segunda-feira, maio 30, 2005

"zé brasileiro" e a crise da música

enquanto assimilo a parada de ontem (que foi espetacular), vamos de "carta capital" 339, de 27 de abril de 2005. tenho certeza de que alguma história igual a essa está acontecendo bem pertinho de você, bem diante do seu nariz - e não há peru bêbado de carnaval (peru? bêbado? de caaaarnaaaavaaaal? escuta, alguém aí está ficando gagá, ou é impressão minha? alô, madamada!) que possa ofuscar...


"ZÉ BRASILEIRO" E A CRISE DA MÚSICA
O atacadista Benjamim Martins cresce em meio à recessão da indústria fonográfica e investe R$ 40 milhões em nova sede

Por Pedro Alexandre Sanches

Há um curioso elemento emergente na claudicante indústria musical brasileira. Empreendedor que acaba de erguer um prédio de R$ 40 milhões para sediar sua empresa atacadista de produtos musicais, Benjamim Guimarães Martins, 66 anos, tem desnorteado a idéia de ruína vigente na indústria fonográfica nacional dos anos 2000.

É tratado como "seu Martins" tanto por seus funcionários quanto por executivos que chegam de helicóptero ao Multimídia Trade Center, nova sede recém-inaugurada de sua A Universal (que nada tem a ver com a gravadora Universal, nem com a igreja homônima), rede de atacado que vem crescendo continuamente desde sua inauguração, em 1994.

A expansão se materializa agora às margens do rio Tietê, num edifício luxuoso com seis andares, salão de festas, palco para shows, capela, área vip, terraço com quadra de tênis e heliporto, docas de carga e descarga e até uma frondosa paineira centenária ao redor do qual o prédio foi construído.

Tanta pujança acaba por colocar sob suspeição o rosário de queixas em que se transformou a produção industrial de música no Brasil, sincronizada num discurso que martela que a pirataria a qualquer momento acabará com a música brasileira – a Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD) estima que a falsificação de CDs pulou de 3% do mercado total em 1997 para 52% em 2003.

Há poucos dias, o jovem presidente da Sony BMG, Alexandre Schiavo, jogou lenha na fogueira dos lamentos, afirmando que uma suposta crise de talentos artísticos estaria contribuindo para a penúria da indústria. Resultado da fusão recente das multinacionais Sony e BMG, a gravadora é, ela própria, sintoma a mais do encolhimento global da indústria musical.

Como explicar, diante disso tudo, a ascensão de seu Martins?

Baiano migrante que começou carreira em música há 44 anos, com uma modesta loja de discos instalada em São Bernardo ("sou de origem humilde e continuo humilde até hoje"), ele próprio mostra certa incredulidade diante do progresso: "Quando resolvi construir a nova sede, fui chamado de aventureiro, empreendedor maluco. Tem hora que acho que fiquei mesmo maluco".

Mas oferece os contra-argumentos: "Não estou na contramão, os compradores existem. O que falta é imaginação, atrevimento. Se há 170 milhões de brasileiros e nós vendemos 30 milhões de CDs, então menos de um em cada cinco brasileiros está comprando CD. É mercado em potencial".

Apoio à tese do "atrevimento" é o fato de que A Universal também sofre com a crise. De 2003 para 2004, registrou queda de 9% na venda de CDs – na indústria como um todo, o decréscimo foi de 27%. Hoje a empresa se relaciona comercialmente com 5.000 lojas espalhadas pelo Brasil, o que incomoda seu Martins, que já teve 7.200 clientes cadastrados e tem testemunhado o rápido desaparecimento de milhares de pequenas lojas. Mas, novamente, contrasta com multinacionais que vivem às turras com pequenos lojistas e não costumam ter mais que 1.500 clientes.

O atacadista em ascensão prefere combater a crise a adotar recuo equivalente ao das gravadoras. E ocupa, assim, um cenário de concentração inédita de poder de distribuição, o que ajuda a justificar o oásis A Universal, pela qual passam alegados 20% dos CDs oficiais em circulação no Brasil. Em termos de faturamento, a rede afirma concentrar 25% do mercado.

Embora lamente o gargalo na ponta dos lojistas, João Marcello Bôscoli, diretor da gravadora independente Trama, comemora a expansão d'A Universal noutros aspectos: "O poder está mudando de mãos, há uma descentralização. A grande distribuidora do Brasil hoje é independente, não pertence a nenhuma grande gravadora". Para Bôscoli, trata-se também de um exemplo de que a pirataria não é indestrutível: "Na composição do caos que herdamos das majors, é um componente a mais. A pirataria não é um demônio sem saída, as coisas funcionam quando tomamos as rédeas".

Seu Martins consegue a façanha de extrair elogios em companhias tão divergentes quanto a Trama e as multinacionais. Quando da inauguração do novo prédio, a revista de mercado Sucesso CD dedicou-lhe edição especial, coalhando suas 48 páginas com elogios derramados por dez entre dez grandes executivos. Por duas festas de inauguração para cerca de 1.200 pessoas, passaram políticos, presidentes de todas as gravadoras e um sem-número de artistas (classe em que seu Martins também coleciona fãs).

Estaria a já acuada indústria se tornando refém de um único distribuidor para levar seus produtos a territórios que os piratas já dominam com exuberância? "Não acho que estejamos reféns", responde o diretor de marketing da EMI, Edison Coelho. "Como há poucos pontos de venda no país, seu Martins conseguiu arregimentar pequenos clientes que não têm crédito com as majors. Num primeiro momento esse crescimento até pode contrastar, mas também acredito que é preciso investir durante a crise. Estou com ele."

Presidente da gravadora líder no mercado (e homônima da Universal atacadista), José Antonio Eboli relativiza a questão: "Historicamente sempre existiram dois ou três grandes atacadistas disputando o mercado. A concentração num só nunca é positiva para a indústria. Mas o lado positivo é que o sr. Martins sempre foi um grande aliado das gravadoras".

Martins brinca com o fato de ser visto como um "atravessador" do mercado, mas a própria indústria se encarrega de defendê-lo. "A Universal não inflaciona o mercado, pois, como seu volume de compras é grande, goza de um desconto maior e consegue repassar nossos produtos com só 5% a 8% a mais no preço", diz o diretor comercial da Warner, Edson Novais.

Elogios à parte, Martins demarca um tom crítico diante do que classifica como um "ambiente fortemente cartelizado" pelas gravadoras: "Eu que vim do nada nunca me contrapus a ninguém, porque sei que o cartel é poderoso. Mas não entro no cartel, nunca entraria".

A impressão de que os elogios da indústria são lapidados pela dependência é matizada por João Marcello Bôscoli, que aponta o respeito amealhado por Martins entre grandes e pequenos: "Numa indústria truculenta, que maltrata e humilha, ele é um homem emotivo, trata a todos com dignidade. Isso faz toda a diferença. Poderia achacar presidentes de gravadoras, mas essa não é sua postura. Torce pelo negócio, não contra os concorrentes. Fazia maquetes do prédio usando caixinhas de CD, construiu aquilo em volta de uma árvore para não derrubá-la. É um exemplo de mobilidade social, tem a trajetória de um Zé brasileiro".

Martins investe hoje na ampliação de serviços, apostando também na exportação de música brasileira, cujo festejado potencial raramente é aproveitado pela indústria. Mas mantém presentes origens e paixões ("tudo que sou eu devo à música"): distribui cargos centrais d'A Universal à mulher e às filhas, ergueu o "Botequim do Martins" para promover rodas particulares de samba e viola ("mas não de violeiro metido a americano") e promete abrir à visitação o Museu da Música Brasileira, tudo dentro de sua torre.

Dos primeiros tempos, guarda lembranças da convivência movida por certa antipatia com Lula e o PT. "Até alguns anos atrás eu era anti-PT. Acompanhei todas as greves de São Bernardo. Eu não gostava, ele fazia passeatas, eu tinha que fechar as portas da loja e não faturava".

Expandindo-se justamente dentro da era Lula, refaz a equação ("hoje acho ele moderado, sou seu admirador"), mas ainda lembra das origens comuns, que os faziam oscilar entre o embate e a convivência pacífica: "Freqüentávamos bailinhos juntos em São Bernardo, Lula comprava fita cassete do Luiz Gonzaga na minha loja. Passava na frente e perguntava: 'Vai na passeata hoje?'. Eu respondia: 'Mais tarde eu vou'".

quinta-feira, maio 26, 2005

o funk sai da sombra

aos quase 37 anos, posso finalmente dizer que eu marchei para jesus. vinha eu para calmamente para o trampo num dia ensolarado de feriado quando me vi forçado a, literalmente, mergulhar para dentro da marcha para jesus, que enchia de cores a avenida paulista (segundo o uol, são "aproximadamente dois milhões" de fiéis na rua nesta quinta-feira de sol).
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para que eu vencesse um mísero quarteirão, foram, sei lá, uns 20 minutos. eu trotava vagarosamente junto à multidão e me sentia mais ou menos numa marcha fúnebre, como se o vagar respeitoso do féretro fosse devido à presençausência morta do defunto. o povo ao meu redor gritava, em coro, que "deus/ é/ fiel", e eu, zonzo a princípio, entendia "pê/ efe/ ele" e desnorteava. maionese total, porque ninguém nesse mundo grita "pfl", nem mesmo numa marcha para jesus.
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ok, acabo de transbordar dois preconceitos de uma vez só, atribuindo morbidez intrínseca aos amantes de jesus e considerando que não possa ser legítimo o ato de amar o partido da frente liberal (dos circunspectos antonio carlos magalhães e jorge bornhausen, expoentes da direita brasileira que se espraia da bahia a santa catarina, e até mais longe que isso). é que ninguém é de ferro, né?
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mesmo não sendo de ferro, tento me redimir e admito que gostei. que gostei de estar por minutos dentro da liberdade coletiva de pessoas que marcham para jesus. que fiquei feliz por lembrar que dentro de uma mesma semana e de uma mesma avenida caberão o orgulho por jesus e o orgulho pela diversidade sexual. a avenida paulista, nesta semana de maio de 2005, é o próprio arco-íris, a soma de todas as cores de que tanto gostam os negros gilberto gil e jorge ben (jor).
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e então me escafedi pelo buraco do metrô, rumo ao emprego, para longe daquela idéia que tanto me desgosta, da suposta fidelidade de deus - fiel a quem, caras pálidas?
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mais tarde voltei à rua para almoçar, e dessa vez preferi evitar a multidão - ainda bem que na paralela da marcha ("marcha" puxa para si o termo "fúnebre", mas puxa também o termo "militar", não?) que sai da consolação em direção ao paraíso existe a santa alameda santos.
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na alameda de todos os santos, assisti a outra cena inusitada. um homem quase idoso, de vozeirão grave e aspecto de trabalhador informal ambulante ou algo parecido, passava em frente ao chiquitíssimo hotel renaissance, contra o qual erguia altos brados: "olha a polícia federal aí, gente... se fosse o tempo de figueiredo vocês não iam ter essa mamata toda, não... é lavagem de dinheiro... é queima de arquivo... é tráfico de armas... é maconha... cambada de sem-vergonha...".
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não concordo com a noção do homem, de que a corrupção fosse menor na ditadura militar que hoje em dia - discordo frontalmente, acredito no contrário (entre um escândalo nos correios e 30 mil torturas no porão, sou obrigado a eleger a primeira opção). mas não posso deixar de me encher de júbilo pelo simples fato de aquele homem estar exprimindo em voz altíssima suas OPINIÕES. admiro e felicito sua voz grave e nada temerosa (a alameda dos santos estava cheia de policiais por todos os recantos) contra o modo como ele, por dentro de si, vê os hóspedes do hotel renaissance.
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porque, srs. hóspedes da renascença, vocês podem achar que pobre é tudo ladrão e vagabundo - pois os pobres, srs. hóspedes, pensam o mesmíssimo (e até pior) dos srs. amor com amor se paga, srs. hóspedes e srs. moradores (de rua). abram os olhos e os ouvidos, srs. hóspedes, o brasil não é só para hóspedes.
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[ah, puxa, e hoje é dia do aniversário do meu querido antônio rogério toscano... você (não) sente, (n)e(m) vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu (grande) amigo: feliz aniversário!]
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e olha que engraçado. a passeata para jesus parte da consolação e desliza em direção ao paraíso... bem o inverso da parada gay, que neste domingo fugirá das sombras do paraíso [alô, dr. joão silvério trevisan, lembranças para seu lindo livro "devassos no paraíso"] à procura de alguma consolação, de algum ideal democrático de (praça da) república... mesmo que aqui tudo o que se move ganhe o nome postiço de "parada", é bonito ver quanto movimento existe ao meu redor (e, quero crer, também dentro de mim).
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ih, peguei o expresso 2222 e viajei na maionese. o que eu queria mesmo era apenas apresentar um pequeno antídoto à suposta fidelidade de deus - contra dogmas em geral, nada como um bom funk carioca.
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e eis que eclode o funk, esse incompreendido. na reportagem da "carta capital" 338, de 20 de abril de 2005, o pancadão foi o maioral. vem, popozudo, sacode o traseirão.

O FUNK SAI DA SOMBRA
Livro e documentário propõem reflexão sobre um gênero marginalizado

Por Pedro Alexandre Sanches

Sim, os bailes de funk têm fascinado novos playboys e patricinhas a cada dia. Mas, não, não é só a nata da sociedade que vem atendendo aos apelos sexuais e sociais explícitos dos funkeiros cariocas. Paralelamente, começam a surgir trabalhos que miram sob vínculos de pesquisa e reflexão o movimento musical que viceja nas favelas cariocas.

