quinta-feira, outubro 27, 2005

o lado b do lado a do lado b

lado b
o único show das cercanias do tim festival 2005 a que me rendi foi o do television, que eu amo tanto, tanto, tanto. sabe aquela mística que gira solta no ar carregado, de que o velvet underground conquistou pouquíssimos fãs lá por 1967, mas que motivou a maioria desses fãs a formar suas próprias bandas de rock'n'roll? pois é, television foi uma delas, e certamente muita gente boa que ouviu television lá por 1977 também se sentiu movida a botar o pé na profissão de tocar uma guitarra e de cantar. tom verlaine é incrível, o show foi excelente (apesar de não muito envolvente), o ambiente estava tranqüilo, e tal e coisa, e coisa e tal. me deixei ser assaltado assim por uma felicidade, uma nostalgia, uma nostalgia feliz. de repente percebi que o formigamento gostoso por dentro se devia, sim, à banda e ao show, mas menos a eles que a uma ternura interna minha comigo mesmo, um carinho que saía daqui, circulava eletricamente pelo som da television e voltava para cá, quentinho, morninho. é que, mais que de tudo, o gostoso estava sendo voltar a um antigo pedro que amava tanto, tanto, tanto ouvir o vinil importado de "marquee moon" em 1991, recém-chegado em são paulo, todo perdido e enebriado de patti smith, lou reed, debbie harry (e também de nara leão, paulinho da viola, clara nunes, mas agora deixa isso pra lá, o que é que tem?)... deu muita saudade, auto-saudade, saudade feliz.

lado a
em compensação, também andei ouvindo o novo disco de oswaldo montenegro, mais um retorno dele ao mito eterno-interno de "léo e bia", musical que criou em sei lá que ano (em que ano?). assim como certas camadas de "formadores de opinião" adoram proclamar seus amores por mitologias do tipo television, no contrapé as mitologias do tipo oswaldo montenegro permanecem tabu, objeto blindado de que muitos nem aceitam se aproximar, outros detestam apaixonadamente detestar, outros gostam emparedados em silêncio profundo, sem nunca se atrever a deixar o amor montenegriano dizer seu nome. uma vez, alguém que estava assessorando o cantor de "bandolins" e "agonia" me perguntou por que a imprensa era tão refratária ao oswaldo, ao montenegro. eu não soube responder, saí pela tangente de explicações esfarrapadas, e até hoje me pergunto o por quê, aquele por quê. dizem(os) que ele é "chato", né? (é mesmo?) mas, nestes dias de ânimos exaltados e invertidos, o cerco de silêncio dos "formadores" a oswaldo parece estar diminuindo uns decibéis - tanto é que a "edição especial" de "léo e bia" conta com a adesão de um elenco eclético que inclui, de "z" a "a", zélia duncan, zé ramalho, sandra de sá, raíza (?), ney matogrosso, moska, lui coimbra, jorge vercilo, glória pires (lembra que nos anos 80 a glória foi cantora, um pouquinho?), eduardo costa. aí eu ouvi, e achei que as letras (nem sempre) são rasgadas, ferinas, fortes. e fortemente brasilienses (e, portanto, políticas). e (nem sempre) mais densas e trabalhadas que precárias ou populistas. e continuei sem resposta àquela velha pergunta sobre a refração dos formadores de opinião refratária. e também fiquei pensando que existe uma corrente elétrica condutora entre, sei lá, raul seixas, belchior, zé ramalho, oswaldo montenegro, renato russo, humberto gessinger, marcelo camelo..., que também não consigo explicar em português. no mais, além do mais, a versão de ney matogrosso para "léo e bia" é bem bonita. meus ouvidos pararam nos versos "qualquer maneira de amor varia/ e léo e bia souberam amar/ como se não fosse tão longe". (e lembrei que oswaldo "descobriu" cássia eller e zélia duncan.) e eu queria saber se foi o oswaldo que "sampleou" o mote "qualquer maneira de amor vale a pena" de caetano veloso e milton nascimento, em "paula e bebeto" (1978), ou se foram veloso e nascimento que "citaram" o montenegro de "léo e bia", agora re-neymatogrossizado. qualquer maneira...

