quinta-feira, junho 29, 2006

pílulas (anti)concepcionais: parada gay

pensou que eu ia deixar para lá, é? (até eu cheguei a pensar que ia, mas não deixei.)
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"notícia" é artigo perecível? dez dias depois de acontecida já morreu, apodreceu, caducou? ou vale ainda?
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vale!
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pois é. depois de acontecida a parada da diversidade sexual de são paulo, dez dias atrás, os sisudos órgãos de imprensa cobriram constrangidos, desconfiados (e preconceituosos) como sempre.
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tentando quantificá-la (para não ter de qualificá-la?), os órgãos rígidos da imprensa oscilaram na metragem da parada.
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para uns, fomos 2,5 milhões nas avenidas centrais de são paul. para outros, fomos "apenas" 2 milhões. apenas.
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as previsões (dos próprios organizadores sempre entranhados em disputas e fogos amigos internos) eram de que decrescêssemos - devido a quê? à desorganização dos (des)organizadores? à torcida contra (ops!, vodu!) dos (ex-)organizadores? à apatia dos passeadores? a quê?
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pois crescemos. crescemos ("apenas") 20%, de acordo com a imprensa conservadora.
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de acordo com ela, a imprensa conservadora, éramos 1,8 milhão em 2005 e fomos 2 milhões ou 2,5 milhões edm 2006.
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às vezes, para um mesmo órgão flácido da imprensa zonza versão 2006, éramos ora 2 milhões, ora 2,5 milhões - algo assim como se 500 mil gays, lésbicas, transgêneros, bissexuais, heterossexuais e os inúmeros intermediários entre eles sumissem e reaparecessem feito pisca-pisca, tragados sem mais nem menos por um gigantesco armário invisível, depois devolvidos, então abismados novamente.
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os órgãos se baseavam, para oscilar, nos dados da polícia militar, aquela mesma que passa por apuros nas mãos do pcc, aquela mesma que cravou, bem resoluta (e sob a credulidade religiosa da mesma imprensa), 3 milhões de pessoas na simpática marcha evangélica que dois dias antes percorreu (quase) as mesmas avenidas.
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e o tema-lema da parada não-evangélica era homofobia é crime, sacou?, prestou atenção?
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mais fácil quantificar que ter de qualificar a (própria) homofobia, né, dona etelvina, né, seu baltazar?
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mas, então, voltando aos números oscilatórios do triunvirato polícia-prefeitura-imprensa, foi algo como se as avenidas centrais da cidade central (do brasil) houvessem sido tomadas por algo entre 5 milhões e 5,5 milhões (a oscilação fica por conta das minorias sexuais em pisca-pisca - evangélicos são estáticos, mesmo que também cresçam sem parar).
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5(,5) milhões de "vândalos" nas ruas? é quase um levante, uma revolta, uma rebelião, uma revolução, pois não?
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pois, creia-me, sr. marciano bélico recém-pousado no sudeste da américa do sul: nos nossos levantes não houve sequer um tumulto, uma pancadaria, uma bala perdida, uma facada, um tiroteio, um pisoteio, uma explosão de violência. os gnus revoltosos são essencialmente pacíficos, que coisa mais maluca, hein?
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porque, você sabe, quando se sai para passear em prol dos direitos sexuais, o clima lá fora pode até ser de carnaval, festejo, festa e "festa" (alô, movimento dos sem-teto do centro!!! - alô, você!!!, cê já foi ao cinema assistir "dia de festa"?).
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lá fora pode até ser, mas, aqui por dentro de cada um dos 2(,5) milhões de manifestantes, o horizonte é bem outro, não importa o solzão que esteja fazendo lá fora.
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por dentro, troveja tumulto, tensão, vergonha, apreensão, turbulência, perturbação, medo, incerteza, culpa..., uma infinidade de adjetivos-vodus. é uma onda e tanto para segurar por dentro - como não temer ser apedrejado em público, se há tanta pedra repousando insidiosas sob o solzão de quase-inverno das avenidas e cidades centrais e colaterais?
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e ainda por cima sob esse tema tão sério, pomposo, imponente e importante, de que "homofobia é crime"?
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é difícil. dói. vários ficam melancólicos. muitos bebem demais (alô, lula-ronaldo-bussunda-zézorze-larryroitman!). alguns se drogam. casais nervosos se desentendem em plena avenida. outros, bipolares, entorpecem a melancolia em euforia (e/ou vice-versa).
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é porque é difícil, e dói, e dá medo - medo, sobretudo, de que tanta turbulência interna e íntima transborde e se dissemine por perturbações maiores, coletivas, que depois venham a servir como pedras a serem atiradas no coco de quem ousou se manifestar pelos direitos, pelas diferenças e pelas liberdades sexuais (ressaltando: direitos sexuais, diferenças sexuais, liberdades sexuais).
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mas aí, então, eis a multidão.
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2 milhões, 2,5 milhões, não importa quantos milhões: somos milhões. milhões de diferentes porque são iguais, milhões de iguais porque são diferentes.
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nesse dia, ao menos nesse dia, não há homenzarrão machão que passe de carrão e tenha a manha de gritar as piadinhas amarelas que arrota com valentia nos outros 364 dias do ano, nem moçoila fóbica que ensaie careta de nojo diante da cena (ó, quão inconcebível a cena!) de "dois homens se beijando".
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nesse dia a multidão é soberana - e tem todas as cores, sexos, formas, bandeiras; todas, todas, todas. nesse dia as minorias se unificam numa única, utópica e provisória maioria.
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células turbulentas da multidão, cada um dos 2(,5) milhões de (mani)festantes provavelmente guarde para si o compromisso íntimo de não dar à sociedade o argumento que ela sempre portou e ainda adoraria poder portar (alô, laranja mecânica! bodes expiatórios, uni-vos!): o argumento-falácia de que as minorias são perigosas, desviantes, nocivas, perversas, blá, blá, blá.
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o bode expiatório.
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o agente laranja.
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a palmatória do mundo blindado da minoria branca-macha-adulta-rica-sempre-no-comando.
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bem, nem sempre, né? alô, 2006.
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mas eis que do medo (prudência? responsabilidade?) interno de uma multidão de bodes expiatórios, se faz a paz.
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porque, na grandeza deste instante, o inferno não são mais os outros. na beleza dessa hora, meu inferno sou eu mesmo - cada um dos 2(,5) milhões de eus que (in)conformam a multidão pacífica.
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nesse instante suspenso no ar, se EU não zelar pela paz da parada, aqui comigo mesmo, ela pode degringolar - EU sou responsável por ela, 2(,5) milhões de eus somos. e ela não vai degringolar, porque ela é (ainda) o único dia do ano que eu(s) tenho para transformar meu desejo de ser (pro)positivo(a) em multidão.
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eis a multidão. pacífica.
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dela (da multidão pacífica, não custa nem um centavo sublinhar), brotam as flores por entre as quais flanam as borboletas do asfalto em que (o ano inteiro) tu vais.
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flores, flores, flores. de carne, não de plástico. enquanto a coca-cola agride a multidão com outdoors fóbicos/racistas que avisam que você não tem chance na vida se for um pimentão em meio a moranguinhos, uma berinjela entre sedosos pêssegos (alô, coca-cola!, como diria david beckham: hugo!, uergh!, afasta de mim o teu cálice de fel!).
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mas as flores, não as coca-colas.
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do alto do trio elétrico politizado (alô, professora axé music!), a genial drag queen (leia-se atriz, ator, agitador/a cultural, intelectual) silvetty montila nos passa o recibo da sua bronca, da bronca que será uma das senhas do pacifismo: não vaiem os políticos, queridinhos.
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não vaiem os políticos, dona silvetty? como assim???, se os bodes políticos foram feitos para se vaiar?
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não os vaiem, queridinhos, porque os políticos (& os ativistas gays discurseiros) que estão aqui em cima dando a cara a tapa da sociedade fóbica são (são?) exatamente queles que ralaram durante o ano para garantir a diversão pansexual dos 2(,5) milhões de pansexuais - os mesmos pansexuais que, durante o ano inteiro, não moveram uma palha sequer para garantir a realização da parada afinal conquistada por aqueles (& outros) que estão sendo vaiados neste instante e serão vaiados no ano que vem se a parada for removida da avenida (de) paulista.
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quem vai mover uma palha nos próximos 354 dias, para que a parada não seja removida da avenida? quem vai chorar feito filhote desmamado de gnu quando o infortúnio estiver consumado?
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mas, ok, dona silvetty, tomamos calados a bronca - a senhora está coberta de razão. mas devolvemos a bronca como flores em asfalto quente - não ajudamos a construí-la (a parada), no bastidor; mas dentro dela (a parada), no asfalto, garantiremos a fantasia (de carmen cigana miranda) e o volume (embaixo do jeans) e o maior espetáculo (pacifista) da terra.
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aplainado o terreno por dona silvetty, o político tucano pode discursar à vontade, ainda que tremendo feito vara verde. "vocês estão de parabéns, vocês merecem, vocês são legais", pronuncia, tremendo a boca pálida a cada vez que tem de pronunciar a palavra escapatória "vocês". alguém gritará "veado!" ao pânico homófobo-demófobo [hoje, o povo é gay!] do político tucano apavorado pela idéia de estar (já estando) dentro, incluso, pertencendo. obrigado, político pessedebê, você já está dentro.
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o prefeito pefelista também chega constrangido, segundo conta quem o viu. mas chegará, chega, comparece, participa. obrigado, prefeito pefelê, você já está dentro.
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dentro estão, também, milhões de (ex-)excluídos que ainda têm de pagar pecadilhos ao som-jaula robótico desumanóide da música eletrônica, para conseguir chacoalhar carnaval.
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dentro está o comunicador leão lobo, que, ressentido, lembra do pioneirismo dos que pavimentaram aquilo tudo ali, na época em que famílias escorraçavam seus filhos homossexuais - e, depois de morto um filho escorraçado, usurpavam de seu parceiro a herança deixada. há dores entre as flores do asfalto.
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dentro está o travesti politizado, militante, organizado (alô, dastrans!, alô, daspu!), que documenta a troca histórica que sua geração testemunhou, da navalha e do gilete embaixo da língua pelo direito conquistado de pedir (e obter) proteção ao policial, diante de qualquer tipo violência.
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(homofobia é crime, lembrou?)
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(quem quiser ser prostituto(a) será, mas quem não quiser, doravante, poderá não ser, um viva para os mais básicos entre os direitos.)
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dentro está o mar de gente que ocupa consolada as duas pistas da rua da consolação, deixando espaço para nenhuma agulha mais, nenhum cisco de olho - imagens que eu nunca havia visto na vida, inédita de tão compactas que foram no sábado 17 de junho de 2006.
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dentro está o boom de casais de homens, neste ano provavelmente mais grudados, carinhosos e coesos do que jamais estiveram. ressabiados feito pintassilgos, mais e mais deles parecem mais e mais trilhar caminhos que nos anos passados já trilharam casais de heterossexuais, de mulheres, de travestis, de misturadas minorias étnicas etc. etc. etc.
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dentro está a procriação da espécie ainda, mesmo que a polissexualidade seja mesmo, como advogou santa rita (lee) de sampa, instrumento de controle populacional. porque, incrível, as pílulas anticoncepcionais (alô, camisinha!) que circulam pela parada são a anticoncepção exercida fazendo sexo (e não o evitando, como ainda pregam arcaicas igrejas), pelo exercício das sexualidades e das relações sexuais - e até, eventualmente, do direito à concepção, que pertence a todas as orientações sexuais, não apenas à heterossexual.
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dentro, estão, sangüíneas, as lindas famílias negras-índias-ciganas-árabes-etc., com seus pais, filhos, primos, tios, irmãos etc. estão, sangüíneos, as lindas (e muitas) mães e os lindos (e poucos, ainda) pais de filho(a)s gays, lésbicas, trans etc.
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dentro estão, lado a lado, as lindas famílias extra-sangüíneas de amigos para toda a vida - amigos gays, lésbicas, heterossexuais, travestis, transexuais, migrantes (transitórios & perenes) de todos os estados e cidades do brasil, tantos outros que você mesmo(a) pode inventar agorinha, usando para tanto apenas sua (ilimitada) imaginação.
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estão, sangüíneos e extra-sangüíneos, os filhos e as filhas gays, as mães e os pais homossexuais, e todos os entornos. tímidos. crescendo, a cada ano.
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dentro estão crianças, sangüíneas e não-sangüíneas. cachorros, não-sangüíneos e (quase) sangüíneos. sangüíneos, sim e não. sangrentos e sanguinolentos, nunca.
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dentro está supla, filho da madrinha marta (suplicy) e do padrinho eduardo (suplicy), cantando "arrasa, bi!" no mesmo trio rock-elétrico que também abriga o hoje ator de filmes pornôs alexandre frota. dentro da parada diversificada, estão os direitos bissexuais, pansexuais, pornossexuais, heterossexuais (que nós, da diversidade, não excluímos - nós incluímos; e, também por isso, eis a paz entre os povos).
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dentro está a paz que marcelo yuka e maria rita querem, não a paz que eles não querem.
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dentro está a evidência, ainda não dimensionada e nem sequer reconhecida pela indústria informativa que manipula(va?) a história do brasil, de que, juntos e misturados (alô, mv bill!), estamos reescrevendo a história do brasil, estamos revolucionando a história das individualidades no brasil, estamos refundando (a história d)o brasil, e (d)o mundo.
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ainda desvalorizados e enjeitados, mas cheios de amor para dar (e receber).
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parabéns, pois, a todos nós que estivemos, estaremos, estamos, somos, seremos - e não venham nestas horas nos chamar de manada de gnus. grous coroados de dourado (pai!, afasta de mim aquela coroa de espinhos!), de manada não temos nada, nestas horas em que as flores brotam dos asfaltos. porque querem brotar. porque já se cansaram de viver sementes encerradas debaixo da terra.
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porque choveu, e faz frio, e o sol nasce todo dia. para todos.

os gnus estão nus!

e com vocês agora, senhoras e senhores, flagrada pastando mansamente numa savannah loura afro-alemã, em um raro momento de folga entre um jogo e outro da seleção canarinho no velhíssimo continente, a gloriosa comitiva da mídia brasileira, aquela que vem atuando com garbo bovino no escrete, a serviço da copa do mundo 2006 e da orgulhosa nação brasileira de todos os santos-e-tempos!

que rufem os tambores!, que mujam as cornetas!, que uive de gozo a torcida sanguinária que só atinge o orgasmo na hora h do ponto g da "derrota"! glu!, glu!, glu!, abram alas pra os gnus!:


[você já veio ao espelho, ema? não???, mmmmmuuuuu!? então venha!]

segunda-feira, junho 26, 2006

o rap eleva o tom

em tempo real, porque eu não agüento esperar (mas sigo recomendando vivamente a leitura da reportagem de capa, "gente à venda", entre outras várias): "carta capital" 399, de 28 de junho de 2006 - porque (depois de) amanhã já É hoje!


O RAP ELEVA O TOM
MV Bill provoca o hip-hop ao buscar mais diálogo com a sociedade, mas desafia a elite a assumir responsabilidades

Por Pedro Alexandre Sanches

Teu pai te dá dinheiro, você vem e investe/ no futuro da nação, compra pó na minha mão/ depois me xinga na televisão/ na seqüência vai pra passeata levantar cartaz/ chorando, com as mãos sinalizando o símbolo da paz. O discurso crítico é de um jovem traficante, dirigido a um rapaz de classe alta que foi comprar drogas de sua mão. Está traduzido em música em Falcão – O Bagulho É Doido, o novo disco do rapper carioca MV Bill, que deve inaugurar um momento novo (e mais radical) no diálogo entre o movimento hip-hop e a sociedade brasileira.