É o caso do livro recém-lançado Batidão – Uma História do Funk (Record, 280 págs., R$ 42,90), em que o jornalista Silvio Essinger traça uma biografia do gênero musical, desde seus precursores dos anos 60 e 70. É o caso, também, do filme Sou Feia, mas Tô na Moda, da diretora Denise Garcia, que traduz aquele imaginário para linguagem audiovisual, num documentário de 60 minutos que permanece inédito no Brasil, mas já teve sessão concorrida em março, em Londres, ponto de irradiação da noção de que o funk carioca seria "a nova música eletrônica", em tradução tipicamente brasileira.

Profissionais europeus também circulam pelo Rio, captando fonogramas, imagens e informações para compilações, documentários e exposições – o alemão Daniel Haaksman, por exemplo, prepara com as fotógrafas brasileiras Adriana Pittigliani e Daniela Dacorso uma mostra sobre o mundo funk local, que deve rodar capitais européias em 2006.

Híbrido controverso de funkeiro e rapper, o músico Mr. Catra (autor dos versos "ô, simpático/ pára de formar caô!"), 36 anos, puxa dessa meada o fio que acredita explicar o surto de interesse: "Como sempre acontece no Brasil, tudo vem de fora para dentro. Precisou o funk tomar conta lá fora para começar a ser respeitado aqui. Na realidade todo mundo já curtia, mas não dizia. Agora ficou fácil".

Catra é dos personagens mais controvertidos do livro de Silvio Essinger, um carioca branco e louro de 34 anos, que viveu no Irajá até os 13, em meio à profusão das equipes de som que produziam bailes suburbanos de black music. Sem deitar teses, Batidão vai passeando pelo pioneiro Rap da Felicidade (1993), pela repressão policial que confinou o funk nas favelas, pelos "proibidões" (de suposta apologia ao crime), por ondas recentes de dispersão na sociedade (Bonde do Tigrão, MC Serginho e Lacraia etc.).

O autor locomove-se entre questões estéticas e políticas ao justificar o projeto – antes, escrevera um livro sobre o rebelde movimento punk dos anos 70. "Se coloco em ação o crítico, a qualidade é um problema. O funk vai constituir uma obra? Provavelmente não, do modo como entendemos música popular. Mas o que me faz ver qualidade ali é a vontade deles, que não se prende a nenhuma amarra, e o compromisso de fazer música que pegue no baile, mas lide com a realidade."

Ele localiza na relação com a indústria fonográfica outra subversão do funk: "Muitas músicas estouram antes mesmo de saírem em CD, subvertem toda a lógica da indústria. É uma saudável volta aos tempos em que a música aparecia na tradição oral antes de virar sucesso de rádio".

A tensão entre estética e ideologia e o trânsito do punk ao funk também são vividos por Denise Garcia, 37 anos, que divide com o cartunista Allan Sieber a direção da produtora Toscographics: "A decisão de fazer o filme foi política e ideológica, não estética, apesar de eu gostar de batida forte, de gostar desde sempre de punk rock. A atitude do funk é a mesma daqueles ingleses dos famosos três acordes. Mas no nosso caso há a voz das mulheres – e, mais, das mulheres brasileiras".

Carioca branca que viveu em Porto Alegre até 2000, Denise compromete-se com o novo (e explícito) discurso feminista que vem eclodindo do funk, nas vozes de garotas como Tati Quebra Barraco (de Sou Feia, mas Tô na Moda: "Tô podendo pagar hotel pros homem/ e isso é que é mais importante") e Deize Tigrona (de Injeção: "Tá ardendo, eu tô agüentando"). "As funkeiras falam de sexo, são lúdicas, têm articulação verbal. Que mulher faz isso hoje em dia? Não me ocorre."

Seu filme transpõe ao vídeo os exemplos da gordinha Tati, que aparece cantando de baile em baile aos oito meses de gravidez ("minhas amigas, àquela altura, não podiam fazer mais nada, e lá está Tati dizendo que grávida não é doente"), e o da Gaiola das Popozudas, que tem entre suas integrantes uma anã. "Isso é o máximo, ela é anã, tem filho e dança, é uma forma de dizer que toda mulher pode ser sensual", opina Denise. Ironia histórica, a funkeira anã tem o mesmo nome daquela que, segundo os sambistas Ataulfo Alves e Mário Lago, "era mulher de verdade" e "não tinha a menor vaidade": Amélia.

Denise sonda o significado do que aprendeu filmando as meninas do funk: "É um grito. Elas falam de sexo abertamente, coisas que a gente da classe média fala só com as amigas, cochichando. Ninguém mais fala que aquelas mulheres de silicone são objetos sexuais, mas quando surgem essas meninas, que as pessoas adorariam que fossem invisíveis ou visíveis só lavando seus pratos, aí não pode. Ouvindo elas, passei a me sentir mais à vontade como mulher, menos invisível".

Deize Tigrona, uma das estrelas de seu filme, é prova viva. Com 24 anos, casada e mãe de uma filha, há poucas semanas Deize voou de avião pela primeira vez, da Cidade de Deus para São Paulo, onde cantaria na boate de classe média alta Lov.e. Ela fala sobre si e sobre o porquê de quase ter perdido o vôo: "Sou empregada doméstica em Jacarepaguá, saí às 17 horas e fui fazer a unha. Perdi o vôo, tive que pagar R$ 100 para pegar outro. No outro dia, a patroa falou: 'Que cara de cansada'. Contei tudo, a mulher quase deu um treco pra trás, 'nossa, tenho uma artista em casa'. Agora ela não fala mais mal do funk. Toda semana pergunta se fiz algum show, me aconselha a economizar o que ganhar".

Deize saca argumento simples e direto para defender sua música: "Para mim, funk tem qualidade, e se não tiver vai passar a ter. Você é da classe média ou alta? Eu sou da baixa, e você está me telefonando..."

Carioca do Borel, Mr. Catra usa seu discurso para puxar orelhas das classes mais altas, carregando tintas na ironia: "Alguém quer acabar com a violência no Brasil? Como todos sabem, vivemos num país idôneo, sem corrupção, colarinho-branco. Na favela não há fábrica de arma, plantio de maconha. As pessoas aqui são impossibilitadas de viajar de avião, têm antecedentes criminais e tal. Então como as drogas e as armas chegam à favela? Se legalizassem as drogas de um jeito decente, dando carteira assinada e apoiando a reabilitação de usuários, o tráfico acabava. Mas não, só se marginaliza ainda mais. Para viver rico nessa sociedade podre, é melhor continuar mendigo".

Deize Tigrona toca no mesmo conflito, quando reflete sobre ser citada em livros e estrelar filmes que passam na Inglaterra, mas seguir seu dia-a-dia de faxineira: "Para mim é difícil dizer 'sou artista'. Apesar dessa fama, não tenho nem dinheiro para trocar a laje de casa. Me dizem que tenho que ter mais ambição, e realmente tenho achado que preciso querer mais mesmo".

A propósito: segundo Denise Garcia, não são raros os funkeiros que se desdobram em nove shows por semana, por R$ 400 a cada baile – mais que R$ 14 mil mensais. "Ou seja, eles ganham mais do que eu!", espanta-se. "É inclusão social feita por eles mesmos, sem precisar da nossa aprovação. Criaram um meio de ter identidade dentro e fora da favela, é quase um milagre." O lado de cá ainda não entende bem, mas já começa a se debruçar sobre o fenômeno.

quarta-feira, maio 25, 2005

tropicália giratória

bob dylan faz pensar em joão bosco, que faz pensar em tom zé...

o pré-tropicalista-tropicalista-pós-tropicalista tom zé foi o protagonista de texto da "carta capital" 337, de 13 de abril de 2005, que é texto-irmão de outro publicado aqui no blog, "tom zé em pílulas". vem ver a banda passar:

TROPICÁLIA GIRATÓRIA
Aos 68 anos, Tom Zé tumultua a cultura atacando o machismo e outros preconceitos e defendendo... o pagode

Por Pedro Alexandre Sanches

Do alto de seus 68 anos, o músico baiano/paulistano Tom Zé lançou duas iscas ao Brasil ao apresentar, na semana passada, seu 13º álbum, Estudando o Pagode. A isca presa ao título foi mordida pela mídia, que reagiu prontamente à defesa do pagode pelo artista. Colocando sua música sempre sofisticada a serviço da crítica ao preconceito das classes intelectualizadas contra gêneros mais populares, o músico fomentou revides, discordâncias, discussões localizadas. O pagode polarizou o debate.

A reação mais irritada veio de uma leitora da Folha de S.Paulo, a socióloga mineira Marilza Siléia de Almeida Jota, que atacou com violência o paternalismo de Tom Zé diante dos ritmos populares – ela viu escondidos atrás de tal atitude preconceitos "de classe, de cor e de cultura". "A arte engajada sabe ser desagradável, enfadonha e pedante na maioria das vezes. O povão sabe o que dói na pele: a desigualdade social", revoltou-se.

Marilza foi das únicas a morder a segunda isca da intricada obra de subtítulo Tom Zé na Opereta Segregamulher e Amor. "As mulheres não precisam de que nenhum intelectual politicamente correto lhes abra os olhos para verem a existência do desprezo a elas", completou, irritada. Na letra de Mulher Navio Negreiro (cujo título equipara os estigmas do machismo e do racismo), Tom Zé engancha em carne ferida essa segunda isca: "O macho pela vida se valida a molestar a mulher".

Protagonizando o programa de tevê Roda Viva, na segunda-feira 4, ele viu as discussões focarem quase sempre o horror do pagode mauricinho, quase nunca o terror do machismo – mesmo com várias mulheres presentes no debate. "O assunto da segregação da mulher foi minimizado, evitado, e essa estratégia da ocultação, do velamento, em se tratando de problemas femininos, já é observável há muito tempo", afirma a CartaCapital, comentando o silêncio geral sobre a maior provocação presente em um dos discos mais criativos e audaciosos a nascerem no Brasil dos anos 2000.

Nem ele próprio se safa das questões contra as quais investe qual um Dom Quixote pós-moderno, como demonstrou com agressividade a socióloga mineira. Após entrevistas em que parecia se referir ao pagode como um gênero menor, arrepende-se e tenta corrigir a rota: "Bater em pessoa colocada em posição vulnerável é uma covardia, e eu não faço isso. Peço desculpas a todos".

A questão feminina vai se ocultando, talvez também graças ao pensamento delirante de um artista que, em meio ao caos, se depara com moinhos concretos como pedra e os converte em música de primeira. A metralhadora giratória do disco transborda rebeldia contra racismo, sexismo, homofobia, cultura de massa, até mesmo o abandono da malha ferroviária brasileira (no incrível pós-samba A Volta do Trem das Onze) – tudo ao mesmo tempo agora. Se política e políticos não habitam o CD, não seja por isso – ei-lo a opinar sobre o Brasil atual: "Nesta eleição ainda votarei em Lula, porque a quinta-coluna que ele enfrenta, configurada na irresponsabilidade da classe média, é de uma eficiência maquiavélica".

Uma classe oprimida que passa à margem do pandemônio criativo de Estudando o Pagode é aquela à qual o próprio autor pertence: a dos (homens) nordestinos que migraram para o Sul. "Ainda quando cheguei a São Paulo, em 1965, falava-se que aqui o imigrante italiano fora muito evitado pelas chamadas famílias quatrocentonas. Era uma vergonha admitir um 'carcamano' no sangue e no nome do clã. Também a expressão 'baianada' era muito repetida, mas, curiosamente, nunca me senti ofendido", tateia a questão latente.

"Para mim é mais doloroso, presentemente, ver que a classe média alta brasileira está protagonizando um novo e indisfarçável racismo, uma direita radical que tem ódio do pobre e toma o excluído como raça inferior, o que, como ondas concêntricas, aumenta a má vontade contra a mulher, os gays, as lésbicas", prossegue.

A crueza de estratégias de ocultação de opressões tem outro contra-exemplo na própria casa que concebeu a Opereta Segregamulher. Esposa e produtora do músico há mais de três décadas, Neusa Martins, 64 anos, está sempre por perto, parecendo atuar como parceira artística, cúmplice, co-autora, mentora do helicóptero Tom Zé. O Roda Viva reproduziu ao vivo cena corriqueira para quem já entrevistou o artista, de o marido variadas vezes pedir socorro à mulher para completar idéias e lembrar nomes, datas ou conceitos. Neusa decifra seu pensamento de imediato, sem jamais titubear. Mas, convidada a dar um depoimento à reportagem, esquiva-se, afirmando o orgulho de se preservar e de não ter "a mínima vocação para figura pública".

Isso não significa que Tom Zé omita vozes femininas na sustentação de seus argumentos. Estudando o Pagode chama a se expressarem as cantoras Zélia Duncan (magistral no lirismo de Duas Opiniões), Luciana Mello (surpreendente no modo acaipirado de cantar Quero Pensar), Patrícia Marx (lírica ao extremo em Prazer Carnal) e Suzana Salles.

Intérprete aguda e personal da vanguarda paulistana, Suzana tornou-se voz feminina principal do disco e do show. Vinda de dentro da Opereta Segregamulher, é ela quem opina, em tom brincalhão, sobre o tema-tabu que vai e vem: "Não me sinto segregada, nunca me senti. Quem deveria se sentir segregado por ser homem lá em casa era meu pai, que teve sete filhas, todas mulheres. Coincidência ou não, volta e meia canto personagens segregados, excluídos e marginalizados. No selo infantil Palavra Cantada, já fui pulga, barata e rata. Ninguém se lembra de mim para interpretar borboleta, joaninha, rouxinol. E, para falar a verdade, prefiro mil vezes ser a torta que a certinha".

Avançando além de guerras dos sexos e tiroteios de preconceitos, Tom Zé também reserva papéis de proa às vozes masculinas. Além de cantar disciplinadamente em várias faixas, o jovem Jair Oliveira (seu colega na gravadora Trama) é o produtor do CD. Em Vibração da Carne e Para Lá do Pará, mestre e discípulo bagunçam coretos se revezando em interpretar personagens femininas da opereta.