lado a, lado b
e, depois, existem aqueles artistas que não pertencem à torcidona dos oswaldos montenegros, nem às torcidinhas dos televisions, porque conseguem ser maleáveis o suficiente para falar aos corações & mentes das torcidinhas que ficam dentro-fora das torcidonas, como das claquetonas que ficam fora-dentro das claquetinhas. estou falando isso porque está diante de mim "a time to love", o novo disco de stevie wonder, que não tenho nenhum medo de afirmar que é um dos mais embasbacantes autores da história da música popular do planeta terra. (sei que a motown foi o iê-iê-iê dos e.u.a., o som radiofônico "vulgar" dos suis da américa dos nortes, mas alguém aí sabe dizer se stevie é considerado cafona, brega, kitsch, boco-moco na américa de cima, seu próprio lar?) stevie wonder não se gasta, não se banaliza. porque lança discos só vez por outra, desde que ultrapassou a zona de segurança das fases acachapantes da implantação da motown, nos anos 60, e da consolidação do pop negro à la stevie wonder, nos anos 70. (não que "part-time lover", "jungle fever", "chemical love", "my love is with you", das fases "decadentes", também não sejam boas de doer, mas deixa isso pra lá, vem pra cá...) dá nervoso e tremedeira ver a capa de um disco novo do wonder, em pleno 2005. dá síndrome de abstinência das colossais "signed, sealed, delivered", "superstition", "you are the sunshine of my life", "higher ground", "heaven is 10 zillion light years away", "they won't go when i go" (terrivel, terrível, a letra dessa), "isn't she lovely", "master blaster (jammin')"... ouvi o disco novo apenas uma vez, e ainda nem me atrevi a me atrever formar opinião qualquer. com stevie, bom mesmo é ir devagar com o andor, devagar, devagarinho, um pouquinho de cada vez, conservando o medo (gostoso) de estar diante de um novo álbum de wonder. mas, já que o pensamento não pára, já fico me fazendo perguntas tolas enquanto seguro a caixinha do cd: como alguém pode gostar de roberto carlos e não gostar de stevie wonder, ou vice-versa? como alguém pode não gostar de roberto carlos ou stevie wonder? como alguém pode não gostar de stevie wonder e roberto carlos? como é que pode um disco não ter apenas dois (ou um) lado(s)?

terça-feira, outubro 25, 2005

sim ao não? (ou você adora um "se..."?)

desde ontem, a mídia foi ficando apinhada de artigos e articulistas contrariados com a derrota do "sim" no referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo. alguns deles guardam argumentos bastante bons, mas chama atenção especial um tom irritadiço em comum entre a maioria deles. com freqüência perturbadora, a irritação malcontida leva articulistas pelo percurso tortuoso de formulações que conhecemos desde a outra encarnação, de que o povo não sabe votar, a democracia representativa não nos serve, perdemos uma oportunidade histórica de nos desarmar (se bobear, tem gente praguejando isso agora, depois de passar o período "eleitoral" inteiro reclamando que o referendo era inútil, feio, burro e besta), de que o medo venceu a mudança (hum, discurso requentado esse, hein?), de que o povo "urrou" nas urnas feito besta-fera.

por falar em "povo", o fenômeno é parecido nas seções de cartas dos leitores. se antes os leitores dos jornalões mais "críticos" já se manifestavam em peso e agressividade pelo "não", agora invadem os painéis de leitores tiradas inspiradas, quase geniais, sobre a miséria de termos escolhido o "não". "armai-vos uns aos outros", parodia um, elevando num tom a habitual morbidez bíblica católica.

cego no meio do tiroteio persistente, fico tentando não estar triste com mais uma "derrota" democrática da opção que fiz (já são tantas em 37 anos de vida, nossa senhora). e, de quebra, implico com esse tom de superioridade com que os articulistas (& seus espelhos leitores) interpretam a "derrota", me debato contra a dificuldade de cada articulista do "sim" em encarar de frente sua própria "derrota". ora, será que em nenhum momento os perdedores toparemos parar assimilar e consolidar a decisão que prevaleceu, para tentar dialogar com o resultado que venceu e, portanto, com a maioria dos eleitores que decidiu o que decidiu?

num momento doído de irritação, os articulistas do "sim" sairemos do seio da sociedade em que vivemos, rumo a um brasil-bolha que flutua no universo paralelo e que não integra de fato e direito a sociedade toda que determinou que "não"?

pois eis aí a perpetuação do que nós mesmos, os "perdedores", mais criticamos. uma das nossas maiores mazelas, acredito, é a persistência dessa comunicação interrompida, desse convívio de desavenças e desarmonia, desse má compreensão mútua entre os que analisam a realidade e os que produzem a realidade que os cronistas analisarão. a profecia coletiva de auto-enganos (alô, luiz eduardo soares) se perpetua: o povo vota "não" para que nada mude e para que os analistas possam continuar compondo as antigas cantigas de maldizer contra a realidade que nunca muda; a população votante majoritária é tratada como incapaz-impotente-estúpida pelos cronistas de pretensas contracorrentes, para se ressentir e devotar rancor aos que se julgam superiores em suas proposições minoritárias, para na próxima decisão rejeitar novamente os ditames das supostas contracorrentes. cada parte atribuirá à outra as "culpas" da frustração e dos desgostos promovidos pela realidade escolhida, sinais trocados que se neutralizam e auto-anulam reciprocamente, noves fora, nada.