Enquanto Mano Brown, dos Racionais MC’s, mantém distância da mídia tradicional, Bill avança novos passos a partir da Cidade de Deus e parece querer mover o hip-hop rumo à diversidade e ao diálogo (ainda tenso) entre classes sociais. De quebra, ajuda o rap a ocupar espaços de relevância que foram perdidos pela MPB de classe média.

O disco chega como conclusão musical (distribuída pela gravadora multinacional Universal) de uma seqüência de ações que tem colocado MV Bill em foco privilegiado na mídia, mesmo em meios geralmente hostis aos protestos mais diretos do rap.

Dessa seqüência fazem parte dois livros co-escritos por ele, Cabeça de Porco (que vendeu 40 mil exemplares, segundo a editora Objetiva) e Falcão (33 mil cópias vendidas). Mas o ponto culminante de exposição foi a exibição, pela Rede Globo, no Fantástico, do documentário Falcão, em que Bill e seu empresário, Celso Athayde, esmiúçam o dia-a-dia trágico de crianças e adolescentes que estão na ponta do tráfico de drogas nas favelas brasileiras.

"A minha forma de fazer é ocupar espaço", resume Bill, que desperta reações controversas por divulgar suas idéias e seus trabalhos no Domingão do Faustão e no Palácio do Planalto, no shopping chique Daslu, de Eliana Tranchesi, e na grife de roupas Daspu, elaborada por ativistas da prostituição do Rio de Janeiro.

"Quando eu era bem mais sisudo, os próprios jornalistas me questionavam, diziam que isso me afastava do público", ele responde às críticas inserindo a "classe mídia" no contexto. "Hoje questionam do mesmo jeito, dizem 'pô, mas você está dialogando demais'."

Pouco a pouco, outro espaço que Bill vai ocupando é aquele que sempre foi recusado pelo líder máximo do movimento hip-hop no Brasil, Mano Brown. O líder dos Racionais se mantém, por convicção ideológica, quase totalmente ausente da mídia controlada pela "minoria branca", como definiu o governador pefelista de São Paulo, Cláudio Lembo, em sintonia involuntária com o discurso que percorre de modo cada vez mais contundente o trabalho de MV Bill.

É nesse pique que continua o diálogo áspero conduzido pelo menino narrador do rap citado no início, O Bagulho É Doido: Me levam pra cadeia e me transformam em detento/ você vai pra uma clínica tomar medicamento/ imaginem vocês, se eu fizesse as leis/ o jogo era invertido/ você que era o bandido/ seria o viciado, aliciador de menor.

Para vários de seus colegas, o estardalhaço que o discurso e as atitudes de Bill têm provocado talvez cause mais impacto no chamado "asfalto" que nas próprias periferias. É o que defendem o rapper Helião, que saiu do grupo paulista RZO para carreira-solo, e o carioca BNegão, egresso do núcleo Planet Hemp e hoje empenhado no Movimento Antijabá, movido por artistas independentes.

Diz BNegão: "Bill está apresentando um ponto de vista importante. É fácil provocar um sentimento negativo, reacionário, neguinho tem. Mas o que ele está fazendo dá uma coisa diferente no caldeirão. Quem já está envolvido com o hip-hop não tem surpresa, mas para quem não convive talvez seja mais impactante".

As reações contrárias à ida à Daslu acontecem também no próprio meio, como admite Gaspar, do inventivo grupo de nova geração Z'África Brasil: "Eu não iria à Daslu, não acredito que a Daslu vá beneficiar a periferia. Mas acho que ele é corajoso de abordar temas, mexer com facção do crime, colocar os garotos do tráfico na Globo".

É parecido com o que pensa o cineasta negro Jeferson De, que prepara o longa de estréia Um Dia, ambientado no Capão Redondo, em associação com a multinacional Columbia e a Globo Filmes. "A questão da Daslu assustou boa parte dos rappers e do entorno do hip-hop. Fiquei assustado, me levou à reflexão, por que a Daslu?", diz, antes de formular o contraponto: "Mas ele deu um nó na cabeça de todo mundo. Surpreendeu o movimento de onde ele vem e os leitores do Estado, da Folha e da Veja. O vejo como um grande provocador, principalmente pelo fato de ter vindo de um nicho cujo cara principal (Mano Brown) está fora, quer distância de qualquer contato desse tipo".

Questionado pela mídia, mas também por seus pares, Bill gosta de se autodefinir como uma “ponte” entre o asfalto e a favela. "O fato de ser poliglota e falar as duas línguas me deu trânsito. Não faço diferença, embora tenha preferência pela minha raiz", afirma.

Mesmo intensificando em várias passagens o discurso duro contra "aliados" e "adversários", ele hoje coloca alto-falante em outro dilema do hip-hop, que Mano Brown e outros muito vêm abordando no contato direto com os povos de periferia: a violência expressa nas letras.

"Antes, você podia falar de violência, hoje saturou. O protesto tem de ter um fundamento", diz DJ Hum, pioneiro do rap local na dupla que integrou com o bravo Thaíde: "Muita gente denunciou, mas fazia a coisa que falava. O público foi vendo. Eram 300 discos falando a mesma coisa, matou, morreu, morreu, matou. Chegou um momento em que o discurso ficou muito hipócrita, pregava contra uma coisa na faixa 1 e fazia o mesmo na faixa 2".

Bill tenta amplificar agora o que Brown há muito vinha demonstrando aos manos da periferia: que é preciso desfazer a associação imediata entre violência e periferia.

Vai direto a esse ponto em O Bagulho É Doido, quando o falcão do tráfico protesta: Eu sou destaque no outdoor que anuncia a revista 'Veja'/ veja, veja que ironia/ que contradição/ o rico me odeia e financia a minha munição.

"Fui atacado, xingado, ouvi as merdas que muito sociólogo e socialite e jornalista falaram a meu respeito. Virei 'o bandido do milênio', chegaram a me chamar assim", diz, referindo-se à indignação que causou na imprensa em 1999, ao aparecer armado num show do elitista Free Jazz Festival.

"Quando chegou o referendo do desarmamento, pessoas que me acusaram de fazer apologia do banditismo e do crime estavam nas ruas fazendo campanha pelo não ao desarmamento", completa, lembrando que ele, o "bandido do milênio", lutou pela aprovação da proibição do comércio de armas no País, afinal derrotada no plebiscito.

Aliado de Bill na crença de que é preciso construir pontes, o paulista Rappin' Hood articula várias faces de uma possível nova fase do rap nacional – ele se prepara para estrelar um programa sobre a periferia, a ser exibido aos sábados na TV Cultura, que deve se chamar No Olho da Rua.

Diz Rappin': "A gente fala o que precisa, não vai amaciar. Mas estamos dialogando. Antes ficava cada um tacando pedra de um lado. Ninguém vai ser feliz sozinho, nenhuma classe social. O patrão precisa do empregado, e vice-versa. Segurança não está adiantando mais, olha o que aconteceu, os caras do PCC pararam um estado. Agora tem de governar para o povo, senão a guerra civil está cada vez mais perto".

De Rappin’ Hood (e também do carioca Marcelo D2, que é força central no diálogo entre o hip-hop e a indústria de massa, embora com discurso político mais atenuado) Bill parece assimilar a necessidade de erguer pontes também musicais entre o rap nacional e o Brasil. Falcão inclui, em alguns de seus melhores momentos, citações a Qualquer Coisa, de Caetano Veloso, ao libelo anti-racista Olhos Coloridos, na voz de Sandra de Sá, e à cantora dita "cafona" Vanusa.

Ecoando D2 e Rappin' Hood, ele incluiu no CD um surpreendente sambão, Minha Flecha em Sua Mira (Me Leva). "É preciso ampliar os assuntos dentro do hip-hop, é aí que está a vanguarda do rap. O que mais vejo dentro da favela é diversidade, lá se ouve de tudo que se possa imaginar", aprende Bill.

Diversidade e identidade são termos que aparecem fortes na nova produção local, como testemunha Gaspar, do Z'África Brasil: "Nosso trabalho é mais enraizado na pesquisa cultural do País. É falar sério, não é só indústria pop, é raiz popular". Forrós, blues, Zumbi e Lampião conviverão no próximo CD do grupo, Tem Cor Age. "Não importa se é negro, amarelo, branco, indígena, transparente. Tem cor, age", sintetiza Gaspar.

Segundo o paulista Parteum, irmão de Rappin' Hood e co-autor de três faixas do disco de Bill, essa identidade mais ampla passa também pelo desmonte da centralização do eixo Rio-São Paulo: "Tem muita coisa acontecendo no Brasil todo. Vai cair isso de cara de São Paulo, cara do Rio. A mídia precisa prestar mais atenção para entender o que está acontecendo".

Outra experiência nesse sentido é a do paulista DJ Marcelinho, que com o histórico grupo Câmbio Negro misturava rap e rock, mas hoje integra o grupo Beatchoro, em cujo disco de estréia se podem ouvir referências que vão de Noel Rosa e Jorge Ben à black music nacional.

"Minha relação com o rap mudou porque fui vendo que não tem muito mais que copiar levada de americano, ou ficar no estigma de que rap tem de falar só da quebrada, sair um pouco fora disso. Não é me afastar do rap, é me abrir. Acho que a tendência é se abrir, como já fazem Rappin' Hood e D2, com o samba, ou o (grupo pernambucano) Faces do Subúrbio, que põe embolada no rap. Está se percebendo que o rap tem de ter uma identidade brasileira", diz Marcelinho.

Também a identidade negra e o discurso anti-racismo, sempre presentes no rap, atingem o mainstream de modo mais intenso por intermédio de Bill, como atestam várias frases da faixa O Preto em Movimento: Não me encaixo nos padrões/ que visam meus irmãos como os vilões/ na condição de culpado/ ovelha branca da nação que renegou a pretidão; a derrota se esconde no irmão que não se assume; preto por convicção não acha bom submissão.

Fato novo adicional, presente nessa mesma faixa, é a tentativa de retratar o hip-hop como música dançante, útil à diversão. Em raps como esse e Me Leva, e também em Estilo Vagabundo, Junto e Misturado, Enquanto Eu Posso e 9 da Manhã, Bill tenta habitar terrenos ainda bem pouco freqüentados pelo hip-hop local, como lazer, festa, sexo e amor. Não é só ele – a cena rap de 2006 também se estratifica por essas várias vertentes.

Helião, rapper paulista egresso do núcleo RZO, por exemplo, se debate com a vontade de abordar temas amorosos em carreira-solo: "Vou continuar falando das mesmas coisas, mas quero falar um pouco de romantismo também. Acho isso uma evolução, poder falar de amor sem se comprometer e com poesia. Não é fácil, não pode ficar só 'eu te amo', 'eu te adoro'."

Parceira de Helião, Negra Li é outra que procura investir nessa ponte, alternando hip-hop com a languidez do rhythm'n'blues. Mas ela vai além: será uma das protagonistas do filme Antônia, de Tata Amaral, que deve estrear em 2007, tematizando a trajetória de quatro garotas da periferia paulistana. A Rede Globo estuda transformar o filme numa série nos moldes da já exibida Cidade dos Homens, possivelmente chamada Brasilândia. "É uma sementinha, acho importante eu aceitar esse lance. Posso ser uma peça, uma voz feminina", ela diz.

Sua fala também evoca identidade, sob um fundo ainda ressabiado: "Nunca escondi de onde vim, mostrei a Vila Brasilândia no Faustão. Não nego minha origem, faço tudo direitinho. Mas às vezes pensam que a gente tem de ser super-herói. Ainda tenho de ficar mais poderosa para poder falar o que eu quiser. Sou uma jovem como qualquer uma da periferia, com sonho de fazer show, dar casa para minha mãe".

A crescente participação feminina no rap também já foi captada por MV Bill, que apoiou o lançamento de Nega Gizza, e trouxe para o novo CD as vozes de Kmila e Hannah Lima.

Mais pontes são citadas pelo veterano DJ Hum: "O legal do Bill é que ele diz 'meu livro está à venda', não fica só prometendo, como sempre acontece. Um dos protestos a fazer hoje é incentivar a autovalorização do indivíduo. Não adianta dizer que o Brasil é sem futuro. O Brasil somos nós, é a gente que faz".

Fica por conta dele a dica final: "O futuro da música rap está no passado. Quem souber disso vai dar certo no presente e no futuro". Sem melancolia, sem hierarquia, cada um na sua maré, acrescentaria MV Bill, em É Nós e a Gente.

quinta-feira, junho 22, 2006

os palhaços nas ruas (& os ciganos pelados)

olha, você vai me desculpar se causar indignação o que eu vou dizer, mas é que eu voltei para casa a pé nos minutos que antecedem mais um jogo do brasil, e a mesma e única coisa continua me ocorrendo sempre nesses momentos: o hora do brasil na copa do mundo sempre significa, para mim, a hora da oficialização da palhaçada na nação.

a gente anda pela rua e fica parecendo um carnaval, mas não é bem um carnaval - é mais uma coisa circense, uma palhaçada, em que o nariz de clown é substituído pela corneta bovina e as bolinhas vermelhas sobre fundo branco se transmutam em listras amarelas sobre fundo verde (ou vice-versa). as ruas ficam engraçadas, divertidas, ternurinhas, mesmo depois da ante-sala de dia de copa que foi o levante pirata do PCC em são paulo ind'outro dia aí.

aí fico pensando eu: se as ruas, as salas e os escritórios hoje são da palhaçada, por que haveria eu de não me vestir de palhaço também? (e o palhaço, o que é?)

vai daí que não vejo ocasião melhor que este (agora que as teclas batem este parêntese, não 15h36 da tarde pré-brasil-japão) para brincar um pouquinho com um dos trecos que mais têm me divertido ultimamente. nadíssima de novo para quem já é fera em blog e internet, mas eu tenho rolado de rir ao acompanhar quais são as palavras-chave do google que conduzem internautas-andarilhos-navegadores-atronautas-internautas-nômades-ciganos-cybernautas até que eles cheguem a este blog do pas, a este cantinho obscuro e limitado da ciberesfera.

todo mundo vai ao circo?, até eu? (e a vida da bailarina?) vamos brincar de circo? seguem abaixo, em riiiiitmo, ritmooooo de copaaaaaa, algumas das mais engraçadas frases-chave que interligam este blog ao resto do mundo:


"desenho de um coração verde-amarelo"

"quero um site que tire minhas dúvidas sobre infarto do coração"

"jogos de macaco"

"travesti ana bela"

"como se vestia o presidente fernando henrique cardoso"

"tomar pílula e tomar calmante faixa preta"

"fotos vestuário romantismo clássico"

"boate mansão de pedra maringá"

"o mártir tiradentes"

"imagens virgindade masculina"

"nomes das compositoras brasileiras"

"gilberto gil e a ditadura"

"nome do atual marido da débora secco"

"gerúndio na fala popular"

"a sociedade pós-moralista"

"jorge ben o homem da gravata florida"


e, por fim, as minhas três favoritas das favoritas, em ordem crescente de favoritismo (abaixo o favoritismo!):


"fotos de fêmea do pintassilgo venezuelano"

"resumo da história do patinho feio"

"fotos de ciganos pelados"


hahaha, o mundo não é mesmo uma bola?!, que delícia!

sexta-feira, junho 16, 2006

seu jorge e o subúrbio: o gogó da ema

psiu. tá na folga letárgica aí, viajandão, pleno feriadão? tá na praia, na montanha, tá descansando da marcha evangélica, esquentando os tamborins para a parada da diversidade sexual? então que tal um pouquinho de literatura de geração espontânea, brotada da fala coloquial do brasileiro "médio"? paratodos, nesses momentos verdes-azuis-amarelos de sandálias havaianas no dedo, tome a fala suingada de seu jorge, cidadão de deus, cidadão do rio de janeiro, cidadão das ruas e cidadão do mundo nascido em 8 de julho de 1970, dez mil anos atrás.

vai aí a quase-íntegra da entrevista que ele concedeu à "carta capital" e a este repórter, em sua casa paulistana (que também é estúdio de ensaios e a produtora cafuné), entre pilhas de discos de vinil de gente bacana de z a a, como vicente celestino, roberto carlos, raul seixas, paulinho da viola, miles davis, michael jackson, martinho da vila, joyce, a trilha sonora de "gabriela", ella fitzgerald, ednardo, a trilha sonora de "o casarão", clementina de jesus, clara nunes, bob dylan, outros muitos...). ah, mas não se esqueça de que o presente de que fala seu jorge é a virada fevereiro-março de 2006, quando a entrevista aconteceu, ok?