Também Edson Cordeiro trava com o dono do disco um duelo vocal, em que ambos interpretam personagens gays. Tom Zé defende que qualquer maneira de amor vale a pena e que também vale dançar homem com homem e mulher com mulher. A contracapa avisa que o CD é feito de "canções para duas vozes (masculina e feminina) – procure sua (seu) parceira(o)", mas reserva nichos para os viscerais duetos Tom-Edson (Elaeu) e Zélia Duncan-Suzana Salles (Duas Opiniões).

Como se pode perceber, temas-tabus se concentram e se diluem entre rajadas de referências cruzadas e dentro de um parque sonoro de diversões (o som extraído de folhas de fícus é recorrente – e, acredite, causa mais prazer que irritação). Salta à frente então outro dado, o de que Tom Zé, aos 68 anos, abdica da solidão artística para conceber um trabalho coletivo, diluído e concentrado num sem-número de intérpretes e instrumentistas.

Além de "autoplagiar" em pique de chiste um outro disco crucial do autor (Estudando o Samba, de 1975), Estudando o Pagode acaba por se reportar à gestação de Tom Zé como o conhecemos hoje: a explosão criativa grupal de Tropicália ou Panis et Circencis (1968, dividido com Gil, Caetano, Gal, Mutantes e outros). Mas pouco têm a ver os dois momentos, a entender pelo curto comentário: "É muito diferente. Naquele tempo eu era uma cabeça sem destino, e agora sou um destino quase com cabeça".

É que, contrariando a máxima de que música popular é arte de juventude, Tom Zé chega a mais um ápice artístico, pronto não apenas a proteger (e talvez vitimizar) a condição feminina e a condição pagodeira, mas a cutucar uma por uma todas as minorias oprimidas que constituem este Brasil.

segunda-feira, maio 23, 2005

bobos sabidos, doidos varridos, nobres de vintém

quem passa por aqui já me ouviu tocar repetidamente no nome de joão bosco, e nem eu mesmo estava entendendo muito bem o porquê dessa insistência. após uma semana em que reouvi, emocionado, discos dele dos anos 70 e dos anos 80, acho que começo a perceber por que é que tenho pensado tanto em joão bosco (e, por conseqüência, em seu parceiro mais contumaz, aldir blanc).

reouvindo o que esses caras diziam nas décadas de 70 e 80, me ocorre que um brasil de que bosco & blanc falavam cotidianamente está acontecendo, tantos anos depois, finalmente. melhor falando, esse brasil já acontecia (tanto é que b&b o transformavam em crônica musical) - a novidade de agora é que parece que ele está ganhando a avenida central, explodindo, eclodindo de um recalque de décadas, talvez séculos.

ouvindo, relembro que b&b faziam músicas (sambas) & letras (cordéis suburbanos), er, vulgares..., er, cafonas... excitavam pudores, incômodos e pudores incômodos na gente, quando desenrolavam os novelos da "ponta de um torturante band-aid no calcanhar", das "línguas rubras dos amantes" e da "dor no coração vermelho", de "rabada com angu, rabo de saia", da dona que "costurou na boca do sapo um resto de angu" e avisou que "marido infiel vai levar rasteira", do "latin lover" confessando que "fascínio tenho eu por falsas louras", da dona que "levou as minhas cuecas prum bruxo rezar", de um "galã se espalhando, dando", do strip-tease da "crooner do norte, nem aplausos nem vaias, um silêncio de morte", de um visconde de taubaté "sábio sabugo, filho de ninguém, espiga de milho, bobo sabido, doido varrido, nobre de vintém", da escatologia d'"essa vontade de soltar um barro" (ess, afrodite se puder, era cantada em duo com príncipe paulinho da viola), da morbidez urubu de "tá lá o corpo estendido no chão", da tarde caindo feito um viaduto...

um imaginário vulgar, ora, direis, nobre deputado que vê estrelas... mas, sim, um imaginário bem brasileiro (brasileiro de minas gerais, de onde escapuliu joão bosco, e brasileiro do rio de janeiro, onde estacionou aldir blanc), brasileirinho, brasileiríssimo, daqueles que nos cegam as vistas vesgas, de tão corrriqueiros, familiares e conhecidos que nos são.

prima-irmã da bandeira vulgar, reencontro também sua flor-irmã, outro dos lados b de b&b. o brasil que eles fotografavam era o das grandes festas populares, de dionísio solto endiabrado nas ruas, como em "dois mil e índio" (do disco "gagabirô", barclay, 1984), retrato de escola de samba do carnaval carioca em que o narrador desfila "de fraque sabendo que o fundo tá aparecendo, anjo do inferno: brasil, índio do ano 2000".

desse mesmo jardim de rosas que falam, quase choro ao reouvir "comissão de frente" (do disco homônimo, ariola, 1982) - põe tento nestes insights afetuosíssimos sobre o que reluz (é ouro em pó) durante uma noite na sapucaí ou no sambódromo: "fralda cor de abacate/ (...) zumbi no repique/ grega dando chilique/ índio de esparadrapo/ marajós de irajá/ ícaros de icaraí/ e sandália havaiana/ (...) sheik de pilantragem/ frescuragem de paca (...)/ tirolês de cueca/ e um rebanho de vaca". da paca e da vaca, a letra de aldir pula sem escalas em cima no "açougueiro", na cruenta realidade nacional que as luzes & chamas de joãosinho trinta não apagam - tome a conclusão colossal: "a comissão de frente, se a maré tá mesmo brava demais, passa atrás".

prima-flor da festa, a bandeira do brasil que eles fotografavam era a das lutas sociais, olha só o "rancho da goiabada" (de "galos de briga", rca, 1976): "os bóias-frias, quando tomam umas birita espantando a tristeza, sonham com bife a cavalo, batata frita... e a sobremesa é goiabada cascão com muito queijo, depois café, cigarro e o beijo de uma mulata chamada leonor... ou dagmar..." - os brasileiros dali, do rancho da goiabada, "são pais de santo, paus de arara, são passistas, são flagelados, são pingentes, balconistas..." que protestam-hibernam-vegetam "dançando-dormindo de olhos abertos à sombra da alegoria dos faraós embalsamados".

atenção ao dobrar uma esquina, atenção, menina: você acompanhou a marcha dos sem-terra do brasil profundo rumo à profundíssima brasília, poucos dias atrás? acompanhará em são paulo a marcha das minorias sexo-sociais que, na avenida-paulista-brasil, ainda leva o nome antigo de "parada gay"? vê levantarem do hibernatório as legiões de brasileiros que hoje em dia marcham rumo à alegoria dos faraós embalsamados?

flor pestilenta, o brasil ("angra desolada, dia que não raia") que b&b clicavam era o da miséria acuada nos morros, vilas, favelas & subúrbios, botão lilás de obras-primas bêbadas de odor, ora, respire-escute só. em "o mestre-sala dos mares" (de "caça à raposa", rca, 1975), eclode a revolta da chibata, em solo úmido do lúmpen, o mar, a puta e o corsário presos nos mesmos arrecifes: "salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais". em "de frente pro crime" (do mesmo disco), o corpo estendido-assassinado no chão causa comoção na vizinhança, mas ao final se fecha a janela estendida pro crime: "sem pressa foi cada um pro seu lado, pensando numa mulher ou num time". cintilante, "galo, grilo e pavão" (de "comissão de frente", ariola, 1982) desfila na favela narrando a convivência de três chapas bicheiros, em direção a módico desfecho, janela aberta para "pequenos" crimes: "grilo é procuradô/ pavão manda matá/ galo cumpre a incumbença".

pairando sobretudo e sobre todas, dormita (um olho vigilante) a flor de câncer "tiro de misericórdia" (do álbum homônimo, rca, 1977), relato da vida de um menino desses que crescem "subindo em pedreira que nem lagartixa" e em 2005 são chamados dadinhos, zés pequenos, falcões, vapores, soldadinhos (de chumbo) do tráfico. após a descrição cinematográfica de um temporal de orixás, eis a coroação evanescente do menino-vapor barato: "grampearam o menino do corpo fechado e barbarizaram com mais de cem tiros/ 13 anos de vida sem misericórdia e a misericórdia no último tiro/ morreu como um cachorro e gritou feito um porco depois de pular igual a macaco/ vou jogar nesses três que nem ele morreu: num jogo cercado pelos sete lados", estuprados os sete buracos de sua cabeça. (briga de) galo, grilo (na cuca) & pavão (mysteriozo).

se no brasil de b&b dois sambistas urbanos meio brancos de classe mais ou menos média portavam a voz dos desvalidos, é de ver que aquele brasil agora acontece e se desvenda: em vez da voz duplicada de bosco & blanc, transbordam dos morros, vilas, favelas, subúrbios, ipirangas & sãos joõoes da miséria acuada para a ação criativa nomes, entidades & pessoas como mano brown, mv bill, "cabeça de porco", celso athayde, cufa, rappin' hood, deize tigrona, tati quebra barraco, mr. catra, afrobras, faculdade zumbi dos palmares, ferréz, paulo lins, helio santos etc. etc. etc. o mestre-sala agora é a porta-bandeira, ou vice, e/ou versa.

estavam embutidos (enrustidos?) nisso tudo aí outros temas-monolito de b&b: a anarquia sócio-oficial vigente, a balbúrdia racial, o racismo explícito e o polvo de mil léguas submarinas dos preconceitos de classe. respingo de volta no presente, vendo que aqui em meus textos de hoje persigo meio sem querer esses mesmos temas, mesmo também sendo um meio branco de classe mais ou menos média receoso de parecer querer me arvorar a defensor dos desvalidos (eles não precisam disso, não podem precisar, e é isso que este novo brasil tenta garbosamente demonstrar por marchas, passeios, passeatas, protestos e festas de arromba). penso nos pretos, sempre e sempre e sempre, e nem sempre sei por que é que penso neles tanto assim. mas então reouço "cabeça de nego" (barclay, 1986), e compreendo como & por que aquela consciência e aquela paixão se implantaram em meu cérebro.

era 1987 quando, pós-adolescente estudante de farmácia, 18 anos, dei de ouvir e ouvir e ouvir e reouvir sem parar os discos de bosco, primeiro o levemente mais ameno "ai ai ai de mim" (cbs, 1987), logo em seguida "comissão de frente", "gagabirô" e "cabeça de nego". de frente pra cabeça branca do nego bosco, me reencontro com minha cabeça de nego, implantada em mim pelo barba-negra de minas, que então já começava a se separar de blanc. elis regina, gaúcha descobridora de mineiros & cariocas, havia morrido tragicamente em 1982, e a partir desse evento (e/ou da ditadura agonizante, das diretas já, da década yuppie) a linguagem começou a se estilhaçar na obra de seu criador-criatura. cresciam os esgares tipo novilíngua de bosco, "gagabirô, gagabirá", "gadazumbambo liiii", "zimba cubacubá, zimbacubão, zimbacu", "ierululê, brinquedo de papel maché", outras afro-onomatopéias assim.

parecia que a linguagem militante se esfarelava, mas mais ou menos. rítmico, ritual, afro-sambista e percussivo, "cabeça de nego" mergulhava na mágica & trágica condição negra brasileira, partindo de "quilombo" (regravação de tema racial do primeiro "joão bosco", o lp de estréia da rca, longe em 1973) e recolocando na passarela da avenida-onomatopéia-brasil pixinguinha, joão da baiana, clementina de jesus, sinhô, donga, silas de oliveira, paulinho da viola, joão do pulo, candeia, angela maria, belchior (branco de cearenses dores negras), martinho da vila (co-autor do deslumbrante canto ritual "odilê odilá", que encerra o disco em afro-samba)...

no passeio por "cabeça de nego", eis que me reencontro com "da áfrica à sapucaí", minha predileta 18 anos atrás, que eu amava sem entender direito o que dizia. o que dizia? deixo as palavras a bosco & blanc: "livre, na mãe africana, louvando meu tantã/ preso, marca a rebeldia, traz pra senzala a luz do amanhã/ negro, meu são benedito, tô nessa procissão/ ó, senhora do rosário, vê meu calvário e minha aflição". me reintegro às conclusões de b&b: "samba é a voz que me guarda enquanto eu aguardo a procissão se espraiar/ de santo cristo a oswaldo cruz/ esperando a vez do morro se unir pra arrebentar".

a voz do morro, o morro não tem vez, a voz do morto, a voz do torto, a vez do morro. quer saber se hoje, 2005, essa voz está se unindo pra arrebentar? rebobine a marcha dos mst, vá domingo à parada de todas as sexualidades, abra a janela de frente para o brasil e veja um brasil - não aquele de blanc ("o brasil não conhece o brasil"), mas um brasil que começa a conhecer o brasil. a refavela.

esse brasil já está em toda parte.

veja os erros & acertos (muito mais esses) do presidente barba-branca-e-negra lula, ouça suas metáforas, dance a marcha-rancho da goiabada.

veja a novela das sete na globo, as protagonistas pretas na tevê, o grande perdedor, o big gay mano bróder.

assista também àqueles que renegam esse um brasil que o outro viu na tevê ("eu vi um brasil na tevê"), conserve a família e vá ao cinema vê-los vibrar.

vá ver "bendito fruto", filme brasileiro de sérgio goldenberg que estoura, com toda delicadeza, a membrana invisível da quarta parede do teatro-televisão [e então experimente comparar com "casa de areia", a geleira azul da solidão (cito agora "corsário", de, adivinhe, b&b), o brasil televisivo-publicitário que não quer se ver tanto assim, mesmo contando com tantas fernandas bem brasileiras em seu escopo]. preste atenção nos olhares dos personagens de "bendito fruto", nas atuações dos atores de "bendito fruto". eles, personagens e/ou atores, não são mais giseles, sandys ou juniors - eles são passantes, passistas, pingentes, traficantes, balconistas, caipiras, manicures, malucos, galãs flagelados de tevê.