essa estrutura de círculo vicioso alimentado nas duas pontas sempre passa batida, mas parece ficar mais evidente desta vez, quando não se está falando de partido político e, por isso, cada analista pode, sorrateiramente, disfarçar menos a opção que fez (que bom!) e, em seguida, a contrariedade com a própria "derrota". é como se haver optado e manifestado opinião fosse retribuído com punição e castigo, associação de idéias que é por si só outro equívoco dramático e pernicioso, compartilhado irmanamente (mas cegamente) pelas rés do chão e pelos barões da torre.

o sim É o não?

ora, pergunto, mesmo pactuando de diversas das opiniões sobre o significado da "vitória" do "não": será que já não chega de subestimar a maioria dos brasileiros, de tratar como bestas energúmenas as feras domadas que carregam nas costas nossa infra-estrutura? mesmo supondo que fosse plausível a formulação (jurássica e ignorante, na minha opinião) da idéia da massa predominante dos brasileiros como cavalgaduras imprestáveis, de onde parte a idéia torta de que alguém é menos "imbecil" porque votou "sim" e foi "derrotado" em sua tão "nobre" convicção? por que esse almofadinha intelectual genérico [eu mesmo?] que votou "sim" e agora acha que está banhado num oceano de idiotas [eu, não!] não reuniu antes esforços suficientes para forçar limites e fazer prevalecerem seus argumentos "progressistas"? por que não lutou por eles de forma efetiva, objetiva, militante? por que não conquistou a "vitória" contra os argumentos toscos, alarmistas e obscurantistas que se alastravam feito rastilho de pólvora?

por que esse cara hoje banhado no rancor da "derrota" tarja de toscos os que elegeram o outro lado do muro, se ele próprio foi tão tosco a ponto de não fazer soarem convincentes seus argumentos e se continua sendo tão tosco em rotular de toscos os cidadãos que escolheram a opção mais tosca (sim, estou entre os que acham que a posição mais tosca foi a que "venceu")? por que a cegueira do olhar ao outro ameaça sair vencedora paralela do referendo, de todos os referendos?

mais que patinar no pantanal dos irritadiços, dos candidatos a "donos da verdade" e dos carcereiros da atraente e sedutora teoria da imbecilidade nacional, que tal os "perdedores" (entre os quais também se alistam milhões de votantes do "não", fosse qual fosse a opção "triunfante") nos leantarmos para tentar sondar de modo menos superficial e mais reflexivo-analítico dilemas profundos como a) por que os que se julgam mais progressistas e libertários não conseguem espraiar seus saberes por camadas mais amplas e democráticas da população?; b) que conjunto complexo de estados de espírito leva a uma decisão tão potente pelo "não", para lá de fórmulas esquemáticas (toscas) de cartola do tipo "foi um não a lula", "foi um não à classe política", "foi um sim à violência"?; c) que movimentos reflexos de maturidade são possíveis agora, para que se neutralize o impacto negativo do "não" e se impeça, nem que seja pelo susto, uma escalada de violência potencialmente identificável à decisão pela veia bélica e armamentista?; d) o referendo abre cortinas para conjeturas de cada um de nós sobre a morte, o ato de matar, o não-ato de ser morto, o não-ato de matar, o ato de ser morto, a violência potencial inerente em cada pessoa, o pacifismo constitutivo de cada pessoa?; e) .............

o não É o sim?

o brasil teria dito "não" a si mesmo (mais uma vez, ó, maldita novidade...), incluídos nesse caldeirão os brasileiros que dissemos "sim"? ou mesmo uma tentativa de resposta-pergunta como essa é frívola demais para dar conta de uma proposição bem mais complexa e contraditória do que parecia de início? em outras palavras-perguntas, resultados à parte, não resultamos enobrecidos dessa beliscada no desejo de reletir mais, debater mais, reivindicar mais, esperar mais, oferecer mais, desejar mais, agir mais no intuito de conquistar o desejado?

não? ou sim?