(mas, puxa, e a aracruz, hein, psit?)


pedro alexandre sanches - o que você anda fazendo?

seu jorge - outro dia foi cesaria evora que ligou aqui e perguntou se eu queria fazer uns shows com ela, abrindo para ela. falei "cara!, minha senhora, fico honrado em fazer qualquer coisa com a senhora". vou viajar com ela no ônibus, é brasil-cabo verde, uma relação muito importante. de certa forma eu sempre quis isso, me aproximar da áfrica, ou de africano ou de artista africano, para eu me entender melhor, sabe? eu nunca tive muita informação sobre os africanos no brasil, o pouco que eu sei é aquilo corriqueiro. e é superimportante, não para se defender uma questão negra no brasil, mas por curiosidade histórica mesmo, para saber como se deu esse processo, saber por que há uma linha politizada do negro africano no mundo, e no brasil é diferente. que influência positiva e negativa isso pode ter para nós? todas essas coisas parecem nada, mas numa turnê de três ou quatro dias, trocando idéias, se pode conversar sobre isso.

pas - quando será essa turnê? vai acontecer no brasil também?

sj - é agora em março. mas, não, vamos tocar só nos estados unidos. nova york, los angeles, san francisco. aí começa o ano, loucura de agenda, concerto para caramba nos estados unidos. a europa vai estar bagunçada e badalada com copa do mundo, aí todo mundo vai para lá e eu vou para cá [ri]. são uns 25 concertos, vou tocar com radiohead, com a maior galera legal. chego de volta no dia da final da copa.

a primeira turnê que fiz nos EUA foi de 19 shows em 22 dias. ou seja, você canta todos os dias. foi um sucesso, tudo "sold out", 2005 foi um ano muito feliz para mim. andei, fiz relações, conheci foo fighters, uma turma bacana. mas não é fácil. quando se chega na frança, no aeroporto charles de gaulle, para nós está tudo bem, todo mundo nos conhece e tal. mas se vai para outro terminal que não é o a gente sempre chega... se chega na inglaterra, suíça, ou em terminal de trem, já passa por uma burocracia rigorosa. as pessoas acham o maior barato ir para a europa, mas quando você utiliza o aeroporto como instrumento do seu trabalho, meu deus. meu deus. não é fácil. somos cinco na banda, todos brasileiros.

pas - todos negros?

sj - todos negros. aí tem a equipe, minha equipe francesa, dois técnicos, o tour manage, o assistente dele e o estafeta. Ccega aquela turma com aquele equipamento, eles vêem, principalmente quando voltamos para o brasil, uns vão para são paulo, outros para o rio, outro vai para paris. o cara nos eua vê aquele monte de crioulo, aquela confusão, aquele montão de bagagem... para resolver o problema, é aquela má vontade. quando descobre que a bagagem está errada começa o trombone. o polícia já encosta, já acha esquisito, que neguinho está nervoso e querendo levar não sei o quê. já pára para dar dura, já chama o cachorro. aí o sargento chama o rintintim, o rintintim cheira a coisa toda. é um desgaste. o cara já fez você perder a história aqui, aí você perde a conexão lá. se perder, só no outro dia. e por aí vai.

pas - a que se deve isso? medo de terrorismo, racismo, preconceito contra brasileiro?...

sj - terceiro mundo. é terceiro mundo. é preconceito contra pobre. é um misto de tudo. mas se você tem uma cara de quem não comeu bem, de quem não dormiu bem, de quem teve problema..., você é problema, independente de ter superado o problema. você é um problema. o gringo fica com medo, cara. você cruza com um cara na rua, se não estiver alinhado a uma imagem que ele está habituado a ver... em alguns lugares não dá certo, vou falando por experiência própria. na itália [onde filmou "a vida marinha com steve zissou", de wes anderson] não deu certo. tentei de tudo: me vestir como eles, falar italiano, até fiquei almofadinha lá. não rola. era posto para fora, não entrava no restaurante. sozinho era isso. quando ia com minha mulher [mariana, que é branca], mais outro casal, chegava lá, cheio de mesa vazia, o cara falava "está tudo reservado". a gente sabia.

pas - qual é sua atitude quando acontece isso?

sj - o moral cai, dá aquela caída. dá a abaixada na cabeça, retira e sai. volta para casa, pelo menos em casa só tem gente boa com você, o violão. toda vez prestar queixa não dá.

pas - quantas vezes você já prestou queixa?

sj - tentei, tentei muito prestar queixa, mas nunca consegui. a polícia sempre acoberta a situação, porque é uma situação que acontece todos os dias. todos os negros lá vão reclamar. então eu era mais um. "você é estrangeiro? ah, então não é esta delegacia." tem que ir numa delegacia com um cara lá que fala português para ele poder bater a ocorrência. tá certo, você vai lá, "não é aqui". eles ficam acobertando. "Mas o que é?" foi um problema de racismo, o cara fala "mais um, quanto custa"... então eu peguei um bode da itália.

pas - tentar dá sempre a sensação de que não vai adiantar?

sj - não vão nunca resolver nada. não tenho mais reserva com relação a isso porque já sei. quando estava dentro dos poderes da cinecittà, cercado ali pelo walt disney e pelos atores, aí é maravilhoso. aí é coisa de hollywood. aliás, eu só estava lá por isso, porque se eu fosse um câmera ou um fotógrafo eu não trabalharia lá nunca. não tem um negro, não tem faxineiro. é tipo um projac enorme, você chega lá e tem cartaz de "ben-hur", filmes incríveis que foram feitos naquele lugar. e eu estava trabalhando naquela coisa.

para não dizer que não tem negro, tem um ou outro, como o james, que é motorista, já trabalha lá dentro há 20 anos, é de gana, a mulher negra, as crianças negras italianas. e tem o omar, que é cubano, a situação dele é pior, se voltar para cuba fica agarrado. fico pensando naquelas crianças na escola, bicho. a juventude lá diz que é racista mesmo. fizeram uma pesquisa e descobriram que o racismo existe, que há um bando de adolescente racista.

pas - você já foi a cuba?

sj - nunca. nem imagino como é a lei lá. sempre procuro saber como é a lei de cada lugar para não chegar lá e dar gafe. vai que você chega e é proibido cigarro, pena de morte com pisada de elefante [ri]. você tem que estar sabendo. não teve aquela modelo linda que foi para a prisão perpétua porque acharam uma prancha de surfe cheia de bagulho?

pas - como é isso aqui no Brasil, quando você está se deslocando dentro do país?

sj - ótimo. tranqüilo.

pas - porque você é conhecido, ou por quais razões?

sj - lá fora é um trânsito muito grande de gente. e tem a questão do terrorismo, que é muito delicada. estávamos eu e mariana na inglaterra quando estourou a bomba. a gente estava num hotel bacana, o bom e o melhor, até que acordou com muito barulho de sirenes. ligamos a televisão, era metrô parado, o celular da gente cortado, inteiramente incomunicável.

esse show que fui fazer lá não tinha nada a ver com a estratégia da turnê ou de gravadora. ligaram aqui na cafuné e falaram que queriam. foi quando falei que só voltava à inglaterra à la joão gilberto. fizeram uma estupidez comigo, falei que não botava mais meu pé lá nem fodendo, nunca mais. "não, não, por favor." vai pagar todo mundo por causa de uma estupidez, vocês não são primeiro mundo?, o que é isso? vão ser estúpidos, o cacete. só volto na condição de joão gilberto, o mitão de tudo. aí eles armaram tudo lá e eu voltei.

quando acordei tinha caído a bomba. íamos para a frança e para a holanda nos dias seguintes, resolvemos ficar, eles cortaram o celular, achavam que era o celular. com coisa de terrorismo eles são muito minunciosos. o cara vem com uma luva, se achou que tem um polenzinho ali na minha bolsa, coloca dentro de uma máquina e espera o resultado. aquilo vai dizer se tem algum componente, até droga acha. mas lá, basicamente, eles estão procurando explosivo, coisas assim.

e os caras não têm muita paciência, porque é o trabalho deles, e as pessoas às vezes não recebem muito bem. como para mim ficou um hábito andar no aeroporto, para mim está tudo certo, estou acostumado, faz parte, eu facilito mais a minha vida quando colaboro com os caras. aí eles não me pegam muito, não seguram muito meus horários. na bagagem do povo passante, senhor e senhora de idade, é todo mundo suspeito, não tem essa história de ser velhinho. acham absurdo ter que tirar sapato e cinto de senhora, ficar de pé no chão, ficam putos, nego está chegando no país pela primeira vez e levando aquele balão. de cada dez, os caras vão pegar um para tomar uma dura, e os caras ficam escolhendo. geralmente são os negros, os árabes, os albaneses, pessoal da polônia, rússia, países nórdicos onde a prostituição é muito grande.

pas - quem parece latino-americano entra nessa também?

sj - pessoal da américa do sul, geralmente as pessoas mais humildes do aeroporto. outro dia tinha um cheiro de urina horrível na fila de um vôo que ia para a áfrica, uma senhora deve ter passado mal. ninguém fazia nada, por quê? porque eram os pretos. deixa assim, quando acabar a gente vai e limpa, mas enquanto estiverem aí deixa assim para mostrar quem eles são. rola esse tipo de pensamento, é uma maldade isso. o aeroporto é para todos, mas não ali.

pas - por suas descrições, aeroporto é então um lugar de discriminação pesada?

sj - é, porque não tem muito por onde correr também. eles não têm como não fazer, são mil pessoas passando toda hora ali. fico olhando o aeroporto, porque passo a maior parte do tempo e tenho que entender alguma coisa, como funciona essa coisa? alguns são shopping centers, você encontra tudo, tudo bacana, restaurantes legais. ao mesmo tempo a gente arrisca a vida, né?, são 12 horas pegando essa lagoa, esse atlântico. é muito vôo, teve mês que fui quatro vezes, 12 horas para cá, 12 horas para lá... vai lá, passa dois dias e volta. fui lá às vezes para fazer só isso que estou fazendo com você, uma entrevista. "é uma televisão superimportante, não pode faltar." o cara manda a porra toda, para fazer um programa de televisão. a coisa com a mídia lá é diferente.

pas - você costuma dizer que trabalha para não precisar andar de ônibus, por causa da discriminação que sofre ao entrar num ônibus no brasil. não é um pouco parecido, em outra escala, com o que você está contando?

sj - depende da situação. tem situações em que nós somos a alegria do ponto de ônibus. a gente tem um humor diferente, se é de dia a gente puxa um cavaquinho, canta, o povo já gosta. quando você está mais à vontade em avião, o pessoal da gravata olha meio esquisito para a gente, [faz muxoxo] "essa gente", "esses artistas", "esses bagunceiros".

pas - mas você está passível de sofrer discriminação num ônibus no rio de janeiro ou num aeroporto na europa. é sem escapatória?

sj - tem que ser preto para saber [ri]. ou nordestino, ou homossexual... tem que fazer parte de alguma minoria para entender como essa minoria se transforma em maioria sofrendo. na hora do sofrimento a minoria se transforma em maioria. e aí, o que mais me deixa chateado não é o fato de as pessoas não estarem nem aí mais para nossas reclamações. o que me deixa chateado é ainda continuar o mesmo discurso de dizer que o preconceito é paranóia que está na nossa cabeça, na cabeça do negro. como, se fomos nós que fomos para o tronco? como, se fomos nós que depois de passar a escravidão ficamos aqui desempregados, porque nego preferiu dar emprego para os italianos e não dar para a gente? "como vou dar emprego para esse cara? eu não pagava ele, ele trabalhava para mim de graça, eu vou pagar esse filho da puta por causa de quê? porra nenhuma."

então aí se deu o processo de marginalização do povo brasileiro, que pegou todo mundo: o pessoal da cidade, o pessoal da periferia, o pessoal das campinas, o pessoal das gerais, todo mundo. pegou o Brasil. é um país enorme, muito difícil de administrar, com problemas institucionais em todas as rodas, e mais a omissão. a única coisa que me deixa chateado é essa mentalidade implantada não sei por quem, de que o negro é que é paranóico de achar que todo branco é racista. não é o branco mais, o problema é que a gente tem uma visão ariana da coisa. então vai ser o preto que vai dançar, vai ser o branco que gosta de preto, vai ser o homossexual, vai ser a mãe solteira, vai ser todo mundo, na cabeça dessa pessoa ariana. ariano não é só aquele cara que acha que é raça pura, não. ariano é aquele cara que acha que a situação dele é diferenciada, que ele é diferenciado perante as demais pessoas do mundo, perante a sociedade. então eles se excluem, se reservam a um grupo. quando têm algum tipo de poder ou manipulam alguma coisa que é de gênero coletivo, a coisa desanda mesmo. se é dono de uma multinacional, ele tende a atrasar muito a vida de muita gente, mesmo que precise dessa gente para fazer sua vida, para serem seus funcionários. ele não está nem aí para a humanidade, não é preocupação dele.

no brasil não cabe mais isso. o brasil é um país multirracial, de uma língua própria. a gente não fala mais português, a gente fala brasileiro. é um país que já deveria batalhar pela unidade de seu povo e sofreu esse baque muito forte, que é luiz inácio lula da silva e sua comitiva, o pt, tudo. eu fui uma pessoa que votou nele e saiu daqui. no começo da minha turnê lá fora, eu falava muito bem desse governo. acreditava muito nele, "ele vai superar, ele é do povo, fomos nós que colocamos ele lá, ele perdeu três eleições para ganhar essa". nós mostramos que somos do povo e colocamos lá quem a gente quer. quando chega aqui, o cara, pô, corre mancomunar com um montão de babaca, de cafajeste. josé dirceu quer voltar a ser deputado, tomara que não consiga, tomara que as pessoas se liguem que esse homem não pode voltar, que não pode ter retorno de jedi para ele.

pas - descontado isso, lula não é tratado do mesmo modo como você é tratado nos aeroportos?

