sejam explícitas."

"a audição por mulheres grávidas deve ser feita com auxílio de fone-de-ouvido que serve de conector, e que se acopla ao cordão umbilical levando informações diretamente ao feto."

"gog (original rap nacional) é prontamente absorvido quando administrado por via auditiva."

"gog (original rap nacional) é um princípio ativo extraído da experiência familiar, convivência com as verdadeiras amizades, associados à leitura e ao alto teor revolucionário do descendente nordestino genival oliveira gonçalves."

"orienta-se avaliar periodicamente a evolução sócio-ativo-cultural do ouvinte em tratamento com gog (original rap nacional)."

"a audição de gog (original rap nacional) não causa dependência [gênio, gênio, gênio]. o ouvinte após a audição terá discernimento completo para tomar suas próprias decisões [gênio, gênio!]."
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enfim, pois sim. esse rap é tarja preta, remédio forte (alô, wado, bojo e maria alcina!). cê tá entendendo tudinho, né?

quinta-feira, julho 06, 2006

marizeca?

quando e onde tudo (ou nada?) se mistura, o moço (& as moças, & os moços) e a moça (& os moços, & as moças) invadem a (antiiiiiga) "carta capital"
nº 386, de 29 de março de 2006.

vai saber... [alô, gaúcha(o)s!], lalaiá laiá...

DUAS VOZES EM LIBERDADE
Marisa Monte e Zeca Baleiro provocam o cenário com dois discos cada

Por Pedro Alexandre Sanches

Os brasileiros que não vivem em Marte souberam, no decorrer das três últimas semanas, que Marisa Monte lançou dois discos ao mesmo tempo: um mais pop, chamado Infinito Particular, e outro coalhado de sambas e batizado Universo ao Meu Redor. Sob o interesse que a trajetória virtuosa da cantora e compositora carioca de 38 anos tem atraído naturalmente, ela se plantou feito posseira em todos os meios de comunicação do País, em papel, imagem, som, internet, o que for.

Mais custoso, nesse mesmo período, foi descobrir por consulta à mídia que outro artista da mesma geração, Zeca Baleiro, também estava lançando dois discos simultaneamente. Mais que isso, ele estava inaugurando uma gravadora de propriedade própria, Saravá Discos, integrando e atualizando um movimento que Marisa fizera há seis anos, quando fundou o selo próprio Phonomotor, até hoje distribuído pela multinacional EMI.

A desproporção no interesse que seguiu cada uma das duas notícias não é difícil de compreender. O cantor e compositor maranhense de 39 anos não conta com o empenho comercial de multinacional, tampouco os CDs de estréia da Saravá gozam de apelo mercadológico comparável ao da volta de Marisa após quatro anos de silêncio.

Um deles, Cruel, é uma coleção de 14 canções inéditas do músico capixaba Sérgio Sampaio, que eclodiu em 1973 com o hino de rebeldia implícita contra o governo militar Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua e se emaranhou em descaminhos até a morte precoce em 1994, aos 47 anos. Zeca dirigiu o aperfeiçoamento de um material precário na origem, mas não aparece como músico no CD.

O outro é Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé – De Ariana para Dionísio, em que cantoras como Angela Maria, Maria Bethânia, Angela Ro Ro e Zélia Duncan interpretam versos de Hilda Hilst (1930-2004). Sob a aprovação e o incentivo da rebelde escritora paulista, Zeca criou melodias medievais para recobrir os poemas e recrutou as intérpretes, mas, de novo, não atuou como músico no denso álbum resultante.

Enquanto Zeca Baleiro acalenta os ditos "malditos", Marisa se deleita sobre serenas canções autorais com os parceiros "tribalistas" Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, e outras de Paulinho da Viola, Novos Baianos, David Byrne, Adriana Calcanhotto etc. etc.