sexta-feira, outubro 21, 2005

sua excelência, o pop star (ii)

e agora, sras. e srs., a versão integral, quase literal, da entrevista que deu origem ao texto na "carta capital", "lulu, o popstar". serve para eu, tu, nós, vós, eles examinarmos como pode ser tensa, delicada, divertida, constangida, prazerosa uma entrevista com sua excelência, o pop star.

e uma ou outra intervençãozinha em [colchetes negritados] por parte do autor (da entrevista) vão bem e não fazem mal a ninguém, certo? para que a viagem não cause náusea, enjôo ou tédio, sugiro aos companheiros de bordo especial (e divertida) atenção às pequenas ironias, contradições, desnudamentos, constrangimentos, sufocos, sorrisos, carrancas, farpas, mesuras, duelinhos, música para nossos ouvidos, enfim.

o cenário é o hotel hilton da região dos brooklins paulistanos, a cafonice hoteleira, o saguão, a mesa rococó do restaurante, dois assessores (da gravadora e do artista), um cafezinho, um gravador...
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pedro alexandre sanches – gal costa lançou um disco chamado "hoje", os paralamas do sucesso lançaram um disco chamado "hoje", você lançou uma canção chamada "roleta" que fala "hoje acordei duvidando que o futuro vai mesmo nos endireitar, porque, no duro, tudo depende de hoje o que a gente faz", que parece um ataque ao futuro em favor do presente, do hoje. por que a música brasileira anda falando tanto no hoje?

lulu santos – no meu caso, acho que dialoga um pouco com "eu vejo a vida melhor no futuro". o fecho, por exemplo, quando diz "a roleta vai girar", é um mote que peguei da minha declaração para o "jornal da globo" por ocasião do assalto que sofri, quando o cara me perguntou: "e aí, lulu, como é que você está?". falei: "bom, é roleta, meu, foi a minha vez". eu estava incaracteristicamente cuidadoso com o acabamento dessa letra em particular. ela tinha um momento que era bacana, que originalmente dizia que "se cabral perdesse o rumo no mar descobriria o japão, acho que não, não tenho certeza se era melhor". mas aí ela ficava tão lá fora que eu dei uma... ao mesmo tempo é parlapatância, a boca que não pára de mexer. a boca não pára de mexer o que está vendo, o que está sentindo.

pas – no release, [o jornalista] tárik de souza trata essa letra como cética, mas ela não é mais no espírito de "viva o presente", em vez de esperar que "o futuro nos endireite"?

ls – é mais realista. possivelmente. essa é sua leitura, sabe como é que é? disco serve para os outros.

pas – qual é a sua leitura?

ls – passa por aí, mas não com essa insistência editorial que você está vendo na canção. não sei muito, acabei de fazer isso, essa é uma das canções mais recentes, na realidade foi a música determinante para eu dizer "olha, tenho um disco novo". fiquei tão excitado quando acabou essa música que tive que ligar para alguém para cantar. a única ligação que passou [ri] foi para o presidente da gravadora.

pas – ele ouviu?

ls – ouviu.

pas – a gravadora já era sony & bmg?

ls – esta, é. [o presidente "pop star" da resultante da fusão entre sony e bmg, alexandre] schiavo.

pas – há então um exagero em ver uma conexão entre todos esses desejos de falar do hoje?

ls – mas o desejo, talvez o meu menos consciente e mais colocado... é uma palavra boa, também. tem uma hora que há uma necessidade de fazer poesia também, uma compulsão de dizer que também pede que as palavras venham independentemente quase do significado. tem até esse componente, por isso é que não quero me afixar numa visão. mas o que você acha é o uso que você encontrou para ela. e para mim, em música pop, torna-se a coisa mais legítima que tem. não vou ensinar para as pessoas qual é a bula de "como uma onda", elas que acenem as mãozinhas. é uma prerrogativa delas, podem não fazer isso também. e eu tenho tido a oportunidade de dizer já algumas vezes o quanto começo a conhecer o disco a partir do que acham, a partir do que eu leio acerca dele, das achâncias. isso é uma coisa fundamental. eu já te falei isso mais de uma vez, quando sai o disco você devia ter uma espécie de licença de mulher parida, como é? licença-maternidade.

pas – você estaria no período da licença ainda, agora?

ls – completamente.

pas – não daria para você mesmo inventar essa licença-maternidade para você? é inevitável lançar o disco, aí já virem todos os jornalistas entrevistarem você e assim por diante?