embebido no leve brasil carioca "do sim" (o de "bendito fruto"), compare-o com o brasil paulista "do não", pesadelo, estigma da cidade-estado que se nega o tempo inteiro, autoflagelação feita no fígado de sérgio bianchi: "quanto vale ou é por quilo?". misture tudo na sua cabeça, o brasil do sim e o brasil do não, liquidifique, chacoalhe, beba & vomite, qual os mendigos de bianchi, um brasil, um brasilzão, um brasil inteiro. nele caberão panorâmicas de galãs & mocinhas gordos, suarentos, pretos, bichas & mulheres tããããão reais de "bendito fruto". nele caberão closes de cínicos, cruéis, covardes & calados de "quanto vale ou é por quilo?", retrato estridente a cuspir que a senzala de 118 anos atrás é a mesma senzala de hoje, essa de que têm falado tantos brasileiros bravos de 2005 e que o brasil-fígado (não só o de bianchi) tenta diuturnamente desqualificar. o sim é o não, & vice, & versa.

não sei se há um brasileiro vivo com 118 anos de idade. se houver, seu tempo de vida terá sido um ano maior que o tempo de vida da escravidão brasileira. 117 longos anos é o ínfimo tempo de existência de uma pessoa (você), um pouquinho mais que isso. é ferida aberta, viva demais. só agora somem do mapa do brasil pessoas que tinham grudadas na própria carne e na própria história a memória do que era a escravidão institucional (quanto à semi-escravidão da favela, nova senzala, essa ainda demorará o tempo de vida de várias gerações de brasileiros). essa extinção coincide com um levante negro (de todas as cores) - um levante suave, elegante, discreto, inteligente, uma mistura de desfile com passeata, de festa com protesto, de alegria com tristeza.

mas, quando ouvir alguém bradar contra a permanência da escravidão (mesmo que seja um branco escandinavo), não pense que é alguém falando pelas dores dos outros. não é, é você mesmo(a), como aliás sergio bianchi quer planilhar quando equipara a escravidão dos 1700 com a dos 2000. porque se os negros estão (estavam) encurralados nas favelas brasileiras os brasileiros estão (estavam) encurralados na favela-brasil. porque os brasileiros eram-são-somos-(não)-seremos os negros do mundo, lado a lado com outros manos africanos, orientais & quem mais chegar. o levante negro (de todas as cores), preconizado desde há muito por joão bosco & aldir blanc, é o nosso levante. sente-se, levante-se, a massa sente e quer gritar, enquanto o eterno deus mu dança nova-deslumbrante-reluzente-(corpo-&)-mente. este brasil está acontecendo.

[este texto sampleou vários autores da música brasileira que, assim como bosco & blanc, fizeram-fazem-farão o brasil acontecer. mas não é preciso explicitá-los, são consolo que já cansamos de conhecer. por ora, fiquemos com bosco & blanc & goldenberg & bianchi & eu & você & esses índios do ano 2000 que, todos juntos, somos fortes.]

sexta-feira, maio 20, 2005

hey, mr. dylan man

agora que a "matriz" rompeu o tabu, aposto que mais cedo ou mais tarde alguém da "filial" brasileira acaba seguindo o exemplo de mr. bob dylan, que em "crônicas - volume 1" (2004, publicado aqui-agora pela editora planeta) traz a público alguns dos demônios, inconvenientes e apuros por que costuma passar um herói das multidões.

olhaí a lindeza que transparece de uns trechos em que o bob dylan dos anos 2000 se refere ao bob dylan que chegava ao final dos anos 80 vazio, extenuado - e consciente da pasmaceira que envolvia tudo o que ele andara fazendo nos anos anteriores (em negrito, reflexões que me parecem de especial beleza-clareza-tristeza):

"eu me sentia acabado, um traste vazio completamente consumido. (...) Onde quer que eu vá, sou um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um artesão da palavra de tempos passados, um chefe de estado fictício de um lugar que ninguém conhece. estou no inferno do esquecimento cultural. tudo e mais um pouco. não consigo me soltar."

"estava tudo despedaçado. minhas próprias canções haviam se tornado estranhas para mim, eu já não tinha habilidade para tocar seus nervos expostos, não conseguia penetrar além das próprias superfícies. não era mais o meu momento na história. o que eu cantava tinha se tornado vazio e sem coração, e eu não agüentava mais esperar para desmontar o acampamento e me recolher. (...) eu era o que chamavam de maduro demais. se não tomasse cuidado, acabaria esbravejando aos berros com as paredes. o espelho havia girado ao contrário, e eu podia ver o futuro - um velho ator furungando em latas de lixo do lado de fora do teatro de seus triunfos do passado."

uau, isso é o que eu chamaria de arte a serviço do anti-ilusionismo. arte que não existe para enganar, mas sim para mostrar como a medula do mundo é. nada de heróico, nada de infalível, nada de sobre-humano. a vida como ela é.

aliás, quem é fã fervoroso de algum escritor, cantora, compositor, atriz ou outro totem qualquer poderá levar um baita susto ao espelhar seu próprio ídolo em mr. dylan, que com as seguintes mesuras trata alguns de seus admiradores mais fanáticos:

"mapas rodoviários com a localização de nossa propriedade rural devem ter sido enviados para as gangues de periféricos e drogados de todos os 50 estados. Parasitas em peregrinação vinham de longe, até da califórnia. imbecis invadiam nossa casa a qualquer hora da noite. de início, eram apenas nômades sem-teto entrando ilegalmente - parecia bastante inofensivo, mas enmtão os patifes radicais em busca do 'príncipe do protesto' começaram a chegar: personagens de aparência indescritível, mulheres com aspecto de gárgula, espantalhos, vadios à procura de festa, de uma boca-livre. (...) eu queria mandar bala naquela gente".

[e olha como bob se refere a outro ídolo, seu "amigo" bono, do u2: "passar o tempo com bono era como jantar em um trem", hahahahahaha.]

não, definitivamente a idolatria não é um hábito saudável - nem para quem se cultiva como ídolo, muito menos para quem cultiva idolatrar...

[ah, e sobre os críticos, idólatras ao avesso, olha só o que mr. dylan pensava àquela altura: "a maioria dos críticos de música não passava agora de relações públicas".]

ai, ai, torço ferozmente para que o brasil tope aderir à vanguarda do anti-ilusionismo, trocando as ilhas de caras pelas ilhotas do coração...

quarta-feira, maio 18, 2005

iê-iê-iê dos anos 2000

momento maçã do amor & algodão doce (alô, china!) na "carta capital", edição 336, 6 de abril de 2005. arranque o freio e pé na tábua, brotinho!

IÊ-IÊ-IÊ DOS ANOS 2000
Roberto Carlos e Jorge Ben motivam onda de releituras roqueiras por bandas em busca de comunicação com o público, como Lafayette e Os Tremendões

Por Pedro Alexandre Sanches

O baile está animado: jovens moderninhos dançam o rock, o twist e o iê-iê-iê, entre uma e outra pausa para o tradicional momento romântico, daqueles de fazer casais se juntarem para dançar de rostos colados. "Abram os braços para um novo amor", comanda o crooner do conjunto, prontamente atendido na platéia pelos fãs mais afoitos. Mas, não, não estamos nos anos 60 nem num filme da Sessão da Tarde, e sim numa noite enluarada de 2005.

O crooner, que já foi líder juvenil da banda de rock hardcore Sheik Tosado, é pernambucano, chama-se China e nessa noite do festival Vivo Open Air pilota a banda Del Rey, que se dedica de corpo e alma a perverter o repertório mais antigo de, você conhece, Roberto Carlos.

Antes, já passara pelo mesmo palco o grupo carioca Lafayette e Os Tremendões, dono da proeza de agrupar num mesmo projeto o sessentão Lafayette, organista dos discos dos anos 60 de Roberto, e um punhado de jovens egressos de bandas roqueiras como Acabou la Tequila, Autoramas, Nervoso e Canastra. Nesse caso, o repertório passa do "rei do iê-iê-iê" e se estende a seus parceiros de Jovem Guarda Erasmo Carlos e Wanderléa, a Leno & Lilian, a Renato e seus Blue Caps e até aos Beatles.

A tendência retrô não se resume à retomada do rock ingênuo que revolucionou a música de massa no Brasil quatro décadas atrás. Alegorizando um reverso negro e sambista do bom moço Roberto Carlos, o compositor Jorge Ben (hoje Ben Jor) polariza essa pequena febre, atraindo outros tantos jovens rebeldes para sua obra.

Ben é o motor de Los Sebosos Postizos, que tocara dias antes no mesmo festival. O quarteto é, na verdade, parte da banda mangue bit Nação Zumbi, que sob a alcunha latina canastrona vem pinçar as músicas mais antigas e menos batidas do autor.

Em outros shows recentes em São Paulo, no projeto independente "2em1", China em versão-solo e os meninos do Del Rey (que nas horas não vagas compõem a festejada banda recifense Mombojó) também costumam citar não só Jorge Ben (China canta Rosa, mas Que Nada, de 1967), mas outros nomes tão díspares quanto Martinho da Vila e Ronnie Von.

O músico e produtor Pupilo, dos Postizos, tenta decifrar por que os jovens têm se encantado mais por esses nomes que por ex-prediletos como Chico, Caetano ou Gil: "Acho que são artistas mais colados no inconsciente do povão. O apelo popular hoje em dia é muito vulgar, acho que esses caras levavam o popular a sério, falavam de modo direto, faziam as pessoas se identificarem". Ele diz que Tim Maia, outro "popular sem ser apelativo", poderia também ser alvo de algum tributo dos Postizos.

Exímio tecladista pop que atravessou a década de 60 vendendo milhares de cópias da série instrumental Lafayette Apresenta os Sucessos, Lafayette vinha tocando de rock a forró com seu conjunto de baile, em Niterói, para "público adulto, de mais de 40 anos", até ser convidado pelo músico Gabriel Thomaz para tocar em sua festa de casamento. O contato culminou na formação de uma banda que demole conflitos de gerações, une teclados pop a uma parede de guitarras e dosa rebeldia rock’n’roll com bom-mocismo iê-iê-iê.

O inventor da sonoridade que com Quero Que Vá Tudo pro Inferno(1965) consagrou a Jovem Guarda manifesta seus receios e sua surpresa ao presenciar o reencontro entre a molecada e pai Roberto: "Quando vi no primeiro show todo aquele pessoal de 20 anos na platéia, tive dúvidas, achei que aquela garotada não podia gostar de Roberto Carlos. Mas tive uma enorme surpresa. A princípio, estranhei o volume alto deles, mas talvez a garotada goste exatamente pela maneira mais agressiva de tocar".

Agressivos ao avesso, Los Sebosos Postizos optaram por convulsionar a alegria inerente à obra de Jorge Ben, transformando temas dançantes como Umbabarauma (1976) em peças soturnas, viajantes, quase mal-humoradas. O efeito é curioso: em seus shows sempre lotados, quase ninguém dança, mas nem por isso alguém arreda pé do salão.

O Del Rey consegue efeito contrário, transformando em festa-baile descontraída as lamúrias amorosas do "Rei". China revela-se possuído no palco ao cavalgar, com idêntica seriedade bem-humorada, desde o romantismo roqueiro infanto-juvenil de Ninguém Vai Tirar Você de Mim ("o nosso amor é puro/ espero nunca se acabar"), de 1968, até a cafonice madura de Coisa Bonita ("coisa bonita, coisa gostosa/ quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa?"), de 1993. E dirige provocação extra ao castelão MPB, encerrando o show com uma versão Jovem Guarda de O Pato, clássico da esnobe bossa nova na voz de João Gilberto.

Também inclinados à festa, Os Tremendões (que têm quatro vocalistas) alternam-se entre a interpretação racional de Renato Martins para o soul As Curvas da Estrada de Santos (1969) e a terna zombaria de Gabriel Thomaz na cafona O Portão (1974), aquela de "meu cachorro me sorriu latindo" – a platéia responde ao estímulo, latindo.

Aprofundam-se igualmente no apreço pela rebeldia envenenada de Erasmo Carlos (em Minha Fama de Mau, de 1965, ou Vem Quente Que Eu Estou Fervendo, de 1967) e pela ingenuidade desabalada de Wanderléa e Leno & Lilian (em Pare o Casamento e Pobre Menina, ambas de 1966 e ambas cantadas com doçura pela única menina do grupo, Érika Martins).

China conta que montou o Del Rey com o propósito único de reconquistar a namorada após uma briga, mas cai na real e vê o outro lado da moeda: "É tudo uma grande brincadeira, mas o Del Rey já está bancando minhas contas. Fizemos show para 800 pessoas, se fosse só eu não daria metade daquilo".

Ele toca, assim, numa das outras possíveis chaves para entender esse pequeno levante, tanto em termos de comércio como de comunicação. A visita aos populares de ontem tem proporcionado a novos artistas um grau de diálogo que suas próprias canções não conquistam de modo tão rápido e direto.

Dizendo-se honrado por devolver Lafayette ao rock, Gabriel Thomaz opina: "Nossos projetos autorais sempre tiveram influências da Jovem Guarda. O diálogo com a massa já foi proposto, mas ainda não fomos ouvidos".

Nessa forquilha encontra-se ainda um outro "revisor", o cantor Wilson Simoninha, que acaba de gravar um DVD MTV Apresenta, reinterpretando ao vivo (e com lotação esgotada) só canções de... Jorge Ben, ele de novo.