sj - com certeza. eu não atribuo o problema a ele. a única coisa que magoou na situação do lula é que eu senti que ele não explicou direito para a gente o que aconteceu. depois assisti ele no "fantástico", ele continuou não explicando o que deveria explicar. se eu tivesse uma oportunidade, ia fazer uma pergunta a ele: queria saber quais são realmente os verdadeiros poderes do presidente da república neste país. na minha cabeça, o presidente de um país não é só um administrador. ele tem lá sua comitiva de técnicos, ministros e secretários. ele é um líder na frente não só de um povo, mas da sua técnica, da sua nave. ele é o comandante de uma nave. e entendi eu que lula, apesar de continuar sendo um mito vivo, ele tinha uma chance. lula foi colocado em escanteio até onde nem o povo brasileiro não pôde colocar. foi discriminado, sofre coisas que eu sofro e sofri como todo brasileiro que sofre, porque veio de garanhuns, porque é pernambucano, porque era metalúrgico, não fala com um sotaque agradável a essa sociedade que não é sócia de ninguém. então ele não poderia personalizar essa sociedade que vende para a gente que ele não seria uma pessoa preparada para estar onde está. mas ele se fez.

eu acho que o que aconteceu em relação a ele, ao governo dele e sobretudo ao partido que ele representa com ilustre biografia é o fato de que 15 anos de desenvolvimento do brasil este ano estão comprometidos pelo fato de a gente não saber quem é que vamos colocar. tinha sido colocado todo mundo e tinham decidido que nunca iam colocar lula. colocado todo mundo, sobrou quem? lula, insistindo em estar lá. a gente foi lá e colocou, agora a gente vai colocar o que e quem? se a gente não pensa no processo de desenvolvimento, tudo pode sambar nesta eleição. a gente precisa contar com quatro gestões bem-sucedidas para que de hoje a 16 anos a gente esteja numa situação diferenciada. muita coisa estará mudando no mundo. a posição econômica no mundo mudou, houve um remanejamento, um deslocamento que configura um novo perfil econômico mundial entre os países pobres.

pas - você não é um representante disso, com a projeção que consegue ter no exterior, que brasileiros como você nunca tiveram até pouco tempo?

sj - é, mas quando eu fiz foi muito natural, e começou aqui na nossa terra, sabe? se não fosse [o filme de fernando meirelles e kátia lund] "cidade de deus" - sempre vou frisar isso -, eu não sei.

pas - no passado cartola e uma infinidade de outros nomes não tiveram isso.

sj - não, nossa senhora. poxa, meu sonho é poder estimular mais isso, meu investimento agora é na juventude, no movimento estudantil. todo mundo diz que o movimento estudantil se vende fácil. não acredito nisso. acho que o brasil precisa de mais e novos técnicos. precisa pegar a juventude que está se formando agora. vamos transformar os advogados em juristas, os médicos em bacharéis, em técnicos preparados para assumir o brasil. é a única escapatória que o brasil tem. a única chance é pegar os recém-formados interessados em tomar o país de uma maneira pacífica para ser a renovação política, em todas áreas: jornalismo, música, futebol. em todas as áreas da nossa cultura nós estamos em processo de renovação, de transferência de poderes. assim é a vida. mas acho que na política não tem, ainda apelam para o conchavismo antigo, "porque eu fiz parte do governo de não sei quem", "porque eu escrevi a constituição com ulysses guimarães". fica uma protelação, todo mundo segurando sua aposentadoria por aí. duda mendonça, que vergonha, um milionário vivendo uma fantasia de novela da globo, sinceramente. eu, para não ficar chovendo no molhado, estou mais imbuído em gastar meu tempo estimulando os jovens.

pas - nas áreas em que você atua, de música e cinema, também há essas figuras que ficam só segurando sua apostentadoria?

sj - é, ficam segurando a carteira e detendo poder. muitas vezes, lá fora, os caras passam de nossa influência. é uma luta para explicar à turma lá que minha verdadeira influência musical é roberto ribeiro, bezerra da silva, jovelina pérola negra, dona ivone lara. na minha comunidade era isso, tenho certeza que era assim na comunidade de meninos de reggae, do cidade negra. na área do chico césar, em catolé do rocha, tocava jackson do pandeiro, não era tom jobim. não era, não era, não era.

é claro que todos nós sofremos influência de tom jobim, joão gilberto, chico buarque [ele!] e caetano veloso, todos nós. é uma música que ganhou asas, mas também não é verdade que esses caras vão ver a comunidade tocar. eles fizeram uma música universal, realmente, mas o problema é que chega lá fora e o gringo acha que a música brasileira é a bossa nova. agora, recentemente, ele tem descoberto que a bossa nova, sim, era uma música de expressão totalmente brasileira feita com muito carinho e amor, mas que o brasil é basicamente um país de música de raiz, e não de música sofisticada. essa música sofisticada que aconteceu nos anos 60 fez sucesso nos anos 60 para um público sofisticado nos estados unidos. aí foi ganhando o mundo, porque tinha lá algo correlacionado com a moda da época. fez muito sucesso, mas no circuito carnegie hall, essas coisas chiques.

pas - são essas razões que o levam a cantar a música "zé do caroço" [no álbum "ana-jorge", com ana carolina], de leci brandão?

sj - olha, leci é uma das poucas mulheres deste Brasil que não se prestam à opressão do que ela diz na sua obra. se conhece muito pouco e se investiga muito pouco sobre a obra de leci. essa música é um manifesto do cacete, ela fala de muitos assuntos num só. zé do caroço todo mundo sabe quem é, é aquele cara que solta caroço para cima mesmo. quando ele avisa no comando de alto-falante da favela que "todo mundo para casa", é todo mundo para casa. por outro lado quer dizer que no morro, na favela, não há impunidade. vacilou lá, acabou.

pas - aqui há muita impunidade.

sj - aqui no chão tem impunidade demais. é filho de coronel, filho de delegado de polícia, filha de não sei o quê. vai passar batido, vai furar fila, vai bater de carro, vai fazer pega, vai matar um, vai atropelar outro, mas vai passar batido. acaba provando que maluco foi atropelado porque estava errado. no morro, jamais. se você chegar lá e der um cascudo numa criança que não é sua...

leci fala um pouco desse povo mesmo, que trabalha todo dia, que quer ver a coisa melhor. é o povão, ! sou meio contra essa coisa do tom jobim. lógico que era brincadeira dele, mas via neguinho reclamando demais, "ah, tá ruim em madureira? vai para ipanema" [tom jobim falava isso, é?]. nem todo mundo que mora em campo grande quer morar em ipanema. nego só quer campo grande melhor. não é porque ipanema é maneiro que ele quer ir para ipanema. madureira é que tem que ficar bom. é ipanema, madureira, cascadura, vila madalena [onde ele mora quando está em são paulo], perdizes, todo mundo tem que ficar bom. não é só em jardins e morumbi que tem que ser bom. sou meio contra essa maneira de pensar.

acaba que leci vira e mexe está falando [canta, melancolicamente]: "no serviço de alto-falante/ no morro do pau da bandeira/ quem avisa é o zé do caroço/ amanhã vai fazer alvoroço/ alertando a favela inteira/ mas como eu queria que fosse em mangueira/ que existisse outro zé do caroço/ pra falar de uma vez pro senhor/ que carnaval não é esse colosso/ nossa escola é raiz, é madeira". você não precisa fazer a coligação que vocês estão fazendo para fazer o que vocês fazem, entendeu? "mas é morro do pau da bandeira/ de uma vila isabel verdadeira/ que o zé do caroço trabalha/ que o zé do caroço batalha/ que malha o preço da feira", está tudo caro, tudo zoado, né? "e na hora que a televisão brasileira/ destrói" ou "distrai toda gente com sua novela/ o zé bota a boca no mundo/ ele faz um discurso profundo/ ele quer ver o bem da favela." o resto está tudo certo, só a favela que tem precisa carregar todo o peso...

bicho, o brasil precisa trabalhar, quer serviço. uma babá trabalha de babá, se pintasse trabalho de faxineira ela fazia também. o que aparece, qualquer coisa serve. esse é o brasileiro. se aclimata em qualquer situação. conheci gente na noruega que saiu do maranhão há 27 anos, maranhão 40º, noruega 40º abaixo de zero. é outro eixo. uma senhora que está acostumada a comer farinha vai ter que comer não sei o que lá, é outra viagem. mas está lá mantendo a coisa do brasil. fui cantar lá "eu sou favela", a mulher chorava e gritava "é o meu país", sentindo falta da comunidade da favela, eu tenho certeza. estava no bem-bom, casada com norueguês velhinho bacana, mas tenho certeza que lá não tem a generosidade da favela. é como diz o mano brown, a gente pode sair de lá, a gente sai da favela, mas a favela não sai da gente. não sai, não sai. eu vim da outra divisão, se eu tivesse rebolado a bunda no faustão eu teria medo. se eu for no faustão, o show sou eu, não é ele. meu negócio é no palco. nós seguramos a onda da daslu. eu era isento, hoje me sustento. é uma rota de colisão.

pas - você se recusa a aparecer na rede globo?

sj - não, eu vou no serginho groisman, no galvão bueno. me convidem para cantar, não para me divulgar. você vai para dar um depoimento, cantar uma musica, em dez minutos vai tudo por água abaixo: entra o último eliminado do "big brother brasil". não vou conseguir fazer papel de bom moço na tevê. eu não sou católico, sou da macumba. não vou conseguir fazer o marcelo anthony. tenho olheira mesmo, não vou disfarçar.

você vê em novelas a avenida paulista, mas o subúrbio é sempre cenográfico. o andaraí que os caras inventam é um mar de rosas. não existe bar da jura. aquele cara [cacá carvalho] é ator premiado, renomado, mas está fazendo o papel de jamanta pela segunda vez, está me sacaneando. prefiro me envolver com a tv da gente do netinho. são só seis horas de programação, não temos anunciantes.

fiz uma capa para a "vogue rg", teve problema de patrocínio, não saiu. no natal mando bicicleta para os sobrinhos, presentes para irmão, pai, mãe, tia que me cuidou, deixo r$ 40 mil no natal, feliz da vida. tenho três irmãos desempregados, o vizinho sabe, "seu irmão não ajuda, não?". vem a mina da "playboy" e questiona meu cachê de show, r$ 70 mil. é, e daí, qual é o problema? pago imposto. o baile é esse. tenho meu samba no na mata, está o maior sucesso, cheio. não tenho ostentação, a casa não é minha, pago aluguel. tudo certinho, sou independente total, somos eu e a mari. vou fazendo outras coisas, um pouco de cinema e de teatro, e a banda fica parada. são operários, precisam tocar, preciso dar uma mão. este início do ano foi triste para todos nós. está sendo bom porque tem muito trabalho para a frente, mas virar o ano sem nenhum dinheiro, as contas meio no vermelho, meio preocupado... a gente é um país de inadimplência, aquele que as contas vencem no dia 5 e a gente só tem dinheiro até o 15, e tem que dar graças a Deus por ter no dia 15, porque tem gente que não tem. e assim vai todo mundo para o buraco.

pas - você está querendo dizer que ninguém questiona o salário de alguém rico, mas o seu é questionado pelos dois lados? é como se fosse errado você ganhar bem?

sj - é, exatamente. como se fosse uma afronta pessoal. nessa eu concordo com tom jobim, o sucesso é uma afronta neste país.

pas - qual é sua crítica ao fato de chico buarque não cantar na favela?

sj - na minha favela ele nunca foi. chico buarque já tocou no capão redondo? nunca. como ele quer ser amado lá? ele é inteligente, tenho tudo dele, está aqui [mostra uma caixa de CDs buarquianos]. tenho tudo do cara, respeito, é a obra viva do país. mas na favela nunca tocou, um homem com uma importância dessa. A música dele para o morro ele nunca levou.

pas - é uma reclamação que você está fazendo?

sj - é mesmo, é uma reclamação. um homem dessa grandeza? a música dele é útil demais, "andou na contramão como se fosse...", isso é útil, não é qualquer coisa. vai lá, leva o violão, faz um show no morro. na mangueira ele vai, tá certo, tem que tirar onda, tem que ter lazer, carlinhos de jesus, todo protegido, a comunidade é bem. tenho admirado essa aproximação dele com o samba, porque ele sempre foi sambista, apesar de ocupar ali a cadeira da mpb, que, dentro da sua equivalência, parece ser maior que o samba. a música popular brasileira fica com uma equivalência maior perante o samba.

pas - ninguém chama zeca pagodinho de gênio do mesmo modo como fazem com chico e caetano.

sj - ninguém. e zeca pagodinho é o nosso roberto carlos.

pas - nosso de quem?

sj - do povinho. do povo.

pas - mas roberto carlos também é do povo...

sj - não sei. acho que roberto carlos é mais da igreja católica. nada contra, mas acho ele mais católico do que do povo. o povo é macumba, é evangélico, é universal do reino de deus. Eu tenho vários do rei ali [aponta para as pilhas de vinis]. mas eu falo do quanto chico buarque é útil e deve ser útil. falo sobre dorival caymmi, a importância que ele tem como utilidade pública.

pas - o fato de chico gravar uma música com zezé di camargo & luciano não indica uma tentativa de aproximação dele?

sj - acho isso muito bom. todo mundo é um pouco acanhado com Chico Buarque.

pas - você também?

sj - ó, eu não, viu? tenho mais medo do almir guineto, aí eu fico nervoso. mas é o que estou falando, o cara é monstro, é bamba mesmo. mas ele tem uma configuração acadêmica, e é legal poder estar junto com zezé di camargo, que é um grande compositor, gênio, na área dele. assim como o samba também sofreu, o sertanejo, por conta da febre, do "fever", foi muito discriminado, e ainda é. mas eles se organizaram, aglutinou-se todo mundo sem essa coisa de "esse é o artista maior e depois vêm os outros". não, todo mundo era junto, tanto é que eles é que bolaram e juntaram dinheiro para o programa "amigos", na televisão. é uma sociedade musical que se organizou, virou industrial, tem suas fazendas, exporta coisas, participa do pib do brasil de uma outra maneira. é uma gente muito inteligente. é luta, eu bato palma para quem luta e chega. não é porque é sertanejo que vamos ficar batendo nos caras, muito pelo contrário. é música honesta, bonita, que mexe com o coração das pessoas. tem muita gente que gama, dorme e acorda apaixonada com essas canções, casa e tem seus filhos com essas canções, depende até da movimentação desse trabalho para sobreviver. é todo um pilar de estrutura que foi a música que fez. antes tonico & tinoco, milionário & zé rico eram regionais, não chegavam a ter uma cobertura nacional. sou a favor, assim como sou a favor do rap, de toda coisa que tem luta, movimento, expressão, integridade.

mas é verdade que muita gente monta suas duplas, confunde um pouco as coisas e quer sucesso a todo custo. isso vai acontecer em todas as áreas, inclusive da mpb. não era de esperar a junção de chico e zezé, mas é de esperar que todo mundo malhe a atitude, principalmente do chico. o desqualificado, na visão dessas pessoas, seria o zezé, e não o chico. mas quem sabe, quem pode dizer que chico está qualificado para fazer a praia do zezé? chico mesmo é uma das pessoas que mais sofreram pelo fato de sua voz não ter sido vista no passado como uma voz linda. voz aqui tinha que ser linda, não bastava cantar bem ou afinado. isso é um erro, talvez o brasil esteja deixando de ver isso. olha só como a galera é, né? o cara foi cantar uma música, aí o disco já não pára em pé porque tem um sertanejo no meio. como eu, preto, vou passar batido com uma gente que pensa isso de chico buarque? não vou [ri].

pas - você diz que Chico nunca foi à sua favela, e como é sua favela, seu lugar de origem?