ls – aí eu vou dizer o que eu conseguir dizer, porque é da mecânica do show biz. mas estou repetindo a você coisas ilustradoríssimas que ouvi em um momento em que eu precisava ser ilustrado em sevilha, em 1992, depois de um desastroso espetáculo meu lá no pavilhão. no auge do meu mal estar e revolta com uma série de coisas que levaram àquela situação, eu, às três horas da manhã, assisti a uma entrevista do david byrne, falando de um disco solo dele. ele falava tão claramente que algumas coisas não eram claras no significado para ele, que se dava ao direito de não querer saber também. é importante esse direito à inconsciência psicológica que diz o que você não quer, ao ato falho, ao lapso. muitas dessas coisas estão embutidas e eu mesmo só vou saber depois.

pas – mas então seria um desconforto ter que falar, a ser meio obrigado a falar nesta hora?

ls – a gente está acostumado. tem um mapa para fazer, também. nada é tão definitivamente uma coisa só, isso é zen-surfismo, o que se pratica aqui. a gente tem nos tornozelos e no quadril um jogo. tem um mapa de fazer, e eu estou dando a entrevista no nível mais subjetivo, porque estou fazendo rádio desde de manhã, então dos níveis em que já discuti esse negócio hoje, acabei de tomar meia taça de vinho e estou me permitindo dizer a respeito o que não tem censura...

pas – nem nunca terá?...

ls – em algum momento teve. Essa canção é dos outros [ri].

pas – este é seu disco número...?

ls – vinte, é o que me dizem. os anotadores me dizem isso.

pas – quer dizer, no mínimo esse mesmo ritual se repete já pela vigésima vez. ele cansa, em algum momento?

ls – possivelmente pela última vez, este ritual, desta forma.

pas – como assim?

ls – eu não tenho mais interesse. [hum, lulu. a gente já ouviu essa música em outro disco...] este disco me dá um patamar fabuloso de manutenção, maintenance. estou a bordo de um set de canções novas que escolhi que fossem assim. eu não estou plugado nem "unpluggado" em nenhum projeto de subsistência, eu tenho uma plataforma criativa na qual me apoiar. e me desinteressa esse processo, porque até passei dessa fase, é a mesma coisa que se ficasse no ginásio para sempre. fuck, já me formei há anos. eu faço um pouco pelo mesmo motivo que os stones fazem, ou eu, pelo meu lado, acabo fazendo e observo que eles fazem e especulo aqui uma imorredoura forma de compulsão adolescente de amar, odiar, gostar. isso ainda ocorre.

pas – lulu, o ritual pós-lançamento, depois da criação...

ls – lembra desse disco? "ritual de lo habitual", do...

pas – sim, do jane’s addiction.

ls – ...perry farrel. jane’s addiction. esse nome é maravilhoso. o conjunto é uma porcaria, mas esse nome, "ritual de lo habitual"...

pas – é disso que estamos falando mesmo, não? nesse período pós-criação, não ficou tudo automatizado demais?

ls – sim e não. hoje eu tive uma série de encontros com a rádio de são paulo que muito me surpreenderam, porque fazia talvez oito anos que eu não fizesse de fato. Eeo nível do que se solicita melhorou muito, o nível das pessoas, dos jovens, dos que vieram depois que comecei isso, melhorou muito. várias coisas, hoje fiquei muito impressionado, porque tive um dia de rádio que não posso dizer que tenha sido desagradável. o encontro com o interesse que as pessoas têm por mim, pelo conjunto da obra e por esse disco específico é completamente legítimo. então eu estou te falando: é bacanérrimo eu poder me desligar desse processo como um ritual do habitual para me dedicar a fazer coisas matadoras, específicas, lubrificadas, lúbricas além de lubrificadas, coisas que vêm de um desejo tão absoluto que ali é a melhor forma de fazer.

pas – um jornalista de revista ou jornal não sabe muito bem isto: como é para um artista um "dia de rádio"?

ls – é um dia em que você tem oportunidade de, em uma hora de gravação, falar com 1.400 municípios, que a gravação de um determinado programa da rádio jovem pan am atinge. uma entrevista interessante, conversamos sobre "lost in translation", de novo, esse filme está... [antes do início da entrevista, lulu havia comentado que o bar do hotel, subindo uma escadaria, parecia cenário do dito cujo], até no disco tem, quando fala "sem perder na tradução", em "sinhá e eu". a entevista foi interessante, o sujeito de terno, grisalho, me perguntou se "gambiarra" tinha alguma coisa de paul weller. eu fiquei "ahn? did you spell it?" [hum, volta e meia lulu fica "lost in translation", né?]. não sei, não conheço paul weller direito, mas o cara conhece. e, na realidade, foi muito melhor do que era. e por tudo, até porque eu não estou – adoro essa expressão – "jocking for a position". o que eu não quero mais é a sensação de corrida de rato. e fora o que, estritamente, música pop, como "popstar" é, é um veículo de jovens e de juventude. hoje nós temos duas gerações depois da minha fazendo isso no brasil, e com uma conexão perfeita com a audiência. sobre isso eu tenho algo a dizer também, que é esse disco que está aí. ao mesmo tempo, estou falando com quem quer ouvir e cultiva essa história. e, evidentemente, estamos aí em rádio pregando para não convertidos. mas isso, esse processo, tenho falado para carlão, bruno, luiz oscar niemeyer [integrantes de sua equipe, imagino eu, e, por último, seu recém-empresário e ex-presidente da gravadora bmg], para quem está junto comigo na jogada, o circão, está de bom tamanho, muito obrigado.