"É claro que a MTV quer que seja um sucesso. Mas eles lançam 20 acústicos e eu só tenho a minha carreira. É um conflito para mim, mas também é legítimo e natural querer o sucesso, querer ser popular", afirma o filho mais velho de Wilson Simonal, líder de popularidade há quatro décadas e depois transformado em maldito por razões extramusicais.

Ele se diz consciente de que saudosismo pode ser "ruim" para o atual pop nacional. Mas encontra no vínculo com seu pai já morto uma outra ponte. "Quando pedi autorização ao Jorge para o projeto, ele sugeriu que eu cantasse suas músicas que foram lançadas por Simonal. Acho que ele entendeu que era também um modo indireto de eu homenagear meu pai."

Entre celebrações e conflitos, é notável que artistas muitas vezes colocados em segundo plano por serem populares demais ou até simplórios sejam evocados por jovens músicos, direta ou indiretamente, em razão do poder comunicativo que possuíam.

O desejo de superar uma época de "música impopular brasileira", ainda que nostálgico, é comum a todos eles. China resume a ópera, brincando que sua meta "é tocar no especial de fim de ano do 'Rei'": "É lógico que quero ser reconhecido pelo que sou, mas o legal é que as pessoas estão me vendo, sabendo do meu trabalho. E eu estou até cantando melhor".

terça-feira, maio 17, 2005

onde tudo se mistura

feliz que fiquei com o resultado da reportagem sobre a faculdade zumbi dos palmares (fazp), ontem lá fui eu, todo serelepe, assistir, "enquanto jornalista", à festa de 13 de maio da primeira escola superior preponderantemente negra do brasil (e da américa latina, segundo contam orgulhosos os próprios fazps, do reitor ao porteiro).

e, olha, vou te contar, lá é onde tudo se mistura, literalmente.

lá eu vi de perto, pela primeira vez, o controverso severino cavalcante. lá eu vi de perto, e emocionado, mãe nitinha, a mãe de santo que lula não conseguiu embarcar para os funerais do papa - mas que a fazp conseguiu arrastar a uma cerimônia de louvor à abolição da escravatura e à entrega de uma comenda de ordem do mérito cívico afrobrasileiro (que ela, o severino & outros vários receberam).

o espectro político era assustador, uma mistura daquelas: o deputado machista do pp severino cavalcante, a ministra feminista do pt nilcéa freire (da secretaria especial de políticas para as mulheres), o militante negro e secretário recém-empossado da justiça e defesa da cidadania do psdb paulista hédio silva, o cônsul do uruguai, o cônsul da áfrica do sul, o cônsul dos estados unidos (!!!)...

o espectro religioso, então, era uma loucura: mãe nitinha e outras mães de santo, o padre preto da paróquia da acheropita (um padre negro em pleno reduto italiano do bexiga!), evangélicos e/ou ateus que, da platéia, não quiseram se levantar ante a oração católica... o coral negro que emoldurava a membrana de chatice do ato oficial alegorizava em si a diversidade, profanando hinos gospel, cantos rituais africanos, "oh happy day" e, meu deus do céu!, uma versão rebelde trespassada do hino nacional brasileiro, que a partir de então parecia soar, tudo ao mesmo tempo, soul, funk, samba, "aquarela do brasil".

o telão expunha os feitos anteriores da fazp e de sua mantenedora, a ong afrobras (você já ouviu esses nomes antes? já viu essa gente ganhando papel de protagonista na grande imprensa?). e, vou dizer, eles são exuberantes: imagens da festa de gala para a entrega do troféu raça negra, no teatro municipal de são paulo... clipes sobre orgulho protagonizados por alexandre pires, netinho de paula, taís araújo, nico puig (?!), jair oliveira... beth carvalho aos prantos diante de uma platéia negra no teatro municipal... etc. etc. etc.

severino, esse (in)compreendido, parecia cansado, extenuado. só cresceu e ergueu a voz quando, em meio à confusão mental habitual, discursou dizendo-se um soldado da causa negra, um irmão de luta por conta do preconceito e da discriminação que ele também sofre, por ser nordestino e porque "esses jornalistas de elite não entendem que não tive o direito de freqüentar uma universidade". em sua confusão mental, severino não entende que o preconceito que existe contra os pretos, os nordestinos e os mal alfabetizados é irmão gêmeo do preconceito que existe contra os homossexuais, as mulheres, as mulheres estupradas, as prostitutas e os deputados (lá, no discurso, ele manifestou explicitamente seu orgulho por ser deputado, o que foi muito bacana).

(se bem que, sei lá, será que convidaram ou vão convidar o severino para a parada gay de 2005? sou capaz de apostar que, se for convidado, ele aparece. porque desconfio que, de dentro de sua imensa confusão mental, severino sabe perfeitamente que todos os diferentes são iguais, e que ele é um deles...)

[por que o severino tem causado tanto escândalo, rendido tanta manchete? porque ele existe? ou porque ele não só existe como faz estardalhaço sobre sua própria existência? porque, vem cá, deve haver um trocentilhão de senadores, deputados, governadores, prefeitos, vereadores e brasileiros parecidíssimos com severino xique-xique, não? como é? esses a gente vai deixando?... a menos que eles resolvam berrar feito bezerros desmamados, como vem fazendo o confuso severino?... invisibilidade carcomida é algo que dói em nossos ouvidos?...]

ei. você viu essas notícias sobre a fazp comemorando os 117 anos da abolição da escravatura na globo, na folha, no estado etc.? pois seus jornalistas também estavam todos lá (alô, minha querida f.m.!), perseguindo as gafes do severino e compondo a fauna & a flora daquela diversidade transbordante.

falando nessas presenças todas, penso numa estranha ausência. onde será que estava ontem a ministra da promoção da igualdade racial, matilde ribeiro? faltou ela naquele convescote chique de carrões oficiais que se enfileiravam, sabe-se lá por conta de quais das ironias da realidade brasileira, naquela rua estreita do centrão velho de são paulo, à beira do lumpesinato da estação da luz, onde se finca a universidade da cidadania zumbi dos palmares.

segunda-feira, maio 16, 2005

não o rubrancor da vergonha *

retomando a discussão aberta pelo leo nas nossas caixas de diálogo, hoje gostei da justificativa prestada pelo ministro celso amorim (cê já parou para ouvir o celso?) sobre a gritaria em torno do modo como a palavra "democracia" foi (não)utilizada pela cúpula das arábias. olha o amorim aí, gente:
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"ficamos aqui falando de democracia como se, nos últimos 50 anos, tudo tivesse sido uma maravilha para os nossos países. nós tivemos problemas. aliás, continuamos tendo até hoje. o importante é que foi um encontro entre duas regiões em desenvolvimento, com países voltados para reformas, para o desenvolvimento e para a democracia. é um contato muito útil, até para mostrar que democracia não é um luxo apenas do norte. democracia é algo que existe também no sul."
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não tem razão o ministro? vejo pefelistas (e outras pessoas bem mais "esclarecidas") berrando contra a suposta mudez do brasil diante de atos antidemocráticos partidos de cuba, da venezuela, das arábias... mas, escuta aqui, não é o mesmo pessoal que emudeceu ou foi conivente, daqui de dentro mesmo, com a ditadura brasileira? tem espelho na sua casa? você combateu a ditadura militar brasileira que durou 20 anos, a partir de 1964, e terminou ontem mesmo? você luta pessoalmente pela manutenção da estabilidade institucional que começou com itamar franco, cresceu com fhc e se agiganta com o "ex-comedor de criancinha" lula? ou você acha que lula deve se engalfinhar feito galo de briga com fidel, com chávez, com o "presidente" do iraque?
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pois, olhe, eu acho que, numa rinha, sempre que dois galos do mesmo porte são instigados a se bicar de frente para ver quem vai furar primeiro o olho do outro, seria de bom tom erguermos aos céus nossos próprios olhares caolhos - lá em cima, no topo da arena, vai haver, sempre, um duda mendonça comandando com muito júbilo a algazarra dos galinhos de rinha.
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no período acima, se quiser, pode trocar "duda mendonça" por "antonio ermirio de moraes", "george w. bush" etc. etc. etc.
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no período acima, se puder, troque "galos de briga" por "zé pequeno & mané galinha", "brasil & venezuela", "deize tigrona & tati quebra barraco", "brasil & cuba", "mano brown & mv bill", "brasil & argentina", "grafite & desábato" etc. etc. etc.
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um lugar onde, na semana passada, não houve propriamente uma rinha (embora persistisse, sim, o desconforto pela novidade da relação horizontal - e não vertical - entre os participantes) foi o excêntrico sesc ipiranga, durante a série "romântico ou cafona?". houve nando reis cantando & compondo com wando, houve paulinho moska se integrando com peninha, houve wander wildner rock-rebolando com sidney magal. houve wanderléa deslocada, houve rosana revoltada (ah, as mulheres, esses nossos eternos bodes expiatórios), houve hyldon sem voz.
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atraída pela mistura, uma senhorinha que é fã incondicional (e intelectual) de chico buarque se desabou às várias programações da "romântico ou cafona?" (que tem curadoria do jornalista e escritor carlos calado). durante um debate dominical para discutir todo esse emaranhado, ela, que antes só aceitava e freqüentava o chico, demonstrou sua surpresa por ter adorado wando e magal, por ter se imiscuído naquela euforia, por ter se sentido pessoalmente seduzida por magal. e chegou, a própria senhorinha, a lindas conclusões. disse que vai continuar gostando do buarque de hollanda, mas que a partir dali passou a refletir sobre se os caras cujos shows ela sempre habita (ou seja, nossos eternos heróis mpb de classes abc) não têm lá um certo medo da platéia... viu wando e magal como artistas que não se sentem intimidados pelo público, que o encaram olhos nos olhos, que seduzem, que vão lá no fundo. a senhorinha horizontalizou, mirou wando e magal e conseguiu se ver naquele espelho tão, er, cafona.
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e depois querem me dizer que o brasil não vai pra frente...
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ah, e a peça "transex", em cartaz no coração de são paulão, plena praça roosevelt, por obra & força da companhia dos satyros, também soa como um tratado sobre esses dilemas todos sobre que temos tanto falado. é uma história (real) sobre um travesti que se flagra apaixonado por um extraterrestre e passa a dedicar sua vida & seus sonhos a esse amor transtornado. empregando no elenco dois travestis que são excelentes atores (um deles, por sinal, é o tal que gamou no ser interplanetário), traz o dado incrível & novo em folha de refletir sobre a invisibilidade do travesti, que vai se espelhar na paixão por um et e, mais tarde, desembocar na paixão trágica e suicida por um revólver - lindo, lírico, triste, chocante, real... (mas, hey, ivam cabral & bravos satyros, continuem olhando bem que o brasil está mudando, com o auxílio luxuoso de vocês! nóis tá menos invisíver a cada dia, podiscrê, amizades!)
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onde escrevi "travesti apaixonado por um et", tente ler "brasileiro que quer a deposição do chávez", "analista que acredita no fracasso da cúpula das arábias", "pensador esquerdista que se sente traído pelo pt", "brasileiro apaixonado pelos white stripes", "intelectual que odeia roberto carlos" etc. etc. etc.
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eu ia terminar com uma citação a helio santos, de seu livro "em busca de um caminho para o brasil - a trilha do círculo vicioso", quando fala do brasil como um país que tem dificuldades para se assumir por inteiro. mas é que o livro ficou lá em casa, e eu estou aqui no trabalho. então tá combinado: volta amanhã a este mesmo tópico, que o final de "não o rubrancor da vergonha" estará transformado e helio santos, pluft!, estará visível neste mesmo batlocal. o bom da internet é que ela se move.
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p.s.: eis, eis o que diz o helio santos. "se estivéssemos falando de uma pessoa e não de um país, como fazemos aqui, isso equivaleria a dizer o seguinte: um indivíduo, para funcionar bem, ser feliz e útil, deve assumir a sua missão no mundo. para isso, a pessoa tem que ser aquilo que ela efetivamente é (a psicologia ensina que isso é fundamental na vida de uma pessoa). por que deveria ser diferente para um país, já que este tem em seu cerne a missão de impulsionar seus cidadãos? será visto também que o brasil é um país que não se assume por inteiro. as conseqüências dessa atitude impedem o surgimento de uma identidade nacional autóctone - plenamente vinculada às nossas verdadeiras raízes. sem isso uma nação não é plenamente viável." pronto, tudo se transformou (como cantaria paulinho da viola).
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[* um pirulito para quem lembrar de onde sampleei o título desse tópico... (ei, péra, pára, eu disse "lembrar", e não "dar um google"!)]

sábado, maio 14, 2005

o vulgar para todos

então veio a reportagem até aqui mais ruidosa, que ocupou a capa da edição 335 (de 30 de março de 2005) da "carta capital", sob o título "a vulgaridade em alta". como recordar é viver, vamos a ela, sras. e srs.

(enquanto isso, nas bancas... "um quilombo do século xxi", êêê!

O VULGAR PARA TODOS
Nos bailes funk, nos shows de tevê e no jornalismo, o Brasil perde os limites

por Pedro Alexandre Sanches

A alta classe média paulistana se diverte numa boate moderna da Vila Olímpia, numa madrugada de quarta para quinta-feira. Tudo está onde sempre esteve, exceto por uns poucos detalhes: a música eletrônica agora é cantada em (mau) português do Brasil; o DJ é um dos militantes mais aguerridos da subcultura carioca de morro; na pista, patricinhas e playboys que compõem a fauna habitual da boate Lov.e nessa noite estão descendo até o chão, rebolando o "popozão", acompanhando o "pancadão" do funk carioca do DJ Marlboro.

A cena é exemplar de um novo momento da cultura nacional, em que avança a circulação de informações entre classes sociais que continuam sendo em quase tudo distintas e distantes.