sj - nunca vi ele na minha favela, fui conhecer ele fora de lá. assim como eu, com muitos outros de favela foi assim, a vida toda. no rio de janeiro, pelo menos, nunca ouvi dizer que chico botou o pé numa favela para fazer concerto, nem filantropia. a única vez que ouvi falar que ele foi nalguma comunidade foi na mangueira, palácio do samba, que também é ar-condicionado, manobrista na porta e coisa e tal, e o carlinhos de jesus lá dando força. é diferente, é toda uma assessoria de um rei, um séquito. o povão continua vendo tevê e vê o quanto chico é importante, mas não sabe da sua verdadeira importância, assim como não conhece teatro. o teatro também nunca foi à favela.

minha comunidade, gogó da ema, na baixada fluminense, depois de belford roxo, era barro, continua assim. faz muito tempo que não vou lá. não moram mais parentes lá, meu irmão foi assassinado e não tinha mais condições. aliás, só morávamos minha mãe, eu e meu irmão vitório. tem esse barro, muito pouca iluminação. não é morro, é baixada, então as casas são todas de alvenaria, não tem barraco de pau. os caras vão construindo suas casinhas, não é agrupado, amontoado, não tem beco. tem ruas, é tipo conjunto habitacional. O conjunto foi criado pela caixa econômica federal, acho que para pessoal do corpo de bombeiros. era comunidade afastada, não tinha encanamento, luz, nada. os caras não queriam comprar a casa, ela ficava abandonada e as pessoas invadiam. minha mãe invadiu uma daquelas casas e a gente foi morar lá. ficou como usucapião, posseiro, a gente tomou posse, porque estava abandonado mesmo. a casa ficou nossa.

pas - com documento, ou sem?

sj - ah, ficou sem documento mesmo, mas ninguém nunca foi lá cobrar nada. depois que todo morador entrou lá para morar, a malandragem fazia um cerco, não deixava os caras passarem, não. os caras botavam a cara lá na porta, era pá-pá-pá-pá-pá, botava eles para correr. o cabra não voltava.

tinha um campo de futebol, o mais importante deles virou um ciep. o campo era o único lazer que a gente tinha. quais eram os sonhos daquelas pessoas? sair de lá. tem uma passagem engraçada: eu tinha um amigo chamado ruzivan, olha o que acontece com o ruzivan. ele tinha parentes em são paulo, tinha certa idade, tinha estudado um pouquinho, uma tia arrumou emprego de vender bilhete na rodoviária de são paulo. à noite, conseguiu um emprego de garçom, e dividia os horários de emprego com estudo. ralava pra caramba, porque tinha uma pretinha, ele queria casar com a comadre. era quarto zagueiro, jogava, nunca teve oportunidade. a menina e a família eram evangélicas, ele queria casar e veio para são paulo. um belo dia, o cara fez uma fezinha na quina da loto e acertou, com mais um outro gaiato. meu irmão, o cara ganhou um dinheiro, estudou, comprou umas coisas. voltou para o gogó, comprou time de camisa, fez churrasco para a rapaziada, tirou a mãe de lá... pronto, fodeu. todo mundo queria ser igual ao ruzi. todo mundo sonhava em ganhar na loto e sair dali, inclusive eu.

foi horrível isso. estou falando sério, porque hoje eu compreendo. foi um golpe muito duro, porque a gente viu aquele cara que era nosso, do mesmo lance, de repente o cara, pum, virou outra coisa, mais inteligente, mais despachado. falava diferente, se vestia diferente, não era mais aquela coisa... não é que ficou babaca, metido. deu uma ajeitadinha, a coluna dele estava meio assim [se encurva] e ficou meio assim [fica ereto] certinha. aquilo causou uma estranheza e, em muitos dos casos até, não comigo, "ficou metido pra caralho". foi um problema na comunidade.

pas - despertou os sonhos de todo mundo?

sj - despertou os sonhos, a inveja, um montão de treco. e eu fiquei pensando nisso. saí de lá numa fatalidade, perdi um irmão numa chacina, assassinado. e aí, porra, eu virei artista. de hollywood. e hoje toco no rádio, apareço na tevê, um pouco, mas apareço. a minha comunidade, cara, é outra. está todo mundo tocando lá, todo mundo. todo mundo montando bandinha, fazendo um som, por causa disso. é uma coisa que inclusive quero acompanhar de perto, não porque vou fazer alguma coisa ou ajudar, mas quero acompanhar para tirar os fantasmas da frente. ah, você vai nessa? vai na música, vai encarar? então vamos tirar os fantasmas daqui, ó: tem esse fantasma, esse e esse. o meu desejo é acompanhar um pouco. estou morando aqui, bem longe, é mais complicado... mas eu agora vou fazer um documentário da bbc de londres sobre a minha vida, eles estão chegando. a gente vai até o gogó, minha mãe está empenhada em ir lá. não vou há muito tempo, e a direção das coisas mudou, a rapaziada que comandava a comunidade não é mais a mesma, morreu todo mundo. é outra gente. por mais que os caras saibam que sou eu e como sou eu, não me conhecem pessoalmente.

pas - nesse sentido é até um pouco esquisito você voltar lá, não?

sj - voltar lá para filmar é, eu tenho um supermedo de utilizar isso como zoológico, sabe? chegar na favela, gringo é foda, zoológico, pensa que é bichinho. e depois eles ganham prêmios lá fora. então já deixei claro, não é zôo. vamos falar da minha vida. entrar com câmera em comunidade hoje não é um negócio muito bom de fazer, sem devidas autorizações. viu o que aconteceu com tim lopes. podem acontecer coisas, e eu não quero uma desgraça com ninguém, muito menos com estrangeiros no meu país, pelo amor de deus. então tem que falar com as autoridades competentes da comunidade, que estamos chegando aí, não temos nada a ver, não vamos filmar nada deles. queremos fazer uma história da minha vida, remontar a casa onde vivi, as coisas que fiz, os amigos. vamos pegar depoimento dos amigos, quem eu era, o que a gente fazia junto, mostrar lugares que eu freqüentava dentro da comunidade, levar no pé de jamelão em que eu roubava fruta. nosso lazer era esse, jogar bola ou roubar fruta, pegar rã, caçar tanajura e fazer com farofa. essas coisas existem. sopa de rã é maravilhoso, curei bronquite e asma de muita gente na minha comunidade caçando rã para a galera. passava noite em charco de vala caçando rã. é isso que quero mostrar para a bbc, depois vamos mostrar um pouco o cenário do rio, vamos até a bahia, para falar do cenário negro baiano. é um trabalho bacana.

é curioso, este ano estou concorrendo a dois prêmios na bbc, de melhor cantor e melhor disco, pelo "cru". aí eles se anteciparam para fazer esse documentário. enfim, é uma coisa importante, né?, porque nunca imaginei na minha vida de chegar uma companhia como a bbc, mandar uma equipe para o brasil para filmar minha vida, minha mãe, meus irmãos, minhas filhas, minha casa, e falar do carnaval, da cultura, do cenário político do brasil. continuo tentando vender a idéia do brasil. falo de coisas que realmente não sei, "não, porque temos um projeto de exportação, o país está desenvolvendo". acabo falando um montão de merda para enganar os gringos, para eles virem botar dinheiro aqui. tenho que fazer, não entendo na verdade, fico acompanhando e invento um montão de coisa, invento mesmo. é bacana, porque eles estão muito interessados.

pas - age como um embaixador informal?

sj - informal, é. meu trabalho é esse. mas não quero ser aquele cara do símbolo, da camisa do ronaldinho, do pandeiro que roda, da mulher que tem um cavadão. isso tudo só depõe contra gente.

pas - da carmen miranda?...

sj - é, da banana. temos banana também, mas tem banana organizada. tem banana em todo lugar, espera aí. não é coisa só de Brasil, não. calma, vamos falar de negócio que podemos fazer juntos. estamos tentando, né?, colocar o brasil numa situação assim do povo que cuida do brasil, do povo que gosta do brasil. não é a política. quero dizer isto para os gringos: somos nós que gostamos do Brasil, nós que estamos preocupados. qualquer coisa que ele fizer com a gente é legal, a gente é serviçal, a gente gosta de trabalho, de serviço. então dá serviço, que a gente quer. nesse sentido tenho trabalhado muito, em falar sobre o brasil, os investimentos, os sonhos do Brasil, que o rio de janeiro precisa de indústria. [imita sotaque inglês] "é mermo? se eu fazer coisa de sapatos no rio dá certo?" dá certo, eu falo para os caras que [faz sotaque] "dinheiro no Brasil representa muito pouco, nenhum".

pas - o membro da comunidade que ganhou na loto quando você era mais novo teria sido um dos motivadores para que acontecesse com você tudo o que aconteceu depois? como se explica que você tenha virado esse cara que faz filme em hollywood e é um embaixador informal do brasil?

sj - não sei, não tenho certeza. mas as pessoas, o público, todo mundo na rua diz que leu o que eu falei, acha do caralho. acho que minha cabeça é uma das coisas que as pessoas querem entender. o caminho da música é meio previsível, menos previsível que a música é o cinema... mas estamos aí, estão acontecendo coisas, vou fazer agora um filme com tim roth, e tal. vou fazer outro filme na venezuela, está acontecendo, é claro que com muito menor expressão que a música. mas está indo. acho que essas coisas estão bem definidas, talvez as pessoas estejam querendo saber o que eu penso, o que passa pela minha cabeça, qual é a idéia que tenho da vida, o quanto posso e quero participar. quero muito, muito participar. não corro da minha responsabilidade, sociedade participativa. não vou desistir do sonho de ver meu país integrado, de ver meu povo falando a língua brasileira. não vou desistir de uma série de coisas que peguei para mim como sonhos. alguns desses sonhos antigos eu realizei. mas como se deu... acho que foi a paciência também, né?

pas - no passado, carmen miranda abandonou o Brasil para acontecer. tom jobim e joão gilberto, de alguma forma, também fizeram isso, e depois voltaram. você está levando as coisas junto, sem abandonar o seu país?

sj - já posso morar em qualquer lugar. tenho apartamento na frança, muito bom. tenho uma situação artística muito boa, uma companhia muito boa, tenho tudo para ser independente lá. tenho meu escritório lá, funcionários franceses. e ainda digo mais: os recursos sociais que existem na frança viriam muito a calhar para minha família. mas não vou abandonar o brasil, não. só saio daqui se me expulsarem, igual fizeram com os caras antigamente. se me tirarem daqui, se não me agüentarem.

pas - esse perigo não parece existir hoje em dia, não?

sj - não, hoje em dia, não. Mas a ditadura está dormindo, só [êita, seu jorge!, isola!, bate na madeira!]. ela não morreu. é esse processo que não pode voltar. mas não posso desistir do meu país. eu não tinha nada. é aqui que vou fazer meu quinhão, foi aqui que eu vim. tem muito sangue negro, escravo, que se precisa rever, homenagear. não é vingar, mas homenagear, dar valor a esse sangue derramado, dos índios daqui. quero ver meu país unificado, quero ver a integralidade do povo inteiro de novo. quero ver o povo brasileiro discutindo de novo, nós somos o desenvolvimento do país, cada um de nós. cada um de nós que sai da merda e vira aquele que paga imposto e sustenta o pib é desenvolvimento. eu sou o desenvolvimento do país, e muita gente é. vamos dar um uso para essa gente, falar de amor, perseverança e futuro. estamos precisando fazer um projeto de futuro para nós mesmos, brasileiros, que conseqüentemente vai resultar no brasil. é preciso de um tratamento, de um cuidado, de um acesso, de um carinho para o povo brasileiro. somos todos irmãos, falamos esta língua, temos esta cultura e temos pontos diferentes na nossa cultura que fazem com que hoje nós sejamos a bola da vez.

é complicado, é um país enorme, quase um continente, teve uma estagnação, também teve uma garra pesada, uma mão de ferro na comunicação. a informação, até chegar ao maranhão, chega deturpada. o satélite a gente sabe muito bem a quem pertence.
eu tenho muita fé na tevê do neto, acho que vai ser um marco na história do brasil. é muito curioso, porque ele era o netinho do negritude jr., um reles pagodeiro, que segundo outros bate na mulher. muito bem, mas no "los angeles times" ele é comparado ao malcolm x. não sou eu quem está falando, é o "los angeles times". se tudo correr bem como está para correr, a gente vai ter uma televisão muito forte, basicamente negra.

pas - você contesta que netinho tenha batido na mulher?

sj - não, não estou contestando, não. não vi, não estava lá e não tenho nada com isso, mas todo mundo fica perguntando "como você pode ser amigo de um cara que bate na mulher?". se a mulher batesse nele ninguém falava nada. não concordo, acho errado bater, mas espera aí. hoje eles estão bem para caralho. estão juntos. quem se meteu ficou com cara de merda. isso é problema deles. e favelado, assim, não tem muito essa conversa, não. escreveu, não leu, o pau comeu. não quer dizer que isso seja correto. o problema é infantilizar, pintar o cara com cara de monstro que bate em mulher. não é "bate em mulher", ele bateu na mulher dele, o cara deve ter perdido a cabeça. é ser humano, tem umas coisas que acontecem. e todo mundo faz uma sensação em cima da história e fica aqui, calcando, a porrada que ele deu no vesgo, mais um cascudo que deu na mulher dele, aí ele já virou um agressivo. vesgo eu sei que chegou na festa da gente lá, que imprensa nenhuma notificou...

pas - a "carta capital" noticiou [se quiser checar, consulte o item 2 deste tópico aqui, ó]...

sj - é, são diferentes as intenções de trabalho da "carta capital" com relação aos jornais que têm seis colunas sociais. não posso dar atenção para um jornal que tem seis colunas sociais e fica falando de cicarelli, ronaldinho, galisteu..., num país com problemas pra caralho, e essa mídia aí, top de linha, cabeça de chave, tirando essa coisa. na nossa festa, o vesgo estava sacaneando, zoando nosso jeito de vestir, cabelo, roupa... zoou a gente, tirou onda, humilhou os pretos. na nossa festa, na nossa festa, que fizeram para a gente, com depoimentos lindos, grandes depoimentos.

pas - como o de toni tornado...

sj - toni tornado fez um depoimento maravilhoso. glória maria fez um outro que foi horrível. ele disse "só deus sabe como é ter a cor que eu tenho e trabalhar na televisão em que trabalho, só Deus sabe o que eu passo lá", falou isso chorando, com 76 anos de idade. o cara não estava fazendo sensação, com a idade que tem ele não precisa. e aí a comadre chegou lá, glória maria, "comigo é diferente, sempre fui muito respeitada e admirada". mas nunca apresentou um programa dela, em 40 anos que está nessa televisão, a carreira toda. nunca, nunca. e quer saber? nunca terá. poruqe não serve. não faz o padrão global. e ela vem dizer que é mole trabalhar lá sendo preta? não. ela fez um discurso porque tinha lá governador e não sei quem. mole não é, e nunca foi para ela. mas reconheço, acredito que muita jornalista e menina negra deve olhar para ela como uma inspiração, "vou estudar jornalismo, ser repórter igual à glória maria". mas era para ela ter conquistado um posto num lugar que ela merece, por tempo de serviço, pela inteligência que tem, pela qualidade que tem. era para ela ter reivindicado esse direito. ela não reivindica seu direito, então é omissa.

pas - assim como dizem que netinho bate em mulher, sobre você já se disse que você diz que foi morador de rua por marketing. é um modo de desqualificá-lo?

sj - [bravo, exaltado.] falo para eles: cobrem minhas vitórias, não cobrem minhas derrotas. vão cobrar minhas derrotas? vem cobrar minhas vitórias. eles não têm para cobrar, porque eu ganho todas, todas. tenho a integridade aqui da minha casa, não faço ostentação, tenho um cenário totalmente independente. vivo no brasil, moro no brasil, mas não arranco dinheiro de ninguém. não fico assim "compra meu disco", "compra meu dvd", não fico. é marketing meu? marketing de quê? para ficar de bonzinho, de coitadinho? não sou digno de pena, nunca fui.

pas - e não é marketing, já que aconteceu de verdade, certo? por que as pessoas duvidam?

sj - [exaltado.] morei na rua, é verdade. perdi um irmão no gogó da ema, não tinha mais como ficar lá. tiraram a metade do rosto do meu irmão, quer que eu diga a verdade? então é o seguinte: meu irmão tomou três tiros de escopeta, ficou sem a metade do rosto, ficou no chão, um garoto de 16 anos. se bobear, eu tenho a foto até hoje. ele e mais quatro pessoas foram mortas lá, [voz embargada] chacina, [irônico] um bagulho que acontece aí, lá na minha baixada fluminense mataram 30 na última que teve, que todo mundo soube, pelo menos. porque tem todo dia, umas são divulgadas e as outras, não. mataram 30 pessoas, 20 eram da mesma família, foi um escândalo, todo mundo sabe, foi repercussão internacional. pois o meu irmão morreu numas condições assim também.

eu tinha um tio que me abrigou, fui parar na casa dele, eu já tinha 20 anos. me envolvi com música, meu tio falou assim: "cara, você é preto, 20 anos, não estudou, sacou? teu pai está separado da tua mãe, tua mãe está morando na casa da irmã. aqui a carga aumentou, a despesa aumentou. você vai ter que arrumar um emprego, cara". e eu não podia dizer para os caras que eu tinha sido excluído do exército, ia ser uma puta decepção para o meu tio. ele queria muito que eu servisse, que eu seguisse carreira. e eu tinha sido expulso. para ele eu estava numa condição perfeita, porque nunca viram eu cantando ou tocando lá em casa. nunca imaginaram. na minha família, depois do meu pai, sou o primeiro, juntamente com [o sambista] dudu nobre, meu primo. de resto ninguém, não tem músico. talvez nessa geração que está nascendo agora aconteça.