pas – usa-se o termo "blitz de rádio", o que você estava fazendo não tem nada a ver com isso?

ls – não, blitz é outra coisa, é quando a música de trabalho sai e a gravadora tem uma missão de, naquele dia, fazer o maior número de execuções possível com aquela canção.

pas – aí artista não tem que estar presente, fazendo visitas de rádio em rádio...

ls – não, não, isso é o que antigamente se chamava caitituar. é lindo esse termo, a pessoa ir pedir ao radialista para tocar a música dele através de simpatia, agrados. isso está hoje evidentemente profissionalizado num nível em que os agrados passam por cima da cabeça da gente, às vezes por cima dos pés [oooops!]. e o trabalho institucional é como estou te falando, é feito de uma forma, sobretudo no centro de broadcasting de fato do país que é esta cidade e as antenas da av. paulista. tem de tudo, né? tem isso e amanhã tem o "pânico".

ls – sua permanência duas gerações depois da sua, como você falou, é em parte garantida pela permanência do ritual?

ls – não, porque eu abdiquei do ritual, por exemplo, há dez anos. o primeiro impacto, que [a faixa de abertura] "gambiarra" descreve, "não agüento mais isso", foi no meu primeiro milhão de cópias [na época do desmiolado e divertidíssimo disco dance "eu e memê, memê e eu", de 1995, pronto, opinei...].

pas – mas você não abdicou do ritual. tenho entrevistado você disco por disco, desde então.

ls – ah, mas há rituais e rituais. já não faço hoje em dia, por exemplo, programas de auditório. e mesmo fazer rádio, comecei dizendo que fazia pelo menos oito anos que eu não fazia este ritual de rádio, e por isso pude notar, surpreso, como o negócio está bacana. na boa, as pessoas estão interessadas e há uma outra geração de gente com uma outra informação, um nível cultural melhor, mais ensinados. o nosso progresso a despeito de nós mesmos, sabe como é que é?

ls – é como se você tivesse ficado oito anos sem aparecer e encontrasse pessoas oito anos mais amadurecidas?

ls – não, e jovens também, a nova geração. hoje falei com pessoas que não estavam nesse negócio. o menino que fez a parte da rede transamérica me falou, espetacular essa história brasileira de vida, que "quando eu era office boy na paulista, eu andava com seus cassetes". tive que perguntar para ele se, quando era office boy na paulista, ele se vislumbrava fazendo o que faz agora. a gente está se melhorando, né? [está! está! está!] então esse "hoje eu acordei duvidando que o futuro vai mesmo nos endireitar" é um pouco daquele pessimismo inglês, que permite o "hope for the better, expect the worse, work with what comes" [encontrou-se in the translêichon?].

ls – me parece mais otimista que pessimista seu verso.

ls – é realista isso. pode haver coisa mais equilibrada? nada como um povo que foi um império para ensinar a gente um pouco de verdade consensual.

pas – houve um acidente de percurso mais recente, de tentar manter o ritual com programas de auditório, no episódio do "domingão do faustão" [num domingão de 2003, fausto silva interrompeu bruscamente uma apresentação de lulu, que reagiu pedindo respeito numa carta aberta em seu site (já não está mais lá, mas restam memórias na internet, de frases como "se você me permite um comentário, sempre achei e continuo achando imperdoável o fato de você falar em cima das palavras e notas de uma música sendo cantada", hahahaha). faustão contra-atacou no ar, chamando a reação de lulu de "babaquice" e finalizando, com fineza estonteante: "solta a franga, luiz maurício"]...

ls – era de tentar manter o ritual e aquilo ficar muito mais difícil para mim do que imaginei.

pas – aquilo deixa seqüela, o que aconteceu?

ls – seqüela para mim? [pensa] uma lição... você viu alguma anulação minha na tv globo? acho que não, uma novela chamada "como uma onda", um prêmio tim logo depois daquilo, uma permanência em outros programas... acho que não. pode ser que alguma seqüela possa ter ficado, mas por outro lado o que eu ganhei em credibilidade com aquilo...