Marlboro conduz cenas até há pouco impensáveis, convocando meninas ricas de cabelo liso e louro a cantar em coro "eu só quero é ser feliz/ andar tranqüilamente na favela em que eu nasci" e contagiando rapazes de roupas de marca e corpos malhados em horas de academia com o grito de guerra "é som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado".

Esticando um velho elástico de tensão social latente, o DJ emite mais um grito de guerra: "Apaguem a luz que nós vamos zoar/ é hora do blecaute, acenda seu celular". Idealizado para que jovens marginalizados dos bailes funk dos subúrbios cariocas ostentem em comunidade seus celulares, o refrão contamina seus pares na elite. "Tigrões" da Vila Olímpia, com corrente no pescoço e gorro de mano na cabeça, e "tchutchucas" do Planalto Paulista, de microssaia ou calça "popozuda" da Gang, obedecem à convocação, coreografando um balé de telefones celulares que se agitam em sincronia sobre suas cabeças.

Mas, junto com os pisca-piscas daqueles celulares, uma série de pontos luminosos de interrogação se acende na testa da cultura brasileira dos anos 2000. Nossa cultura popular desce ladeira abaixo, uma vez mais? Uma suposta vulgaridade fermentada nos estratos mais baixos da população arromba as portas da alta sociedade? Ou, por outro lado, o fenômeno vem tirar do armário e espelhar uma outra vulgaridade, nascida e criada no topo da pirâmide social?

"O mundo que eu mais gosto é o que me recebe bem, aquele em que sou bem-vindo. Se me sentir acolhido, não me importa se quem dança é a patricinha ou a favelada", sinaliza Marlboro, indicando consciência das barreiras sociais que está ultrapassando.

Promotor da Lov.e na noite Pancadão, Ricardo Gonzalez comemora a lotação da casa, documentando a superação de uma resistência inicial à noite funkeira na casa por freqüentadores de elite: "Há um boicote de parte da classe mais elevada, que não aceita freqüentar, mas outra parte já aderiu. Tem gente que vem para zombar, é verdade. Vem porque acha tosco, ruim, mas acaba gostando. O funk é contagiante, descompromissado, debochado".

O fenômeno não se detém nos limites geográficos do País. Freqüentemente vistos aqui como "toscos", Marlboro e alguns dos artistas que ele orienta, como Tati Quebra Barraco (aquela que proclama, orgulhosa, que "eu sou feia, mas tô na moda"), têm feito giros constantes pelo planeta.

"O gringo reverenciar o funk é o mesmo que aconteceu com o samba, a capoeira, a feijoada. O que é a feijoada? As sobras do porco dando efeito diferente das melhores partes do porco", compara Marlboro, fotografando um cenário que contempla orgulho, exotismo e toda uma herança de abismo social.

Também lá fora a cena funk se espraia por outras classes sociais e culturais. A festejada compilação Slum Dunk Presents Funk Carioca saiu na Inglaterra sob a curadoria da dupla Tetine, composta por uma paulistana e um mineiro, ambos de classe média. Sempre ligada ao experimentalismo musical, a dupla radicada em Londres acaba de aderir de vez ao funk carioca, lançando no Brasil o CD Bonde do Tetão, que usa o linguajar debochado e explícito do gênero para criticar os setores médios e altos da sociedade daqui.

"A garota de Ipanema está morta e enterrada. Hoje a garota é da Cidade de Deus e se chama Deise Tigrona", provoca Eliete Mejorado, metade feminina do Tetine (a funkeira "tigrona", por sinal, foi a convidada especial da última quarta no Pancadão da Lov.e).

A professora e pesquisadora em comunicação Ivana Bentes diz não crer na invasão de modismos de periferia como agente de uma vulgarização da sociedade. "O que se costuma chamar vulgar muitas vezes é questão de gosto de classe social. O que é um novo rico gastando em Miami, não é tão ostensivo quanto? Em vez do funk não poderia ser o country?", indaga, passando de raspão pelos caubóis brasileiros que pululam na novela global América.

Ela tenta compreender o fenômeno de assimilação do funk carioca pelas classes médias e altas: "Tati Quebra Barraco tem um discurso de liberação sexual que dá de dez em qualquer feminismo. Professa uma sexualidade autônoma que é muito antenada com o discurso de meninas da classe média".

Seu depoimento reverbera no de uma dessas meninas, a cantora, atriz e apresentadora Preta Gil, filha do ministro da Cultura, Gilberto Gil, que reúne atributos de patricinha e de funkeira e causou desconforto há dois anos ao se atirar à mídia com um disco ancorado por fotos em que aparecia nua, mesmo não possuindo um corpo que correspondesse a medidas-padrão de beleza.

"Tenho em comum com as funkeiras o fato de acabar passando uma imagem um pouco confusa. Elas têm essa necessidade de se auto-afirmar, de falar de sexo e desejo, é um pouco uma revanche das mulheres contra o machismo. Tati Quebra Barraco, mesmo com esse discurso, é uma mãe de família que batalha, tem seu marido, quer emagrecer, faz lipoaspiração", analisa Preta.

"O papo de 'tô feia e tô na moda' é legal, mas no fundo não é real. Nós assumimos o que somos, mas isso não quer dizer que a gente não quer melhorar", completa, afirmando que entende que recorreu a várias lipoaspirações e cirurgias plásticas também, em parte, como forma de "autoflagelação".

Preta sabe que representou nos últimos anos também um outro segmento: o da exposição pública de toda e qualquer intimidade, que vem ajudando a forjar a cultura brasileira dos anos 2000 sob moldes quase sempre de imagem, quase nunca de conteúdo.
Crítica e autocrítica se somam no discurso atual de Preta, que debate sua própria relação com a mídia fazendo trocadilho com os títulos de dois programas vespertinos de fofocas na TV que se apossaram de sua figura pública, O Melhor da Tarde e A Casa É Sua: "Comecei despreparada, não era algo pensado ou marqueteiro. Minha superexposição foi genuína. Dei o material numa entrevista de que me arrependo à revista Vip. Aí há a imprensa que pega e deturpa, me vi retratada em O Pior da Tarde e A Casa Não É Sua como a gordinha homossexual que fez suruba na rua. Pensava 'meu Deus do céu, para que isso?'. Foi um choque ver como o país ainda é moralista e como eu entreguei o assunto de bandeja para a mídia."

O psicanalista Jurandir Freire Costa traduz à CartaCapital a atual voga da superexposição da vida privada: "De uma maneira geral, as pessoas querem encontrar na vida dos outros exemplos para entender e resolver questões de suas próprias vidas. O erro é que essas pessoas que se expõem são as menos indicadas para servirem como parâmetro, como exemplo de vida. Elas, em geral, são as mais superficiais, as que menos refletem sobre seus problemas. Cultivam a cultura do espetáculo onde não há a prática da reflexão".

Para a psicanalista Maria Rita Kehl, "Os 'príncipes' e 'princesas' da cultura de massas, ao abrir para a imprensa e a tevê sua vida íntima – se é que é íntima –, trabalham de graça para fazer as pessoas acreditarem que participam da festa deles". E completa: "Assim é possível recobrir todos os momentos de nossas vidas banais com as imagens das vidas supostamente interessantes dos ídolos de massas. Digo supostamente, porque você pode imaginar coisa mais tediosa do que um fim de semana no Castelo de Caras?".

Atuando num meio permeável às imagens apelativas, o publicitário Washington Olivetto é daqueles que vêem, sim, sintomas de uma nova arrancada da baixaria no Brasil de hoje. "Parodio a frase de Andy Warhol, que dizia que no futuro todos seriam famosos por 15 minutos: nos anos 2000, todos serão vulgares por algumas horas", compara ele, que freqüentou o epicentro dos exageros na recente guerra sem limites entre marcas de cerveja.

Olivetto assinala o ponto e dá o contraponto: "Também não podemos negar que um pouquinho de vulgaridade tem que haver e é bom que haja, senão o que resulta é um quadro social muito chato. O que não pode é a vulgaridade imperar, como vejo acontecer agora. Acho que logo vem a ressaca".

O professor e pesquisador em comunicação Laurindo Leal Filho faz sua avaliação sob a ótica do caldo "cultural" da televisão brasileira: "Vejo que a tevê incorporou um rebaixamento de expectativas de grande parte da sociedade. Isso pode ser cíclico, mas acredito também que estejamos num ciclo um pouco mais duradouro, que vem desde o meio dos anos 90, com aqueles programas tipo Aqui Agora e Programa do Ratinho.

Ele comenta o fôlego do formato de reality shows, que se auto-recicla com as altas audiências do Big Brother Brasil 5. Desde a edição de 2004, o programa de voyeurismo de celebridades instantâneas (e efêmeras) vem se adaptando à experiência de laboratório de colocar em conflito representantes de diferentes camadas sociais e hoje discute até orientação sexual, por intermédio do participante Jean Wyllys, homossexual assumido.

"O BBB eliminou a dramaturgia, só tem edição, mas é muito pobre em termos de produção de tevê. Pode incluir e trazer aceitação a personagens gays, pobres e nordestinos, mas isso é irrisório perto da vulgaridade que o caracteriza. É como quando se fala de merchandising social em novelas: é muito pouco para a Globo pagar o mal que já fez à sociedade", opina Leal Filho.

De dentro do próprio sistema televisivo saltam tímidas vozes rebeldes, como a do dramaturgo Lauro César Muniz, para quem "a telenovela se sofisticou tecnologicamente e esvaziou o conteúdo temático".

Autor de novelas rebuscadas como O Casarão (1976), ele acaba de romper com a Globo após anos de geladeira e deve vir a escrever novelas na Record. E divaga: "Com incrível habilidade o sistema absorveu e o megashow vulgarizou todos os ícones, de variadas origens e ideologias. Os guerrilheiros inspiraram trajes que desfilam nas passarelas, Che Guevara foi para a Broadway e pode virar até marca de perfume que ninguém vai se surpreender".

O exemplo da tevê é pescado pelo músico Max de Castro para descrever seu desconforto: "Hoje qualquer pessoa aparece fazendo qualquer coisa na tevê, e tudo tem o mesmo peso. Antes um artista podia ser comparado com outro que fizesse algo parecido, hoje ele tem que concorrer com a eliminada da semana no Big Brother".

Filho caçula do cantor Wilson Simonal (que viveu extremos de ascensão e queda nos anos 60 e 70), Max testa uma autocrítica de sua própria classe: "O foco se perdeu também por culpa dos artistas, que hoje resolvem fazer disco quando querem trocar de carro, comprar apartamento. Uma coisa ruim de hoje é a obsessão pelo sucesso, por saber quanto cada um ganha. Em conversa reservada, artista só fala isso, 'peguei um disco de platina', 'fiz 300 shows neste ano'".

Em seu novo CD, Max de Castro, ele elaborou uma crítica sutil em parceria com Lulu Santos, que sugeriu o mote da canção Sempre aos Domingos, em parte estimulado por uma desavença com o apresentador Fausto Silva, apontado ao lado de Gugu Liberato, Ratinho e João Kleber como um dos líderes do ranking do mau gosto na tevê pela campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania. "Eu não posso acreditar/ que não há nada melhor pra fazer/ numa tarde de domingo que ver televisão", diz a letra do sofisticado funk não-carioca, que Lulu ajudou a compor, mas cuja interpretação deixou a cargo do parceiro menos conhecido e menos popular.

Outro que centra fogo no Domingão do Faustão e em seus pares é Rafael Borges, ex-empresário da banda roqueira dos anos 80 Legião Urbana. "Faustão é pernicioso. Fica incensando uma determinada atriz, dizendo que é talentosíssima e está num momento de glória, e termina fazendo a moça dançar com a versão reformulada do É o Tchan. As pessoas são coniventes, Renata Sorrah vai ao Faustão. É horrível Pedro Bial ficar naquele negócio de Big Brother, o cara é especialista em Guimarães Rosa, não dá."

"É tudo só vender, vender, vender, há uma falência de valores mais humanistas em favor do lucro. Só se pensa em comercializar show, em jabá, em MTV. É só gente calada e conivente. Não se fala mais de concepção, de obra. Era um prazer para a Legião Urbana conceber turnê, dizer não ao Faustão", compara, em tom nostálgico.
Ele salva a pele do programa Pânico na TV. "Eles são grosseiros, mas colocam no lugar essas celebridades que estão se achando muito, essa Daniela Cicarelli", diz, referindo-se a outro episódio recente de vulgaridade: a exploração exaustiva, pelos humoristas da Rede TV!, da "revelação" de que a modelo recém-casada com o jogador de futebol Ronaldo teria seis dedos num dos pés.

Um cenário complexo vai se compondo. No Brasil dos anos 2000, as casas ricas e supostamente felizes da revista Caras convivem com as atividades múltiplas de um personagem como Alexandre Frota que se desdobra entre celebridade de reality shows no Brasil e em Portugal, empresário de funk e ator pornô – sem por isso cair à margem da mídia.

No Brasil dos anos 2000, o gesto obsceno dirigido pelo jogador Fininho à torcida e os pés famosos de Ronaldo e Daniela Cicarelli se equiparam ao tititi que envolveu no início do mês o compositor e escritor Chico Buarque, que se viu imerso no mundo cão ao ser flagrado beijando uma mulher casada numa praia carioca.

As revistas de variedades Quem e Contigo comandaram o espetáculo na mídia, adquirindo o pacote dos fotógrafos free-lance por cerca de R$ 1.500 (o preço sairia por volta de R$ 3.500, se as fotos fossem oferecidas com exclusividade a um veículo). A Veja deu continuidade ao alarde, criticando jornais que haviam decidido não publicar as "notícias" sobre a vida particular do artista.