[bravo.] mas então é isso, eu devia estar dando aula na escola de propaganda e marketing, se é marketing mesmo. deu certo, né?, o merchandising, vocês caíram igual patinhos. [sério.] não poderia fazer merchandising com isso. qualquer um pode levantar minha vida aí e saber. vai lá na uerj, todo mundo vai contar minha história. pode perguntar para qualquer um, vai na vila isabel, no passo da vila, no petisco da vila, no méier, vão lá perguntar quem fui eu.

conheci gabriel moura [seu ex-colega no grupo farofa carioca], nem tocava nada, só cantava, eu cantava e ele tocava para mim. ele é sobrinho do paulo moura, paulo moura sabe da minha história, antônio pedro sabe, amir haddad sabe, anselmo vasconcelos, até paulo josé me viu lá no teatro da uerj dormindo na concha acústica. toda a universidade me conhece, eu passei cinco anos dentro de lá, pulando aquele muro escondido muitas das vezes. teve um ou dois anos de guarida dentro da universidade.

quando entrei, em 1993, o anfiteatro era uma ruína. nas duas semanas que fui primeiro na companhia, acho que tem filme e imagem disso, eu ia e participava do evento, depois eu saía. duas semanas depois, eu saía com eles, esperava, voltava e dormia lá. até que um dia achei que aquilo ia dar problema e eu ia acabar prejudicando a companhia. cheguei para o antônio pedro e falei "sou morador de rua, não tenho onde morar", ele me deu uma carteirinha para eu poder freqüentar como se fosse segurança de lá. aí comecei a freqüentar e a dormir como se fosse segurança que tomava conta.

às vezes pintavam shows, barzinhos para tocar de noite, eu dava canja. não tinha instrumento, mas cantava bem. alexandre, do grupo revelação, pode contar minha história, nós começamos juntos, eu fui percussionista dele no bar. ele me viu andando com a foto do meu irmão no jornal, revoltado, querendo me vingar, ir lá matar os caras. se não fosse essa turma, eu tinha sido um problema social. então, beleza, se os caras pensarem que é marketing... todo jornalista vem me perguntar a respeito disso e eu acabo dizendo, e aí parece que o tempo todo sou eu.

pas - vários outros artistas, como orestes barbosa, belchior ou odair josé, tiveram experiências parecidas, mas não se costuma contar essas histórias do modo direto como você faz. você entende que algumas pessoas não acreditem, num primeiro momento, pelo fato de sua história parecer excepcional mesmo?

sj - a minha mãe, cara, era triste. ela também morou, nesse período, morou oito meses no banheiro da central do brasil. bo banheiro da central, ela varria lá. quando meu irmão vitório foi assassinado, em 1990, rogério tinha 13 anos, eu tinha 20. um ano depois, meu irmão menor, com 14 anos, estava trabalhando no globinho, entregando jornal. com o salariozinho dele, juntava dinheiro para qualquer eventualidade. minha tia fez uma conta de poupança, com salariozinho de globinho. minha tia sempre foi organizada, a gente tinha obrigação de ajudar em casa. eu trabalho desde os 10 anos, meus irmãos todos trabalham desde muito cedo, têm profissão desde 12, 13 anos. esse que morreu com 16 era um relojoeiro foda, um puta relojoeiro, um puta ourives.

quando meu pai soube que minha mãe estava dormindo no banheiro... ela estava com problema na coluna, passou mal um dia, ligaram, meu pai soube. e soube que eu estava por dentro e não tinha falado nada, sendo o filho mais velho. nossa, eu sofri, cara. sofri com a chamada. foram ele e meu irmão no teatro, eu estava lá na universidade todo maltrapilho, sujo, fazendo montagem de luz. meu pai falou [imita, bravo] "sua mãe está morando na rua, rapá, está abandonada e você aí fazendo nada, teu irmão é que vai dar dinheiro". aí meu irmão pegou dinheiro da conta dele e alugou um barraco lá em pedra de guaratiba para ela ficar. não tinha nada, nem móvel.

eu não tinha casa, não tinha nem documento. eu era indigente, se tivesse morrido em alguma situação não iam achar meu corpo. me lembro do dia em que tirei meu documento, em copacabana, fui tirar de novo a carteira de identidade. tive que explicar por que eu fiquei sem. eu nunca tinha votado. com 20 anos eu não tinha votado, dos 20 aos 27 nunca votei. ficava com medo de ficar embargado ou prejudicado, não arrumar emprego, sei lá, não ter documentos porque não tinha votado. ignorância mesmo da minha parte. mas aí eu tinha que explicar: fui morador de rua. perdi meus dentes, descalcificação... para estar nesse contexto, passei muito perrengue, muito.

pas - a conversa com seu pai foi um motivador para você mudar as coisas?

sj - meu pai é uma pessoa maravilhosa, uma figura apaixonante. ele sempre teve um nível intelectual muito grande. porque meu pai é do morro de são carlos, mas nasceu no asfalto. minha mãe é que era chucra, não sabia ler nem escrever. foi a gente que ensinou ela.

fico imaginando muito, sabe? as pessoas não sabem como se dá um problema desses. eu sempre tive casa, era pobre, tinha um cômodo só, mas tive. perdi por uma fatalidade. não fui morar na rua para estilo, ninguém faz isso. nego não sabe o que é ter que fazer cocô e xixi na rua. nego não sabe o que é dormir num papelão, vir dois ou três garotos cheios de cola puxar seu cobertor no meio da noite. você ganhou o cobertor, às vezes passam umas tias, uns caras com sopa, rango, quentinha. dão cobertor, camisa. e eu sempre andei destacado, porque sempre tinha um violão, uns livros e tal. eu era o mendigo do violão. nego me enxergava não como um problema, um mendigo, mas como o maluco do violão.

então nem eu mesmo podia imaginar que isso ia acontecer comigo. eu não poderia nunca escolher a profissão que escolhi. é mesmo difícil de imaginar. estou dando um relato aqui de coisas que aconteceram mesmo, que eu nunca falei, nem o porquê. quando saí até fui morar numa vaga, fiquei um tempo lá na vaga, mas como não conseguia mais pagar, a coroa, dona maria, era maior sangue quente... eu queria até encontrar essa senhora. ela tinha uma vaga para rapazes. e tinha muita gente com muitos tipos de problema. tinha um cara com problema de sangue sério, ele gritava de madrugada, "vamos matar!, vamos matar!". tinha muito cachorro, os cachorros latiam, acordavam todo mundo. morei num bagulho assim, logo depois da morte do meu irmão. aí não deu mais.

uma noite fui para um barzinho de violão e voz, ia atrás de gabriel moura em tudo quanto era lugar que ele ia. acabava, o barzinho fechava, 2h ou 3h da manhã, gabriel, pum, pegava a namorada e ia embora. e eu ficava meio naquela, ia para outro lugar. quando acabavam todos os barzinhos, eu ia para a barraca de angu do gerson. ele era a noite toda. sempre o pessoal da cachaça passava lá e comia um hambúrguer para poder dirigir e ir para casa. e ia a madrugada toda até de manhã, ficam antero, paulinho rangel, Gerson e eu. antero era um desenhista fantástico, que por coisas da vida fez um curso para polícia e virou retrato falado. virou um polícia que não tinha nada a ver com polícia, que fazia livro infantil, gostava de cavaquinho. paulinho tocava em banda de baile. tinha dia que estava todo de preto, tinha dia que estava todo de branco, que era o uniforme da orquestra de gafieira. toda noite, juro por deus, de segunda a sexta.

o que me levantou muito, também, foi uma turma de pensadores que tinha num barzinho que tinha um chope muito bom. a turminha se encontrava regularmente, quase todo dia, era um físico, um professor de história, um advogado e mais outros dois ou três caras. e eu ficava ali, porque era o cara do violão. mas sempre tinha um papo de filosofia no meio. papo de pensador, filosofia, história. e eu ia ali escutando aquilo, fazendo as minhas analogias com o mundo da favela: "mas isso é meio parecido na favela também!". os caras ficavam olhando assim...

pas - foi um dos seus diferenciais perceber que era possível fazer analogias em tudo?

sj - em tudo. das analogias que mais tenho trabalhado é da vida com relação ao futebol. vejo muita coisa semelhante entre a vida e o futebol. na vida só sei andar para a frente, e a bola também só está na frente, nunca atrás. você pode ter o talento que for, mas você depende do talento do outro para aparecer. ronaldinho gaúcho não joga sozinho contra 11, ele precisa de ronaldo, roberto carlos, cafu. até do dida que está lá atrás e nem é da área ou do departamento dele ele precisa.

um belo dia passou a noite, os caras tocando joão bosco e coisas que eu gostava, mas não tocavam na comunidade por não ter acesso. eu gostava. joão bosco até tocava, porque tocava na novela, "nos dissemos que o começo é quase sempre inesquecível...", "o casarão", "o astro". joão bosco e aldir blanc eram mais populares. um dia, bebão, eu caí, estava com vergonha de ir para a casa da minha tia de manhã. umas duas ou três ou quatro vezes, que eu lembro, cheguei à casa dela de manhã com papo torto. ela: "não comeu, come, vai tomar um banho". depois de dias comecei a ir lá só levar roupa para lavar. arrumava uma água sanitária, um sabão de coco, não ia gastar os da minha tia. gastava só a água. ia lá lavar minha roupa. já estava completamente aclimatado na rua.

aí perdi meu documento. falei "foda-se desse jeito mesmo". mas ficava preocupado com aquilo, "essa porra não vai dar certo, uma hora um polícia vai descer aí e tirar uma onda comigo". dito e feito, os caras me deram uma dura, bagunçaram. "documento." "não tenho, estou morando aqui." "tu é de onde?" "da baixada fluminense." "é longe, hein?" era longe, eu estava na vila isabel. "e esse violão aí, qual é?" o cara pegava o violão, balançava para ver se caía alguma coisa. "toca?" "toco." "toca alguma coisa aí." tocava um negócio lá do djavan, essas coisas assim. na época eu cantava música dos outros, não tinha a minha.

pas - aprendeu tudo sozinho?

sj - é, tudo em revistinha cifrada. ensinava a posição dos dedos, eu ia. os amigos iam me dando a batida da mão direita, a batida do samba... eu ia praticando, tinha todo o tempo do mundo. a única coisa que era foda era para comer. eu tinha muito acanhamento de pedir trocado, era homem velho, não me imaginava naquela posição.

pas - você não pedia? há gente que vive na rua e não pede?

sj - não pedem, não pedem. tem gente que é trabalhador de rua, só. o cara mora em japeri, como o dinheiro da passagem todo dia é muito, ele é trabalhador de rua e vive do reciclado. então ele dorme na rua.

pas - o brasil desconhece completamente essas distinções, não?

sj - são pessoas que não têm condição. mas tem gente que trabalha na rua e da rua mesmo, aqueles caras que têm carrinhos, papelão, três ou quatro cachorros. são pessoas que têm atividade, família, casa, endereço, tudo certo. só vivem do reciclado. o dinheiro do reciclado é um ganho muito pequeno, calcula-se que essa gente faz por mês r$ 120. é a féria do mês, é o que dá para fazer durante um mês catando papelão, trabalhando. são trabalhadores. aqueles cachorros são para alerta, contra crueldade, gente que quer queimar o outro, tacar fogo. você tem que ter dois ou três cachorros, se de repente estão chegando os cachorros uivam e o cara acorda e já fica legal.

as pessoas precisam mesmo dormir, trabalham o dia inteiro empurrando aquele carrinho e botando lixo para dentro. fazem um serviço de reciclagem que a conlurb deveria estar fazendo e não faz. por isso digo que não é pecado pegar uma latinha de cerveja e jogar fora do carro. faça isso sempre que puder, porque você está ajudando gente, é verdade. papel, não, mas latinha de cerveja e coca-cola pode, porque tem gente que vai precisar daquela parada ali.

eu convivi com essa gente. procurava estar sempre perto dos trabalhadores de rua, ou só. porque ali entre eles mesmos também tem muito barraco, muita fofoca, muita confusão, problema, problema, só merda. mas tem um quadro muito também de doença mental, muito sério. nesse período em que vivi, naquele cenário, o rio é mais infestado disso que são paulo.

pas - o que você pensa da atitude do [hoje ex] prefeito de josé serra, de construir rampas "antimendigo" em são paulo?

sj - como é que é? [explicações]. é, isso está acontecendo no japão também. eu passei lá e falei: "olha a favela ali", debaixo da ponte, vários barracos. vi isso lá. eles estavam tirando também. cara, não sei o que vai acontecer, não posso dizer o que essa gente tem em mente. tem um êxodo, né?, dessas pessoas que vivem nessas condições, para fora. é uma cidade muito industrial, não tem muito o que fazer... mas eles correm o risco de, por exemplo, essa gente invadir a rua oscar freire [risos]. Aagente pode começar a dormir nas barraquinhas da oscar [pronucia "óscar"] freire, aí não vai ficar nada bom. aí quero ver ele fazer rampinha lá.

pas - essa não é uma ideologia de resolver, mas de esconder, para quem passa pela avenida paulista não ver esse outro lado da cidade.

sj - mas é isso que estou falando, eles vão acabar caindo na consolação, e vão cair naquelas lojas bonitas da óscar freire. e onde está o dinheiro, esses moradores vão parar lá.