pas – deu para sentir?

ls – deu, inclusive com o testemunho das pessoas. na realidade nós, brasileiros, temos essa estranha capacidade de discutir com televisões, a gente fica em casa dizendo "seu babaca", mas não é capaz de desligar aquilo. então, como as pessoas têm esse diálogo reflexivo com a televisão... e fora isso... vou dizer, em meu primeiro encontro com o presidente da minha gravadora – estou completamente autorizado a dizer isso, porque é verdade –, eu estava na notória pizzaria capricciosa [recentemente envolvida num imbroglio daslúlico com tráfico de drogas, lembra?], consumindo um bucho, vamos dizer – o que não é verdade –, e nosso schiavo chegou, sem eu conhecer ele e: "olha, lulu, eu queria lhe cumprimentar pela sua atitude naquele programa daquela pessoa, porque precisava alguém com seu cacife", não sei o quê. foi esse retorno, das pessoas que dizem "ah, você falou o que todos nós queríamos dizer", que é diferente do retorno popular mesmo e é um reconhecimento de que, realmente, tudo tem limite [tem! tem! tem! sem limites, só a guerra do bush...]. sabe aquele momento em que gabeira enfrentou severino? eu não quero me colocar, aquilo foi highlander, é diferente, mas basicamente, resguardados os níveis, era um pouco a mensagem que eu estava querendo passar, por favor não me desrespeite como forma de entretenimento.

pas – é um hábito que o Brasil havia mais ou menos perdido e está readquirindo, de exigir respeito, pedir respeito, não ter medo de enfrentar, não?

ls – de não ter medo da autoridade, em primeiro lugar. a atitude da cindy sheehan sendo presa com um sorriso nos lábios [mãe de um soldado americano morto no iraque, ela foi presa protestando em frente à casa branca de bushinho]... ser preso é uma prerrogativa da contrariação do esquema legal de que você discorda. e ao lado a declaração do homem que dizia: "estou honrado de ser preso junto com essas outras pessoas". é isso que essa cpi em tempo real traz, finalmente, a esses políticos, a sensação de que eles não ganharam uma carta branca em benefício próprio e de que há um eleitorado do outro lado que é vigilante, cobrador. é disso que estamos falando desde o início, num certo sentido. a qualidade do país, a despeito de si próprio, melhora. as pessoas lêem mais, se informam mais, ficam mais curiosas, querem saber mais e acabam sabendo. o parâmetro de discussão é melhor.

pas – dentro desse caldeirão, sua atitude diante de fausto silva pode funcionar como uma jurisprudência, ensinando pessoas a perderem o medo de fazer o mesmo?

ls – sem querer ter sido isso, e ao mesmo tempo é bacana, adorei a terminologia, me envaidece. acho que em vez de jurisprudência vou falar em precedente, porque não significa que mais para frente outras pessoas vão fazer exatamente a mesma coisa. mas senti, também, uma certa tomada de posição de outras pessoas em relação ao que estão a fim de agüentar em termos de indignidade para poder promover seu trabalho.

pas – lulu, é difícil manter essa dignidade que você acabou de citar dentro da indústria fonográfica, mesmo para um pop star que está na frente da linha de fogo?

ls – olha, eu não tenho... essa gente da sony & bmg conheceu meu disco na hora que chegou à mão deles. pagaram tudo de olho fechado. então não tenho nenhum tipo de constrangimento dessa natureza.

pas – mas estou pensando no nível mais abrangente possível, incluindo gravadora, empresário de show, jornalista, imprensa...

ls – meu empresário é luiz oscar niemeyer, uma pessoa que tem nome e sobrenome. sabe o que eu acho? que você constrói isso. tinha isso no [álbum de 2003,] "bugaloo", a gente é resultado das escolhas. você faz escolhas, escolhas implicam que, quando você escolhe um caqui, o mamão vai ficar de fora. mas você pode achar que pode passar uma vida com o caqui. a imagem é pobre, sem significância, mas a verdade é que é escolha. tudo na vida você escolhe, um caminho, uma postura, e pronto, você colhe o que aquela postura... pelo menos você está assentado na sua escolha, na sua certificação. aquilo é o que você é, e fim de papo. e fim de papo em todos os sentidos, aquilo tem um retorno, ou uma seqüela como você falou, ou uma conseqüência. mas é necessário. é mais cômodo você fazer uma escolha, tomar uma iniciativa, ir por ali, ficar "não sei por onde vou e sei que vou por ali".