Um assessor de Chico que prefere não se identificar apimenta o caldeirão das responsabilidades pela invasão de privacidades e de limites, citando a informalização do trabalho jornalístico e comparando o atual loteamento da orla carioca entre os paparazzi ao trabalho dos flanelinhas que "guardam" automóveis nas ruas das grandes cidades brasileiras.

Para o professor e pesquisador em comunicação Micael Herschmann, organizador do livro Mídia, Memória e Celebridades e autor de estudos sobre o funk carioca, Chico não deixa de fazer parte desse cenário: "A proposta dele, a longo prazo, é não operar no registro da celebridade. Mas por isso mesmo, por não quererem essa posição, personalidades reservadas como Chico, Rubem Fonseca ou Greta Garbo acabam também constituindo mitos. Produzem imagens raras, que agregam um valor maior quando aparecem".

Maria Rita Kehl analisa o caso: "A exposição pública de Chico só nos parece mais escandalosa porque ele, talvez até por sua origem de classe, despreza e evita a todo custo a breguice de tal exposição. Ele é mais fino, mais sofisticado do que Ronaldo e Daniela, por exemplo. Fora isso, como disse Freud ao conhecer o Einstein, nosso querido Chico 'é um pobre diabo como todos nós'. Distraído pelo amor, ou pelo desejo, marcou bobeira – como todos nós".

Jurandir Freire Costa expõe opinião contundente: "É um caso de voyeurismo puro. Esse era um comportamento restrito à imprensa sensacionalista, que se esgota por si só e em si mesma. Nesse caso, foi absorvido pela imprensa em geral, com raras e honrosas exceções. É um dos sintomas mais execráveis dessa vulgaridade, e foi ocorrer logo com um homem que nunca cultivou a celebridade e que sempre se apresentou ao público pela produção do seu espírito. Houve, também, uma exposição inclemente de uma família".

E o psicanalista conclui: "O jornalismo aí ficou próximo da pornografia. Uma coisa baixa, canalha até".

Na faixa de personalidades avessas ao esvaziamento da própria imagem, parecem se localizar artistas como Maria Bethânia e Marisa Monte, que, por exemplo, não freqüentam programas de tevê.

O empresário de Marisa Monte, Leonardo Netto, relata o caso de exceção: "Não é que ela consiga escapar disso. Se é personalidade pública, está exposta a isso. Mas ela não fica em badalação, não dá mole. Acho muito triste ver que a gente está indo para um caminho desses. É resultado de malharmos tanto o corpo e tão pouco a mente. Os meios de comunicação também não podem se eximir de sua responsabilidade pelo que oferecem ao povo".

Outro segmento em que o exibicionismo e o comportamento dos meios de comunicação rendem material de trabalho e críticas é o da moda. Fugindo da banalidade de um meio que à mesma época absorvia o funk carioca e as câmeras da novela global Celebridade, o estilista Jum Nakao causou uma avalanche de reações negativas na imprensa de moda quando ironizou, na São Paulo Fashion Week de 2004, a futilidade daquele ambiente, propondo uma coleção de roupas de papel, que eram rasgadas ao final de um desfile que fugia do "mundinho" e fazia referências diretas às artes plásticas.

Nakao também co-habita crítica e autocrítica: "Em moda se usa muita cortina de fumaça, nariz de palhaço, confete, besteira pseudo-artística, sexualidade apelativa. Cada vez mais a moda depende de celebridades, escândalos, coisas que agregam um valor falso, não resultam em leitura nenhuma e apontam para um vazio enorme. É tanto verniz que nem se vê mais a obra. Hoje o trabalho de moda é raso, também muito em função de pessoas da imprensa que têm os estilistas quase como reféns e estão mais preocupadas com quem está nas primeiras filas dos desfiles que com a obra".

Nascida na alta classe média e criada na sofisticação da bossa nova, a cantora Beth Carvalho mudou o curso de sua história e se tornou desde os anos 70 herdeira de uma linhagem de nobreza do morro e do samba de raiz que remonta a Nelson Cavaquinho e Cartola. Apegada à nobreza da tradição, ela faz sua avaliação sobre o momento atual: "Na população brasileira, principalmente nos morros cariocas e nas favelas paulistas, o samba não é mais majoritário, infelizmente.O funk e o hip hop tomaram conta. Esses gêneros, não trazem nenhum predicado à música no Brasil, mas sim os desejos e conceitos do mundo capitalista".

No passado, Cartola celebrou um ideal de morro onde "ninguém chora, não há tristeza", aproveitado com ironia em uma das cenas mais violentas do filme Cidade de Deus (2002). O extremo mais radical da inversão atual se chama "proibidão", um subgênero do funk carioca ainda confinado às favelas, até porque remete de forma crua e cruel ao cotidiano de violência e crime plantado no coração das periferias cariocas.

"O proibidão é muito chocante, nunca ouvi nada tão violento em música, com alguns achados de poesia, de pulsão de morte", diz Ivana Bentes, que desenvolve seu trabalho em proximidade com as favelas. "Entramos num outro campo, que é o da cultura do crime, mas mesmo aí tenho muita dificuldade de botar rótulo de vulgar. Eles estão dizendo coisas profundas, as músicas são um massacre, ali você entende todo o mecanismo da violência. A questão é se quero ou não saber quem é esse cara que é meu inimigo social – o traficante, o bandido. E eu quero conhecer esse cara", decide.

Ivana começa a fazer a curva que nos levará de volta ao início desta reportagem: “"or que não posso consumir proibidão, mas posso consumir Arnold Schwarzenegger, Duro de Matar 5? A pulsão de morte não está só na favela, está no capitalismo, no mapa de desigualdade social, na relação empregado-patrão. A única novidade em termos de cultura brasileira contemporânea é que as classes inferiores começam a se expressar em pé de igualdade com as superiores. O preconceito está sendo rompido de dentro, da favela para fora. Essa nova consciência social não veio pela universidade nem pelo Estado. Veio pelo hip hop, pelo funk, pela própria favela, que pode até ser modelo de política pública. O Estado aprende mais com esses movimentos comunitários que o contrário."

"É preciso sair dos dois pólos, do maniqueísmo. O garoto rico e o filho do favelado, o diretor de empresa e o traficante, todos estão dentro do mesmo caldo. O caldeirão que está prestes a explodir é o da pobreza. E ele não explode justamente porque existem esses campos de vazão, de troca, de permeabilidade", ela reflete, como se dançasse ao mesmo tempo com os manos da Cidade de Deus e com os playboys na terra rica da Lov.e. Nesse rebolado, o Brasil vai mostrando suas muitas caras.

quinta-feira, maio 12, 2005

planet earth is blue?

posso transcrever o primeiro trecho do principal editorial de hoje na "folha de são paulo"?
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"a cúpula américa do sul-países árabes arquitetada e patrocinada pelo governo do presidente luiz inácio lula da silva transcorreu como previsto: foi uma bravata diplomática que nada acrescentou à política externa brasileira. abriram-se, como esperado, poucas perspectivas para negócios e registrou-se caudalosa retórica geopolítica - do tipo, infelizmente, que pouco ajuda o relacionamento do país com as nações que mais importam."
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posso transcrever o último trecho do artigo de eliane cantanhede, no mesmo dia, no mesmo jornal e na mesma página?
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"o que parecia excesso de pretensão, raiando o ridículo, começa a fazer sentido. os países 'em desenvolvimento' na ásia, na áfrica e nas américas, apesar dos pesares, da pobreza, dos regimes instáveis, já conseguem ter pautas e interesses comuns. a globalização era um por todos e contra todos e não parece mais tão simples e tão linear assim. a cúpula de brasília não muda o mundo, mas serve de aviso para quem quer mandar sozinho no mundo."
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cê tá entendendo????
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em qual desses dois planetas você vive? no do editorial, da "bravata diplomática"? "relacionamento do país com as nações que mais importam"?????????? tipo assim quais? estados unidos, estados unidos e estados unidos? aaaaaaaaaaaaaah!!!
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em qual desses dois planetas você vive? no do outro artigo, dos "interesses comuns"? "quem quer mandar sozinho no mundo"??? tipo assim quem? os estados unidos? aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah...
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você prefere a teoria da dependência? ou a teoria da independência? planet earth is blue? is there something you can do?
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enquanto (quase) ninguém parecia querer enxergar o luxo da horizontalidade da cúpula de marginalizados latino-americanos e orientais, aqui em são paulo um punhado de meninos escapava da febem pelo esgoto e desembocava no aprazível rio tietê, atravessando-o a nado para fugir das garras do estado paulista. escuta, eu preciso saber urgentemente, e ninguém me conta: o que aconteceu com esses meninos, em termos físicos e psicológicos, após chafurdarem no esgoto e tomarem banho de bosta no tietê? em que planeta nós estamos vivendo, hein????
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em pausa para mais um intervalo anticomercial, eu gostaria de recomendar a leitura de outra reportagem minha (só vou colocar no blog daqui a um tempo), na "carta capital" que chega às bancas amanhã. é daquelas de que me orgulho profundamente, e aproveito para transcrever um trecho de entrevista que não estará no texto (porque se desviava da espinha dorsal do tema e não era passível de ser resumido em pouquíssimas palavras). a fala pertence a josé vicente, reitor da primeira faculdade brasileira a destinar no mínimo 50% de suas vagas a estudantes negros. cê tá ouvindo o zé vicente?
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"pessoas como lula a gente consegue ler melhor através de seu lado emotivo. os donos do poder, não - os ricos não choram. uma pessoa simples, do povo, é mais original, deixa a emoção falar. o choro de lula na áfrica deve ter sido uma manifestação original de algo que ele sentiu mesmo. mas meu grande lamento é saber que é um choro só dele, não do estado brasileiro. as lágrimas já secaram, ninguém lembra mais. lula, como nós, é refém dessa situação. fernando henrique cardoso foi o presidente que mais entendia de negros no país, ele sabe tudo sobre isso - mas não deu um pio. deixou parado o projeto de um programa nacional de políticas afirmativas. o decreto está lá, para o caso de lula querer fazer algo afirmativo além de chorar. ele não gosta tanto de medida provisória? então manda uma de negrão aí."
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ah, o nome habib da escola dele é "universidade da cidadania zumbi dos palmares".

quarta-feira, maio 11, 2005

dupla identidade

depois foi a vez, na "carta capital" 332, de 9 de março de 2005, de reportagem sobre o ano do brasil na frança, escrito "a quatro patas" por mim e pela ana paula sousa. também escrevi um "box" dizendo quem é que é esse tal de andré midani. oui, oui...

[aliás, já que o assunto envolve ministério da cultura... que história é essa de agora o governo lula querer inventar loteria para tudo, hein? é loteria da cultura chegando, depois loteria da educação ("loteria da educação"????!?), de não sei mais quem... acham que o jeito de causar de-sen-vol-vi-men-to a um país é abocanhando na fezinha do povão, é? lamentável...]

DUPLA IDENTIDADE
Celebrado na França, o Brasil tenta mostrar-se moderno, mas os estereótipos verde-amarelos ainda resistem

Por Ana Paula Sousa e Pedro Alexandre Sanches

Protagonista de uma homenagem que se estenderá pelo ano todo na França, a cultura brasileira defronta-se, mais uma vez, com as próprias contradições. Mesmo alternando velhos estereótipos com uma abordagem mais moderna do País, o Ano do Brasil na França faz avançar uma complexa discussão sobre identidade nacional.

De um lado, os franceses ainda grudam a imagem do Brasil ao tabuleiro da baiana e ao rebolado da mulata. Do outro, os brasileiros embarcam no avião retratos mais sóbrios, como as placas de ferro do escultor Amilcar de Castro (1920-2002) e os sons inventivos do multiinstrumentista Hermeto Pascoal.

Apelidado de Brésil Brésils, o evento foi proposto pelo governo da França – que já fez o mesmo com países como China e Polônia – e incluirá mais de 400 atrações em todas as áreas culturais: exposições, shows, espetáculos de teatro e dança, cinema, literatura etc.

Do Tesouro francês sairá 1 milhão de euros. Dos cofres do Ministério da Cultura (MinC), estão saindo R$ 30 milhões e, de empresas estatais, R$ 10 milhões. "O investimento público é como a locomotiva do trem. Apenas puxará o Ano, mas haverá também dinheiro de empresas", aposta Marcio Meira, secretário de Articulação Institucional do MinC.

"A contribuição francesa não se dará apenas com dinheiro do governo. Estamos disponibilizando todos os espaços para o Brasil, de museus a casas de espetáculos. E vocês, no Brasil, têm a Lei Rouanet", cita, com desembaraço, Jean-François Chougnet, comissário-geral do lado francês.

Se Chougnet ouvisse as declarações do comissário-geral do lado brasileiro, André Midani, não se animaria tanto com as moedas que podem pingar da torneira da lei de incentivo fiscal. "Uma parte da iniciativa privada comporta-se bem, mas há uma massa ainda muito conservadora, que só quer saber se vai ter retorno financeiro", declara Midani. "No melhor dos mundos, metade dos investimentos no Ano viria da iniciativa privada. Mas, na realidade, talvez estejamos próximos de 40% do ideal."

As cifras até agora tornadas públicas (que deixam de fora os ainda não contabilizados recursos privados) podem passar a impressão de fragilidade. Mas, quando se folheia a programação, a sensação é outra: o Brasil estará, sim, fortemente presente no país. Conselheiro da embaixada do Brasil em Paris, o diplomata Rui Amaral mostra, com números, que a França está para lá de animada com o que vem por aí.

De acordo com Amaral, apenas em janeiro foram publicadas 21 matérias em jornal, 96 em revistas e mais umas tantas horas em tevê e rádio. "Há um movimento imenso ao redor do Ano, uma grande curiosidade a respeito do Brasil", aposta o representante do Itamaraty. E o que receberão os franceses?