pas - não seriam expulsos rapidamente?

sj - é capaz que a própria gente rica não deixe isso acontecer. tem muita gente boa ainda por aí, não é porque é rica... é capaz de a própria gente rica ver aquela mão estendida, pegar uma bolsa e dar, fazer um bonito. e capaz de essa própria gente rica que muitas vezes enche o saco do prefeito para tirar essa gente daí, ela mesma, utilizar essa gente para falar "pô, eu sou legal". há sempre uma mão dupla, dois caminhos numa mesma estrada, né?

com relação a essas pessoas que estão abandonadas, a coisa tende a ficar pior. porque a delinqüência também vai junto para esses bairros de óscar freire. onde está o abandono, estão a delinqüência e a promiscuidade também. vai junto, e começa a ficar brabo. enquanto estiver dormindo e pedindo dinheiro, tudo bem. o foda é quando começar a roubar, a cheirar cola, a cagar na porta da loja. "ah, filho da puta, me sacaneou? tá bom, ele vai fechar essa loja e vamos lá cagar lá". aí fica aquele cheiro, não adianta lavar, botar criolina, aquele cheiro fica ali na tua porta. o cliente chega na loja e não entra. o povo da rua também tem suas armas, o povo da rua também tem suas armas. é uma tristeza, mas... é a situação do brasil.

pas - dentro da loja rica pode até haver problemas parecidos, mas mais camuflados...

sj - é, os ricos às vezes precisam se espelhar em alguma coisa mais forte, para poder seguir o seu caminho. o cara ganhou grana, status, nome e não sabe mais para onde ir. não tem forças, foge, não tem querer, comando, articulação. às vezes ele dá de cara com uma imagem forte assim e começa tudo a fazer um outro sentido. é uma pena essa parada aí. faz uma rampinha, mas faz um conjunto habitacional para a galera, né? cidade de deus foi fundada assim. eram pessoas que moravam no centro. antigamente era cruel, tacavam fogo nos barracos de madrugada. lembra das notícias "favela pegou fogo", "foi bujão de gás que queimou"? o caralho. Ttnha uma mulher, sandra cavalcanti, lá no rio de janeiro, que foi acusada de matar muitos mendigos. a carreira política dela não foi para a frente porque o povão sabia disso. não sei se ela matava, mas o boato que tinha era esse, então ela não conseguiu voto de jeito nenhum. não sei se é verdade, mas eu me lembro em belford roxo, minha mãe falando isso para mim, "não voto nessa mulher porque ela mata mendigo". minha mãe falava isso, aí foi parar na rua.

e a candelária, deu no quê? no ônibus 174. eu conheci aquele moleque, conheci ele mais moleque. era uma turma peralta, que botava para quebrar. na rua tem muita droga, muita droga, muita droga. você não dá r$ 2, o outro lá dá, quando vai ver o cara tem r$ 50, sobe, compra o , mistura, racha, rateia, usa.

pode reparar que ninguém bebe. já viu moleque de rua tomando cerveja? nunca ninguém viu, porque é uma convenção social você poder tomar uma cerveja. quem está ali na rua não faz parte da sociedade, não é apresentado a ninguém, então não tem esses hábitos de tomar uma cervejinha. tem a cachaça, que é barata, um entorpecente. mas tudo é mais baseado em dependência química mesmo. o cara toma o negócio porque é dependente químico, senão treme, tem convulsões, o sistema nervoso é uma falência. se está sem a droga o bulbo acusa, fica tremendo, toma uma talagada, dá uma melhorada psicológica, o olho cai, a cara cai, está na entorpecência. naquilo você segura a fome, esquece que está sujo, esquece um montão de coisa com essa entorpecência. é um processo. o processo de limpeza é muito sério, não basta dar um tapinha e tirar as pessoas. elas vão voltar.

o mais chato de tudo, o que mais mexe comigo, é o nascimento de pessoas na rua, o quanto têm nascido pessoas na rua. no rio nasce muita gente na rua. às vezes vem da favela na barriga e já nasce ali na rua. teve barriga lá, ninguém vai segurar essa barriga, o cara desce e vive pedinte embaixo, a barriga estoura. é muito triste uma criança não nascer numa maternidade, não nascer com um médico, com uma história. a pessoa mesmo ali arruma ali, arruma uma camisinha para o neném, se tem parente perto vai lá, corre, coloca um sapatinho, uma coisa que sobrou, um leitinho do peito, não vai registrar, com um ou dois anos não tem registro. batizado? o cara não tem registro, vai ser batizado? não fez teste do pezinho, não sabe que sangue tem, isso é de cortar mesmo. é de cortar, porque tenho minhas filhas, depois de tudo que eu vi. é uma felicidade ver essas crianças, minhas filhas felizes, a mulher grávida, vai ter outra criança, tudo certo o partinho. é um bagulho que mexe comigo, sabe? [os olhos se avermelham de lágrimas.] porque meu pai e minha mãe não me abortaram, entendeu, pedro? eles me tiveram, tiveram meus irmãos, passaram o perrengue que foi. então eu vejo essa coisa, essas mulheres tendo filho na rua, porra. não sei o que vai ser dessas crianças, não sei. [abaixa a voz.] vi muita criança pequena morrendo, de não agüentar duas ou três semanas. porque a mãe cheirou cola, nasceu debilitado, não agüentou duas semanas. é porrada, é porrada.

ao mesmo tempo é chato, porque fica essa gente aí achando que é marketing. não me revolto porque são uns nadas, uma meia dúzia de dois ou três. eles ainda vão me ver no comando de alguma merda neste país. vou comandar alguma coisa, este país é meu também. todo mundo manda, por que eu não posso mandar? o país não é seu? você também tem direito. é isso, eu penso assim. americano chega aqui e diz que o mogno é dele, alemão chega e diz que a rapadura é dele. soube dessa? uma empresa alemã patenteou o nome rapadura. e os produtores do nordeste, que exportam rapadura, ficaram sabendo. o governo e o itamaraty entraram nessa, falaram "pode parar com isso que isso é nosso, é da nossa cultura, você não tem o direito". acho que agora vai resolver. o alemão chega aqui e vai patentear nossa rapadura?

pas - é possível contar em hollywood ou na bbc essas histórias todas que você contou agora?

sj - dá para contar, dá para falar para o bill murray o que é, sim. falei para ele o que é a favela, de onde eu vim. todo mundo sabe. anjelica houston bateu maior palma para mim não por causa de "cidade de deus", mas pela resistência. eu falo assim: "eu faço coisas para uma nação, eu quero libertar o meu povo". eles dizem: "não escuto ninguém falar assim há tanto tempo, como assim libertar o seu povo?". falo: "tem um povo no brasil que é o meu povo e que eu vou libertar. eu sou um líder. estou aqui por isso, porque isso aqui é importante para mim. se der certo isso aqui, se eu for bem-sucedido aqui, se eu for reconhecido como trabalhador profissional aqui, muita coisa pode mudar no brasil, para o brasil e para gente da minha laia, da mesma enfermaria que eu". e eles: "nós vamos fazer de tudo para ajudar". outro dia, anjelica mandou um e-mail, "estamos preocupados, fazendo abaixo-assinado, porque estão dizendo que vão usar não sei quantos por cento da amazônia para desmatar e fazer plantio. dizem que o governo brasileiro está aprovando essa lei, vocês não devem deixar isso acontecer". então há gente fora do brasil preocupada com a gente aqui, ligada no movimento. sabe que atinge eles lá fora.

é interessante fazer parte de uma coisa dessas, cesaria evora me ligar aqui e dizer "vamos fazer um show". vou entrar num ônibus com ela e vamos sair juntos. e eu quero saber como é cabo verde, vou explicar para ela como é o brasil, que ela conhece e sabe. a língua aproxima. tudo isso dá para ser contado, tem que ser contado. essa gente pode ajudar. essa gente é muito forte, muito grande, pode usar sua imagem para dizer "parem com isso, prestem atenção, estamos de olho também".

eu tento fazer a cabeça dessa gente, o próprio wes anderson. falo para ele: "vamos fazer cinema no brasil, mano. lá todo mundo fala inglês, as companhias são boas, os lugares são lindos. dá para fazer qualquer coisa, até deserto das arábias você faz lá. pô, vamos fazer filme lá, cara, com us$ 70 milhões você monta uma companhia lá para você e faz 15 filmes". wes ouve e ri para caramba. e eu, papudo, "vamos, cara". é capaz, ele é maluco.

pas - dá para ver pelo "a vida marinha com steve zissou".

sj - e não é maluco só por isso, não. ele filma em seis meses, oito. ninguém mais faz isso. hoje a tecnologia permite que você entre num estúdio fodão e faça um filme em dois meses. mas o filme do wes também levou esse tempo porque era trabalho em alto mar, com dois navios [dá entonação de espanto às palavras]. é coisa de maluco. pedro, eram dois navios, um navio de jeff goldblum e um navio do bill murray. o do jeff não foi muito usado, eram poucas cenas, mas o do bill era usado em tudo. você está no mar, você não pode colocar aquilo dentro de uma lagoa. aquilo não entra numa lagoa, sabe como é? é no mar mesmo. tinha que ter um staff enorme de marinheiros para limpar o quadro.

pas - marinheiros verdadeiros?

sj - marinheiros mesmo, marinheiros. enquanto o navio está em quadro, tem que ter uma porrada de botes, jets, lanchas... tem um barco passando pela esquerda, um monte de gaivota gritando, é muito engraçado. é cheio de peixe, as gaiovotas ficam todas atrás do barco. o barco vai para lá, a gaivota vai. Oobarco vem para cá, as gaivotas atrás. e às vezes passa um barco, um jet ski, um windsurf qualquer, na frente do quadro, o cara tem que ir de lancha lá na casa do cacete falar para o capitão: "fora, meu, você está na frente do filme". é um trabalho, um trabalho, leva dias. e o mar mexe, né? não é igual carro, que você pára aí e pronto. o mar mexe. tem que estar na posição. às vezes o barco está virado para lá, vai virando para cá. aí o cara tem que manobrar tudo, demora, todo mundo sentado esperando manobrar.

pas - era nessas horas que o brasileiro ficava fazendo versões de david bowie ao violão?

sj - é, nessas horas [ri], que os caras aproveitavam e me filmavam. era bom pra caramba. foi ótimo fazer isso. agora vou ter uma experiência maravilhosa, um filme na venezuela. sou um dos protagonistas, chama "o coiote" [as informações de seu jorge ficam mais precisas após a seguinte nota, publicada na coluna de 17 de junho de mônica bergamo: "O cantor e ator Seu Jorge emplaca mais uma no exterior: ele interpreta o traficante Coyote no filme 'Elipsis', do venezuelano Eduardo Arias-Nath. O longa foi filmado em março, em Caracas]. é uma história de narcotráfico, meu personagem é um gângster que cobra dinheiro para o narcotráfico. ele é o cara da cobrança. tem uma limusine, uns capangas, e é sádico pra caramba. você olha, que figura, que pessoa maravilhosa. e o cara tem o pésismo hábito de queimar as pessoas com aquele isqueiro de carro. então todo mundo tem uma marca do coiote na testa.

pas - o coiote é você, então?

sj - é, o meu personagem, e é o nome do filme. é muito pequeno o que eu faço, tem um texto bacana, eu fico lá uma semana, filmo em quatro ou cinco dias. todas as minhas cenas são pequenas, tem muitos atores no filme. mas o personagem é fundamental, porque no final do filme se revela que o governador tem a marca do coiote [ri]. todo mundo tem a marca do coiote. e tem esse outro filme que estou amarradão em fazer, que é "os fugitivos". é um filme do diretor do "x-men". vai rolar em dublin, na irlanda.

pas - esse é hollywood mesmo? "o coiote" não é?

sj - é, "o coiote" também é americano, mas é o primeiro filme venezuelano que saiu com dinheiro americano. os caras estão apostando no eduardo arias, que é o diretor. ele é novo, é seu primeiro filme. só lá mesmo é que vou ver como é que é, se é um set hollywoodiano mesmo.
hollywood é um padrão, em todos os sentidos. você não faz um filme sem estar completamente coberto e alinhado, sem estar com os documentos todos assinados, sem o seguro cobrindo sua vida. ninguém filma se você não tem um seguro de vida legal. não pode acontecer nada com você.

para eu filmar com wes, tinha que fazer o curso de mergulhador. quando me deram um questionário perguntando sobre minha saúde, eu tinha que responder dizendo que não tinha nada. se tem um problema no olho do cara por causa de sol demais, eles param tudo, remanejam, esse cara pode nos foder amanhã e dizer que teve um problema no seu filme. tudo é muito pensado. é uma indústria de cem anos, de tradição, de dificuldades superadas. é capital de investimento, é topo da cadeia alimentar. e tem os deuses, que são os atores e grandes diretores, tratados como deuses mesmo. o alcance que os caras tem é instantâneo.

pas - algo parecido com o projac?

sj - é um projacão, né? é instantâneo, é no mundo inteiro. fiz um show lá, fiquei bem na foto porque tinha cambista no show, nego vendendo ingresso a us$ 100 a cadeira, achei maneiro. estavam lá bill murray, david byrne... bill falou para mim assim: "é, david byrne veio, mas eu sou e amigo primeiro". falei "calma, bill". acabou o show, fomos jantar, bill falou assim para mim: "jorge, coisa mais bonita, estou muito feliz de ver você bem, com mariana. qualquer parada me pede, coisa pequena, coisa grande. pede, eu estou aqui, posso ajudar, quero dar uma força". quando saí de lá, todos – o diretor de fotografia, anjelica, todos eles – falaram "pede aí, qualquer parada a gente ajuda". tem essa coisa de dividir.

a gente não aluga, não quer essa coisa. já basta que toda vez que chegamos lá o cara quer levar a gente no nobu porque sabem que mariana adora. mas o nobu é caro pra caralho. japonês caríssimo, muito caro aquele rango lá. a mari gosta, eu não ligo, eu gosto de arroz e feijão, qualquer churrascaria eu entro. cheiro de pelanca, eu estou. ela gosta dessas coisas chiques, finas. aí ele que segura aquela onda no cartão. é o maior barato. robert de niro é o dono do nobu, eles são todos parceiros. niels, que é o japonês do filme, é gerente do nobu. olha que história engraçada. wes chegou lá para comer, olhou para a cara dele, achou que ele era bom, falou "vem aí, vamos fazer meu filme". ele pegou uma licença de seis meses com de niro para fazer o filme. mas voltou, já. e eu como lá pra caralho [ri]. não é de graça, mas um montão de prato vem de graça. o grosso a gente paga. caríssimo, só vai gente chique, grã-fina.

pas - você se sente bem lá dentro?

sj - me sinto, acabei com esses complexos. eu tinha muito, né? na favela o complexo de inferioridade é muito forte, porque você cresce aprendendo que você é feio, preto, não tem educação. depois, para se livrar disso... muita coisa tem que acontecer de bom na vida para você falar "ah, não é nada disso que eles falavam". foram acontecendo essas coisas, meu primeiro tapete vermelho foi muito engraçado. eu não acreditei naquilo. foi um susto. foi no lançamento do "life aquatic" [título original de "a vida marinha"] em nova york. o filme tem uma constelação muito grande, vamos combinar... só a cate blanchet já dá o peso do chique. no dia em que a conheci ela estava grávida, linda, parece uma boneca de porcelana, branca, branca, branca, branca, branca, parece uma lâmpada fluorescente. linda, gentil, inteligente, divertida, carinhosa, maravilhosa.