Se a princípio quase tudo parece incongruência entre ambos, há, entretanto, uma semelhança de fundo: Marisa e Zeca se aparentam no gerenciamento profissional, independente, discreto e sustentável da música que criam e/ou ajudam a criar. "Bom senso" e "pés no chão" são termos recorrentes nas entrevistas de ambos a CartaCapital.

É o que diz Marisa, ao comentar o frisson que provoca entre colegas, imprensa, fãs e detratores a cada vez que volta à tona: "Minha história é tão paralela a isso tudo, é tão mais pé no chão, bom senso. Não sou um motor em constante movimento. Acabei sendo vista como uma artista que cuida de tudo, participa de todas as esferas. Mas não sou a única, não sou exceção. Passa uma coisa que não acho legal para mim, de poderosa".

Zeca é prova de que ela não é a única. Se Marisa já ultrapassou a barreira hoje quase utópica de 1 milhão de cópias, ele acumula vendagens médias de 100 mil cópias a cada álbum. Diz que o CD mais recente, Baladas do Asfalto & Outros Blues (2005), anda pelas 30 mil peças vendidas (os discos da Saravá saem com 3 mil exemplares cada): "A popularidade não se reflete mais em venda de discos. A dinâmica é suor, mesmo. Funciona porque a gente é maluco, obstinado, alterna momentos de idílio e bancarrota".

Evoca o mesmo bom senso, em contexto diverso, ao comparar o mito das gerações heróicas da MPB dos anos 60 e 70 e o modo como se auto-administra hoje: "Hoje é mais pé no chão, essa gente viveu um apogeu de muita fantasia. Tem gente que vive a vida como se fosse uma carreira, com um foco doentio, egóico".

O discurso é de quem demorou para se fazer notado (lançou aos 31 anos o primeiro de seis CDs de ferina poesia simbolista) e viveu no anonimato experiências extremas a que artistas da geração de Jimi Hendrix se atiraram do alto do palco. "Com 31 anos, eu já tinha passado por poucas e boas, já tinha quase morrido de overdose", cita, talvez justificando a atração pelos desajustados Hilda Hilst e Sérgio Sampaio.

Faz essas referências ao comentar o dado aparentemente paradoxal de se sustentar ancorado pelos shows que faz, mesmo tendo desacelerado essa rotina. "A morte estúpida da Cássia Eller me fez recuar. Também já senti umas palpitações, como ela eu fazia cem shows por ano. Nos últimos três anos, fiz a poeira baixar. Como lutei para morrer com 27 anos e não consegui, começo a pensar na perspectiva de envelhecer. É preciso saber viver", conclui, citando o duradouro Roberto Carlos.

Marisa vivencia de modo diverso o lema "é preciso saber viver": recolhe-se por longos períodos após cada rodada de superexposição, evita quase sempre as câmeras de tevê e várias vezes os gravadores da imprensa, cala sobre a vida íntima.

"Você é muito cobrado, em meio a todas as impressões que a imagem pública provoca. O que eu digo em música já é tão íntimo, é o que eu tenho de mais íntimo para oferecer. Está tudo ali", afirma, citando a letra de Infinito Particular, que convoca o ouvinte à participação em versos como faça sua parte/ eu sou daqui, eu não sou de Marte/ vem, cara, me repara/ não vê?, tá na cara, sou porta-bandeira de mim.

Sim, considera-se exigente com o público que cativa, assim como é consigo própria: "Exijo que meu ouvinte tenha olhar crítico, opinião. Acho que exijo do meu público, ou estaria cantando a mesma música há 20 anos".

"A gente gosta do que conhece, a gente gosta da gente mesmo. Acho que uma pessoa gosta do meu show quando assistiu e se sentiu aceita, quando se gostou", equipara-se, talvez embutindo nessa reflexão elementos de auto-estima como o de que os novos "talvez sejam os dois discos mais femininos que já fiz", inclusive adicionando um prisma feminino ao universo quase sempre masculino do samba.