"Esperamos e pretendemos mostrar um Brasil moderno. Quando um país quer vender sua modernidade, seja ela tecnológica, seja econômica, ele utiliza sua cultura como ponta-de-lança", define Midani. "O público francês desconhece por completo o Brasil. Conhecem os arquétipos, que não vamos recusar. Mas pretendemos complementar esse panorama com uma realidade mais ampla."

Marcio Meira exemplifica: "Não queremos reforçar as imagens preconceituosas. Em vez da mulata seminua sambando, por que não apresentar o samba de raiz?" Mas a missão não será simples. O jornal Le Monde deixa antever que espera tambores e gingado: "Dançaremos (sic) a 'capoeira' enquanto os 'trios elétricos' desfilam na Côte d'Azur".

A revista Paris Match, que dedicou um número ao Brasil, colocou Marisa Monte na capa e não se restringiu ao óbvio – o que não impede que, nos anúncios, apareçam os clichês de sempre, com baianas enfeitadas de modo caricato e praias cheias de coqueiros.

A questão subjacente a isso tudo é, claramente, da imagem que o Brasil possui e da imagem que gostaria de possuir. Ao serem "recebidos" por um país como a França, os brasileiros, sem querer, adotam uma postura de gratidão. É o próprio Midani quem reconhece que as relações, por enquanto, não são de troca recíproca. "O Brasil, por debaixo desse sorriso grande e dessa bonomia, tem sido um País muito insular, tímido, com um grande complexo de inferioridade."

A historiadora Lorelai Kury, doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, destaca a necessidade de desenvolver um olhar menos pautado pelo exotismo nas relações entre a França e o Brasil. Lorelai observa que as imagens de alegria, vivacidade e sensualidade ainda são vistas como inatas dos países tropicais. "O símbolo da França é a Torre Eiffel, o dos EUA, a Estátua da Liberdade. Aqui, são montanhas ou mulheres peladas, imagens que não dependem de aptidão, do esforço humano", diz Lorelai.

E esse olhar estrangeiro, segundo a historiadora, foi interiorizado por parte das elites brasileiras. Mas Lorelai ressalta que, ao menos nos meios científicos, acadêmicos e culturais, a superação de tal complexo de inferioridade já é uma realidade. Esse deve ser o foco de seminário da Fiocruz no Ano do Brasil na França, que discutirá as relações científicas entre os dois países, e ainda de outros tantos debates agendados para o evento.

No campo da cultura, porém, a mudança de postura é mais complicada. As atividades nas áreas da música e do cinema desnudam desencontros entre o que os franceses acham que o Brasil tem e o que o Brasil acha que tem.

País de cultura cinematográfica, a França aproveitou o Ano para esticar os olhos às imagens produzidas no Brasil e convidou o País para mais de 30 festivais. Acontece que os organizadores voltaram os olhos para trás. E quase estancaram seu interesse nos anos 60.

Apesar de a Agência Nacional de Cinema (Ancine) ter selecionado 108 títulos feitos nos últimos dez anos, poucos deles caíram bem no paladar dos franceses. "Eles têm mais interesse pelo cinema de autor, apesar de, mesmo lá, esse conceito estar sob discussão", pondera Jom Tob Azulay, da Ancine. "Os organizadores dos festivais franceses tendem a tomar a pesquisa de linguagem como um critério de escolha", diz Azulay.

Que o diga Dominique Bax, diretora do Festival de Bobigny, nos arredores de Paris, que será aberto no dia 16. "O que conhecemos do cinema brasileiro é Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, e alguns outros filmes do Cinema Novo", confirma Dominique.

Por solicitação dos brasileiros, ela abriu exceção para oito filmes atuais que, de alguma maneira, se cruzam, tematicamente, ao que produziu a geração de Glauber, como Amarelo Manga, de Cláudio Assis, e Latitude Zero, de Toni Venturi. "Na França, hoje, conhecemos apenas Walter Salles e Cidade de Deus (de Fernando Meirelles)", confirma.

Dominique pontua que, pelo que viu até agora, tem a sensação de que o cinema brasileiro está tentando aderir a uma lógica industrial de sucesso. "Em geral, filmes feitos sob esse princípio interessam pouco aos estrangeiros", observa. Para contornar esse desinteresse dos franceses por parte da ficção produzida recentemente no País, os organizadores acabaram por apostar várias fichas nos documentários – mais autorais e mais próximos da realidade social brasileira.

"Os estereótipos não são só carnaval e futebol. Há também o de que cinema, no Brasil, é só o Cinema Novo", reflete a historiadora Moema Salgado, coordenadora do setor Audiovisual no comissariado. "No fim, o que mais tem interessado a eles é a produção documental."

O impactante Ônibus 174 foi, até agora, o campeão de solicitações. E, ironicamente, o filme dirigido por José Padilha acaba por ressaltar o caçula dos estereótipos. "O Brasil, na Europa, é carnaval, futebol e também violência urbana", atesta Chougnet. "Não reforçar essa imagem de violência é uma preocupação de todos nós, mas é natural que ela apareça nos filmes, por exemplo."

Além dos filmes isolados em festivais, a área do audiovisual terá algumas homenagens especiais ao inevitável Glauber, ao experimental Júlio Bressane, ao documentarista Eduardo Coutinho, ao multinacional Walter Salles e ao vanguardista Alberto Cavalcanti.

Se a lista de diretores homenageados resume bem o interesse dos franceses e sua idéia do que realmente importa no cinema brasileiro, o panorama musical também não fugirá dos nomes inevitáveis. Pelo viés da imagem brasileira fixada desde os anos 60 na música popular, estão programadas apresentações de artistas como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gal Costa e o próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil.

Por outro lado, os estereótipos de alegria tropical estarão garantidos em concertos de nomes brasileiros muito populares na Europa, como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Carlinhos Brown.

O comissário André Midani diz saber que a escalação causará "chiadeira" no Brasil: "Aqui já sei que vão dizer que é 'só Bahia', 'baianada'. Mas não dá para botar artistas reflexivos num palco para 40 mil ou 50 mil pessoas. Negociamos um palco como o do Olympia para Marisa Monte, mas um show ao ar livre precisa de Carlinhos Brown, Gil, Ivete Sangalo. Brown reuniu 300 mil pessoas em Barcelona, não dá para negar isso".

Midani admite, aqui, um certo conflito entre a identidade que o Brasil quer ter e a imagem que de fato o País transmite. "Inicialmente, pensei que poderia influenciar na seleção de projetos que recebemos, mas não fui muito bem-sucedido. Ouvi reações como 'muito bem, mas esse artista eu não conheço', tive que dar marcha atrás."

Mesmo assim, o Brasil conseguiu emplacar uma galeria eloqüente de artistas novos (e ainda desconhecidos na França, como é o caso de Maria Rita, filha de Elis Regina) e alternativos. Desse último grupo saem nomes que escapam dos estereótipos samba-axé, porque são modernizadores, como DJ Dolores, Marcelo D2, Nação Zumbi, Silvério Pessoa etc., ou primam pelo formalismo musical, como Hermeto Pascoal, Naná Vasconcelos, Paulo Moura, João Bosco, Yamandú Costa, Mônica Salmaso etc.

A diversidade apontada por Midani como objetivo a ser atingido se apresenta nos extremos que vão do samba de raiz, extracarnavalesco (Velha Guarda da Portela, Dona Inah) ao polêmico funk carioca, representado pelo DJ Marlboro, que aqui costuma ser apontado como primário, mas vem influenciando crescentemente as platéias européias.

Um curioso espelho forma-se, enfim, entre o cinema industrial que não empolga os comissariados franceses e a música popular, que deve se expor lá fora em toda a sua diversidade, mas alijando em larga escala a cada vez mais fraca indústria fonográfica nacional.

Diz Midani, do alto da vivência como homem egresso do círculo das grandes gravadoras (quadro na pág. ao lado): "Seria melhor se tivéssemos uma indústria otimista, dinâmica, que se integrasse a essas iniciativas. Mas ela é acuada, age só para tentar não perder mais ainda. Não chegamos nem a tentar parcerias. O processo passou à margem das grandes companhias".

A Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), unificadora da grande indústria fonográfica local, dá sua versão, por intermédio do diretor-geral, Paulo Rosa: "Fomos contatados por telefone por Midani em meados do ano passado. Ele nos solicitou DVDs de vários artistas (cinco unidades de cada), no que foi atendido prontamente. Depois desse contato, a ABPD não foi mais procurada por ninguém".

Mas Rosa contemporiza, festejando a presença da música brasileira no evento: "Entendemos que a música brasileira estará muito bem representada".

Se no cinema a ala mais "industrial" não agradou aos franceses e se na música a indústria foi ignorada pelos organizadores brasileiros, nas outras áreas os desencontros parecem ter sido menores. Apesar do susto pregado pelo fim da BrasilConnects, de Edemar Cid Ferreira, os projetos de exposições, sob coordenação de Elisa Leonel, seguem adiante.

Haverá as grandiosas, como Amazônia Brasil e As Artes dos Índios do Brasil, ambas em Paris, e mostras de grande relevância espalhadas por diversas cidades, como as de Cicero Dias, Frans Krajcberg, Iberê Camargo e Adriana Varejão, entre muitos outros. Caberá a Tunga uma das participações mais ousadas. "Ele levará, de junho a setembro, para a pirâmide do Louvre, a instalação A Luz dos Dois Mundos", conta Elisa.

Fica para junho a inauguração do Espaço Brasil, único projeto assinado pelo MinC, que ocupará 2,6 mil metros quadrados, no Carreau du Temple, em Paris. "A China iluminou a Torre Eiffel de vermelho; a Índia botou um elefante para passear pelas ruas; nós decidimos criar espaço, que fará uma espécie de convite de 'venha ao Brasil'", diz Daiana Castilho Dias, coordenadora do Espaço.

O Espaço Brasil vai congregar 13 estados brasileiros representados em cinco grandes mostras. "O espaço foi montado como modelo de divulgação do Brasil no exterior. Vai abrigar negócios também, como estandes de moda-praia e outros de degustação de frutas, cachaça e café de grife. O Banco do Brasil montará um banco de negócios, com uma carteira de exportações aberta."

De acordo com Marcio Meira, estimulada pelo Ano do Brasil na França, a rede de lojas Printemps já comprou 40 milhões de euros em produtos brasileiros, e a Casino, R$ 70 milhões. "Além dos negócios, o Ano pode contribuir para o aumento do turismo no Brasil", aposta o secretário do MinC.

Entre os cifrões do comércio e os símbolos mais discretos da cultura nacional – que não são coloridos por tons verde-e-amarelos –, resta ver para que lado penderá o Brasil na França. Estereótipo, todos sabem, é mais fácil de vender. A julgar pela programação, o Brasil ainda cede a estereótipos, mas tenta escapar desse enganoso atalho.

DE DESERTOR A COMISSÁRIO
Ex-chefão de gravadoras, Midani coordena o Ano do Brasil

Choque cultural é algo que sempre fez parte da história do homem que ergue pelo lado brasileiro o Ano do Brasil na França. Nascido na Síria há 72 anos, André Midani tornou-se francês antes dos 3 anos de idade, e não teve relação pacífica com as próprias origens: "Eu tinha vergonha de ser filho de árabe. Falsificava esse dado, inventava mentiras para afastar esse dado de mim".

Aos 22 anos, querendo fugir do alistamento francês à Guerra da Argélia, veio para o Brasil como desertor, segundo suas palavras. Aqui, iria se tornar um dos principais executivos da indústria fonográfica local. Como diretor da antiga gravadora Philips, esteve por trás da ascensão de artistas como Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Raul Seixas e dezenas de outros.

Data dessa época a relação com o hoje ministro da Cultura, Gilberto Gil, que acabou designando como comissário-geral brasileiro seu ex-patrão.

Midani participou ativamente do círculo de virtudes e vícios da indústria fonográfica dos anos 70 e 80. Há dois anos, já aposentado, veio a público relatar sua participação em esquemas viciados das gravadoras, como pagamentos para impor sucessos musicais em rádios e tevês – o chamado jabaculê.

Poderia ser visto, a gosto do freguês, como um agente impulsionador/modernizador da cultura popular brasileira, ou, por outro lado, como explorador desses mesmos valores. Em 2005, surpreende-se que um megaevento de caráter assumidamente comercial venha a funcionar como oportunidade de reconciliá-lo com a França, exatos 50 anos mais tarde.

"Acho que você sempre migra contra a vontade e, ao migrar, rompe com o passado para não sofrer. Rompi e fiquei rompido, até agora", resume.

Ao mesmo tempo admite e nega uma ligação do tipo colonizado-colonizador em trocas como as que acontecerão por conta do Ano do Brasil. "Um problema que, ao que eu saiba, ainda não foi resolvido é o do colonialismo do brasileiro pelo próprio brasileiro. Enquanto o colonizador interno não for resolvido, vai haver sempre um cancerzinho aí nos levando a posições colonizadas", reflete.

Midani reconhece que as relações, por ora, não são de troca recíproca. Mas, defendendo sua atuação presente, afirma que a França nunca foi colonialista em relação ao Brasil: "O pensamento francês tem uma grande importância na história do Brasil, mas o que pouco se sabe e é ignorado é que a recíproca também é verdadeira".

E toma o exemplo norte-americano para elaborar uma possível receita do que acredita que o Brasil precisa fazer para vencer o tal complexo de inferioridade: "Os Estados Unidos foram colonizados pelos ingleses e não se entendem como colônia. Dialogam com os ingleses de igual para igual".

Por isso, diz que evoca conselho de sua mãe ao menino Midani para negociar com empresários brasileiros e franceses: "'Bote seu terno mais bonito porque hoje vamos à igreja', ela dizia. Hoje já temos terno, meia e sapato, falta-nos a camisa e a gravata". Está falando do Ano do Brasil na França – e de tudo o mais. PAS