cheguei lá com mari, foi ricardo almeida que me vestiu, muito gentil. o cara parou a limusine na entrada oficial dos atores, ficam aquelas grades de prefeitura, mas é muita gente atrás das grades. é muita câmera, muito, muito, é muito. tudo bem que o país é grande, mas será que os jornalistas do país inteiro estão aqui agora? porque é muita gente, muita. e os atores vão passando [passeia pela sala, simulando sorrisos forçados], e vão dando entrevistas. para eles é natural. e eu, de cabelo grande, ninguém me conhece, fui passando. ninguém me perguntava nada, eu passei. horrível, cara, horrível. passei batido, não falei nada. fiquei sem graça. parece que é um desfile de moda, passa um, passa outro, passa outro, passa outro...

aí mais lá na frente todo mundo se encontra, mas é um corredor enorme. eu era o último, cheguei meio além do horário, e fui passando, as pessoas olhando para a minha cara, não sabendo quem era aquela pessoa. entro eu, minha mulher, arrumadinho, ninguém pergunta nada, tira foto, horrível. quando nego do filme me viu, aí foi uma festa, aí saiu uma foto enorme com todo mundo abraçado. aquele montão de câmera disparando. eu tentando rir, sem graça, estou rindo de quê?, qual motivo para rir? Mas foi legal esse convívio aí.

uma coisa boa que lembro também do convívio com eles foi no dia em que bill ganhou o globo de ouro por "lost in translation" [filme de sofia coppola, chamado "encontros e desencontros" no brasil]. foi justamente no dia em que "cidade de deus" foi indicado a quatro oscars. cheguei 5h30 da manhã, a gente chegava e ia direto para o figurino, do figurino para a maquiagem, da maquiagem esperava, cada um no seu trailer, a ordem para filmar. era ali também que eu ficava fazendo música, 14 músicas, era só eu sozinho, não falava inglês, ficava todo o tempo ali tirando, escrevendo as letras da minha cabeça, as minhas loucuras. ah, é versão? então é a minha versão, versão seu jorge, demorou.

nesse dia, chegando, vi o trailer do bill todo decorado com balões dourados, parabéns e o caramba. ele ficou todo bobo quando chegou, fizemos uma puta farra para ele. fomos para o set, filmamos, era a cena em que explode o hotel. daqui a pouco, vamos almoçar, volto para meu trailer, estava lá ele todo cheio de balão também. neguinho ficou fazendo festa, "ê, seu filme, quatro oscars!". ele ganhou o globo de ouro e também foi indicado ao oscar.

pas - cada ator tem um trailer só para ele, você inclusive?

sj - cada um tem o seu. eu tinha o meu. você não está entendendo, é coisa legal mesmo [ri], com cama, tevê, vídeo, tudo. geladeira, fogão, uma pessoa para fazer rango, uma pessoa para fazer massagem, uma menina linda, colossal, fazendo massagem. tinha umas regalias. mas tinha muito trabalho também, 12 a 16 horas por dia.
era o dia em que bill foi para a premiação, a sofia coppola esteve lá. foi engraçada essa cena, mari cometeu a maior gafe. estávamos todos na praia na itália, estávamos de folga, aparece uma menina nariguda, baixinha, ficava falando "que linda sua filha", não sei o quê. mariana, sem companhia, começou a conversar com aquela magrinha, praia deserta, lindo, o sol caía dentro d’água, coisa linda. a magrinha falou tchau, a mariana: "chegou a mulher aí, metida para caramba, essa gente mente, né? chegou dizendo que fez filme com não sei quem, que fez 'o poderoso chefão'". qual é nome dela? coppola, coppola... caralho, ela é a sofia coppola! foi aí que ela sacou quem era, eu nem sabia quem era sofia coppola. depois ela ficou amiga também.

pas - de que se trata "os fugitivos"?

sj - somos cinco fugitivos que fazem um túnel e escapam da penitenciária, indo parar dentro de um metrô em funcionamento. aí tem toda uma confusão, é um filme de ação, de suspense.

pas - incomoda você fazer sempre esses papéis de gângster, fugitivo? eles são ainda estereótipos, não?

sj - não. eu fiz um negro amante de uma mulher lindíssima em "casa de areia" [filme brasileiro de andrucha waddington]. foi aplaudidíssimo lá em berlim, de pé, né?

pas - mas hollywood evidentemente ainda estereotipa qualquer pessoa do terceiro mundo, não?

sj - sim, mas não, acho que não... não são todos os atores lá que poderiam fazer a mesma coisa que vou fazer. ninguém pensa assim mais, "vou botar aquela coisa ali". o que ainda tem esse pensamento aqui talvez seja a rede globo, no caso das novelas. no cinema não tem espaço para isso mais. é tão grande, é tanta grana. não pode errar, não tem espaço para erro. quando está definitivo que é você que vai fazer é porque interessa o seu jeito, a linguagem, a cara e tal. o cara pode chamar um boy qualquer e vai arrebentar, não vai ter outro. pode colocar denzel washington, mas vai repetir, né? como o filme é em dublin e outra parte na inglaterra, naturalmente eles têm que usar alguém desses países. é uma convenção mundial, se você vem fazer filme de hollywood no brasil tem que ter ator brasileiro, um ou dois pelo menos.

pas - esses filmes são da disney? você fica vinculado a um estúdio?

sj - não, cada caso é um caso.

pas - você é free-lance.

sj - eu sou cafuné. o cara liga aqui na cafuné e contrata, "alô, cafuné, aqui é a disney".

pas - você disse que gosta de analogias. que analogias você faria entre viver na rua e viver em hollywood? haveria algo parecido entre esses dois extremos que você conhece?

sj - [longo silêncio.] tenho a sensação de que no cinema, em hollywood, você espera que vá ser assistido, ou na sala de cinema, ou por quem está fazendo o filme junto com você. na rua você não é assistido por ninguém. não tem assistência, não existe. esse é um ponto diferente das experiências. você vai até um extremo onde não tem assistência de nada, e você vai até um outro em que você é muito assistido. ao mesmo tempo, na rua, está todo mundo assistindo aquilo que se passa. e no cinema as pessoas não têm olhos para o que é feito por dentro, para o real trabalho que é feito, como se dá o trabalho de um ator, de um filme. fica muito raso, não se sabe o trabalho que é. digo isso porque tive uma experiência com andrucha [ri], foi uma loucura o que ele fez. nos levou para os lençóis maranhenses, foi uma experiência gigante. podia ter dado errado, porque era muito difícil de fazer.

pas - seria automático pensar que é melhor e mais fácil estar em hollywood do que na rua. é verdade?

sj - não. Não. olha, é muito melhor, com certeza, estar em hollywood. mas muito fácil não é, não. principalmente se você veio da rua, né? aí é que não é fácil mesmo. caramba. como é que você vai chegar ali? é um negócio que você precisa ter muita segurança para estar. por exemplo, estou saindo para fazer um filme grande agora. o cartel desses boxers é enorme, eu sou um boxer começando. não bati em ninguém ainda, só apanhei [ri], sabe como é? eles, não, eles têm um cinturão mundial. e é complicado. vou lá, estou seguro que vou para fazer, que vou resolver, mas não sei se resolvo. eu não sei. pode chegar lá e complicar, o diretor dizer que não é assim.

pas - você faz ou já fez psicoterapia? não é preciso apoio para segurar a cabeça, seja na vida anterior ou nesta?

sj - não, não faço, nunca fiz. não pensei nisso, não sei... eu converso com as pessoas mesmo, né? converso, divido minhas experiências com as outras pessoas, tem muita gente que vai dizer "calma, seu jorge". não tenho respostas para tudo, não, mas sempre procurei me espelhar nos exemplos das pessoas, não precisar fazer se tenho exemplos na minha frente que me mostram resultado. ah, tá legal, o fogo está ali, o garoto botou a mão e queimou. vou botar a mão, se sei que vai queimar também? não vou.

outra coisa que também segura bem a cabeça é o fato de entender que a felicidade é um instrumento rico, muito simples, quando você vê a vida com simplicidade. a felicidade se torna uma coisa simples, mais acessível. é lógico que é muito melhor ter uma casa de praia com sauna e tudo, mas se eu não tenho a casa de praia, se eu puder alugar uma e levar minhas crianças de vez em quando para passar 15 dias, eu vou, para mim isso é a felicidade também. tornar as coisas mais simples também é uma maneira de ser feliz. a maneira que encontrei de ser feliz é dizer que vou estar completo quando eu puder realizar meus pequenos grandes sonhos, que são poder dar sustento à minha família, continuar trabalhando, ter um trabalho com dignidade, seja ele qual for, na música ou na faxina. e fazer disco, que é o sonho mesmo, tocar, cantar para umas pessoas, ter umas músicas. Já consegui.

pas - quando sai o próximo disco?

sj - estou doido para entrar em estúdio, e dei sorte. eu ia estar filmando em abril, mas o filme passou mais para frente. e aí minha filha vai nascer em abril, eu vou estar esperando meu neném num momento em que também vou aproveitar para gravar disco. vou tentar segurar o escritório, se eu não freio eles, não pára, não. eles ficam botando agenda, botando agenda, é infernal. tudo tem que ser programado com antecedência, porque somos independentes e somos nós que geramos os compromissos com as pessoas. se nos comprometemos de eu estar lá, tudo bem, tenho que chegar no horário, que honrar isso. não há uma empresa que faça por mim e fique me cobrando para que eu esteja lá. eu mesmo me cobro isso, porque eu sou a empresa que faz isso.

então acho que esse disco vai acontecer já, e não sei o que vai ser. tenho muitas propostas, sei que se faço um disco de samba hoje vai dar uma ondinha legal. tem um povo que quer, e eu tenho sambas interessantes para fazer. sei que se faço um disco de rock vai criar uma curiosidade. tem uma banda preta [mostra um vinil do grupo cain & abel], em que eu me inspirei e quero fazer uma big band com uma formação assim, preta. não é segregador, mas precisa ser preto para ter essa identidade de rock preto brasileiro. a linguagem de som que quero fazer é essa [coloca o disco na vitrola]. queria usar umas roupas de super-herói, para matar gente de rir da cara da gente, para neguinho dizer "esses caras são loucos".

pas - você costuma evitar as grandes gravadoras, mas o disco com ana carolina saiu pela sony & bmg.

sj - é, eu não tinha companhia, porque eu não me aclimato num formato. vou criar uma expectativa para a companhia... já até tenho um público, mas eu não vou no faustão, "uuuh", não dá, não dá para ficar na hebe, [imita] "gracinha". eu não vou. gosto da véia, mas não, vou, "gracinha" complica. aí eu atrapalho, os caras botam dinheiro, investem e o disco não vende. para quê? para que vou ficar enchendo o saco dos caras? a maioria dessas companhias não é indústria brasileira, está lá fora. a rapaziada aqui é empregada. eles têm um limite, podem ir até um ponto e depois desse ponto não podem. aí começa o problema. abro minhas frentes sozinho, me viro, dou meu jeito. fui embora sozinho do brasil, eu e meu violãozinho, cinco anos atrás. fui no favela chic, cantei três músicas, falei que ia voltar porque ia dar certo. e deu. rolou. e ninguém daqui me botou lá, ninguém.

outro dia fui conversar na sony [no brasil], a diretoria toda nos estados unidos me conhece, mas aqui eles não têm articulação nos eua, o máximo que vão é à américa latina. aí o presidente geral de lá fala para me contratar, "contrata o negão que o negão é bom", aí vamos fazer um barulho aqui. aí falo de aqüé, o aqüé não bate. a verba que o cara liberou lá não dá aqui, eles sabem muito bem o valor do real e o valor do dólar.

pas - você está planejando um show com os racionais mc’s?

sj - vai acontecer. mano brown me disse uma coisa, e ele tem razão: eu não toco no rádio. "seu jorge não toca no rádio, você tem que tocar no rádio, sua música é boa.mMuita gente de comunidade pede suas músicas, então a gente está com uma idéia de botar você para tocar mais para essa gente, onde é nosso público, onde a gente domina". porra, do caralho, fiquei honrado. sou fã demais do trabalho deles, adoro a mensagem e amo mano brown, porque ele é um cara sério, sério, sério, sério, correto, anda certo, uma inspiração para mim. com ele eu vou ficar bem. não defendendo a mesma linha de pensamento, mas se eu conseguir me desprender um pouquinho mais de algumas coisas que ainda fazem parte de uma educação velha, do meio. a gente também é educado pelo meio, essas coisas acabam misturando e se confundindo um pouco.

ele está num caminho muito importante, é preocupado em dar satisfação do estudo dele. ele é um homem que estuda muito, sobre o povo negro, a história do Brasil, do governo, as causas, os efeitos, os problemas, a sociedade, os dias de hoje. está terminando um documentário em dvd, eu até participei, sobre os bailes black de periferia. mas ele começou a contar isso desde a época da escravidão, desde o fim até os bailes famosos. em 1888 teve a abolição, mas não foi fácil. teve muita resistência, como nós sabemos a porrada cantou. proibiram a comercialização, mas muita gente continuou comercializando. parece muito distante, era distante para mim, mas não é. foi ontem, ontem, porque de um dia para outro milhões de pretos estavam desempregados, e amanhã vão continuar. quando terminou a escravidão, nós não servíamos para receber nada, nem abaixo de uma tabela de marcado. negro não servia. ele tenta frisar esse processo, de como a gente tentou ser uma sociedade organizada depois desse processo imposto ao negro. éramos tratados como animais. não tinha carteira de trabalho, depois de muito tempo o negro começou a conseguir trabalho, sofreu todo um enquadramento. a foto 3 por 4 tinha que ser com terno e gravata, negão tinha que repartir o cabelo no meio para poder parecer branco ou sei lá o quê. era uma porrada na cultura africana.

então eu sinto a indignação do Brown hoje, com relação ao povo dele, ao nosso povo negro, que é de que quanto mais ele estuda mais a verdade vem. por que ser chamado de mulato? na concepção do cartório, era o cruzamento do homem com a mula, por isso somos chamados de mulatos. e a mula, você sabe, é o cruzamento de um cavalo ou égua com outra raça que fica estéril, não dá em nada. o português dizia "esse país aí não vai dar em nada, é um bando de mulatos, um bando de mulas". era assim que era a coisa. você se aprofundar na nossa diáspora, para saber quem somos nós e o que fazemos aqui, faz parte do processo. pensamos em fazer no consulado, que é a casa do netinho, mas o espetáculo que a gente montou não cabe lá.

pas - está montado já?

sj - em tese está montado. acontece assim: a gente tem um show do quinteto em branco e preto, a gente está vendo se traz beth carvalho e arlindo cruz para cantar algumas com eles, mais bebeto são joão, eu, depois os racionais com banda. uma noite de música negra brasileira.

pintou a possibilidade de fazer na via funchal. brown continua a política de não tocar para playboy, a mídia faz sacanagem, fode a vida das pessoas. mas pode ser uma temporada na via funchal.

por falar nisso, você conhece o samba da vela? é a coisa mais emocionante, a mídia precisa ressaltar. para começo de conversa, não tem bebida alcoólica. é uma mesa, uma vela no meio, as pessoas em volta cantando sambas inéditos, lindos, até a vela apagar. não se bebe. no final tem uma sopa e tal. é aqui em são paulo, quem diz que é o túmulo do samba está completamente enganado. é uma das coisas mais lindas.