A volta de Marisa vem apoiada na promoção agressiva da EMI e em estratégias controversas de controle. Fãs se mobilizam via internet em protesto contra um inexplicado dispositivo instalado nos CDs, que impede o consumidor de transferir as músicas que comprou para seu computador ou iPod (consultada, a EMI se exime de qualquer explicação).

Afirma-se "exausta" com a agenda carregada de entrevistas, mesmo que parta dela a imposição de que todas se concentrem em poucos dias. "Tudo tem de acontecer na mesma semana, a notícia é perecível. Quero acompanhar, atender todo mundo. É Brasil, é exterior. Acaba sendo ruim para todo mundo."

Diz isso já tendo experimentado o silêncio completo, à época do lançamento em trio de Tribalistas (2002), mesmo assim amplamente bem-sucedido. "Foi importante, libertário, estou alforriada. Hoje sei que faço (entrevistas) por opção", afirma, acrescentando que nem por isso pretende se abster da fala pública como um João Gilberto ou um Chico Buarque.

À margem das agendas, Zeca comenta com certa autocrítica o trabalho autoral mais recente: "É o disco em que talvez eu mais tenha aberto mão do controle da produção. Tem uma sonoridade leve, radiofônica, que eu jamais permitira, se estivesse mais à frente".

O discurso de Marisa sublinha desinteresse mercadológico: "Se vender menos, tudo bem, se vender mais, tudo bem, se não vender nada, tudo bem também. Sucesso é uma coisa, êxito comercial é outra. A realização vem na hora de fazer".

Do lado masculino, Zeca também evoca o "êxito": "Não tenho mais pressa, se é que tive algum dia. Me interessa tanto a faceta pop como a glória da maldição. Esses discos agregam coisas importantíssimas à minha breve história. Por ter sido realizados, são em si o êxito". Mesmo sem pressa, co-produziu um disco do pouco conhecido músico paraense Nilson Chaves (Maniva, 2005) e acalenta para o selo Saravá projetos de um disco infantil, um do "maldito" Walter Franco, outro póstumo do sambista maranhense Lopes Bogéa.

Sobre política, Zeca declara bancar projetos marginais "sem patrocínio, caixa 2, mensalão". Marisa prefere a discrição, diz que "hoje abundam na imprensa milhões de opiniões levianas", deixa pistas discretas em forma de música, como em Levante, dos três Tribalistas com Seu Jorge: Vejo os jornais/ não sei que lá, não sei de nada/ tudo normal/ nas marginais e nas fachadas/ (...) mas pra sacudir levante.

Ele assinou o manifesto dos trabalhadores de música contra a Ordem dos Músicos do Brasil, gerida pelo mesmo grupo há 40 anos. Ela diz que nem sabe o que está acontecendo: "Tenho carteirinha da OMB, fiz provas, pago anuidade. Sei que eles têm serviço médico e dentário, acho que é mais para músicos que não podem ter, para outro tipo de músico. Não sou muito ligada, até porque não faz diferença na minha vida prática".

Ela canta, no "disco de samba", que trabalho em samba e não posso reclamar e que todo dia/ vivo pensando em casar/ juntar as rimas como um pobre popular; mas sonha também, no "disco pop", com um belíssimo e idílico Vilarejo: Toda gente cabe lá/ Palestina, Shangri-lá.

Ele por ora anda cantando menos, mas evoca o espanto que sentiu diante de um garçom que o abordou no Hotel Glória, no Rio, com a seguinte interrogação: "O senhor é o Zeca Baleiro? Pode me informar se aquele disco da Hilda Hilst já saiu?". Ainda não havia saído, mas ele retribuiu o apreço do garçom brasileiro que não vive em Marte e sabe tudo de Hilda Hilst: ao voltar ao hotel meses depois, levou de presente um exemplar das odes musicadas de amor não correspondido De Ariana para Dionísio.