pas – cito isso porque seu disco resvala nesse tema, em "gambiarra", que é um pouco o da desconstrução dessa cultura atual de celebridade.

ls – em que sentido você diz?

pas – até no exemplo que a política está dando, de desierarquização. antes a gente brigava com a tevê...

ls – acho que não é uma desierarquização, não, acho que existe uma desempulhação. a impostura cai. acho que o que existe é um cansaço. o que cai é o que não se sustenta, o que [cantarola] não veio pra ficar, como diz "letra & música" [é o nome do disco novo]...

pas – você está falando de política?

ls – não, em tudo.

pas – poderia valer para música?

ls – não, aí estou falando sobre parceria, sobre trabalho, "letra & música" é sobre fazer música. mas serve.

pas – a indústria musical, como a política ou qualquer outra, tem seus calcanhares de aquiles, não?

ls – como a imprensa.

pas – como a imprensa [êêê!].

ls – como... bom, não conheço o que não tenha, é da natureza humana.

pas – este não é, por isso, um momento de desconstrução disso tudo, após um período em que cada um tinha seus próprios calcanhares de aquiles e não pensava sobre eles, pensava só sobre os dos outros?

ls – não, os poderosos, né?, os que tinham capacidade de botar bota de aço. é essa sensação de vale-tudo. é isso que começa... é muita gente, e quanto mais gente, mais gente atenta. os meios de comunicação, a velocidade disso, fez... velocidade é estabilidade, isso é uma lei física. quando você lança um petardo, quanto mais velocidade, mais estabilidade. uma forma prática de ver isso é de fato a saúde institucional do país em face da crise. isso é um exemplo muito bom de como existe um isolamento já. o país econômica e institucionalmente são, vivenciando um problema político, a gente está se dando conta que tem uma maturidade de todas as ordens.

pas – muita gente se recusa a acreditar nisso ainda, vê um cenário de fim de mundo, "o governo mais corrupto de todos os tempos", o fundo do poço.

ls – sim, mas ainda assim ele governa. não houve um golpe, de nenhuma natureza. o máximo que houve foi uma tentativa da própria chefia do governo de cindir o país entre iletrados ou não opinados e gente que lê jornal [só do governo, lulu?, ora, ora!, gabeira não fez isso com severino, não, né?, ora, ora!]. na hora em que a gente chega numa maturidade dessa natureza, consegue separar as idéias de governo e estado, governo e nação. estado não é nação, eu quero reparação. é como se o peru tivesse que pagar pelo fujimori. não. por outro lado, esta crise e este fim do mundo instalados dentro do governo também estão instalados dentro de um patamar de lisura tão absoluta que garantiu que um operário fosse eleito presidente da república. o patamar institucional, na realidade, é muito elevado, há que se notar isso [é! é! é!]. é sólido. esta bagunça, este furdúncio está acontecendo dentro de um governo que levou 30 anos. quantos anos luiz inácio tentou se eleger? não é um processo novo, não é um fernando collor, uma coisa que cega todo mundo. é uma coisa que estava sendo articulada havia tempos, que seja para nego fazer aposta e dizer "pô, a aposta não deu certo, mas a banca continua, o cassino está sólido". eu vejo a vida melhor no futuro.

pas – ou no presente?

ls – é, me recuso a achar que é o futuro que tem o encargo... hoje acordei duvidando que o futuro vai mesmo nos endireitar se, no fundo, depende tudo do que a gente faz. por que seria igual ao paraíso, em que só depois que você morrer e for enterrado é que vai chegar no bom? [por quê? por quê? por quê?]

pas – a popularidade atual das cpis causa algum flash-back em você, que teve uma experiência na cpi dos direitos autorais [em 1995, houve uma comissão parlamentar de inquérito para investigar irregularidades na cobrança de direitos autorais no país, e alguns artistas entraram na roda. tim maia estreou a bancada em alto estilo, e foi sucedido por luiz ayrão, lulu santos, waldik soriano, zezé di camargo. reportagens da "folha" na época davam conta de que deporiam também genival lacerda, paulo massadas, leandro e leonardo, chitãozinho, belchior, gilberto gil, geraldo vandré (!!!) e... roberto carlos. mas eu não sei se eles depuseram, você sabe?]?

ls – isso é estranhíssimo, porque era uma cpi em cima de um órgão que não é governamental. você pode fazer cpi sobre tudo que está dentro do âmbito do governo, agora o ecad é o escritório central de arrecadamento de direitos, um negócio autônomo, não governamental. na realidade, alegava-se na época até que era inconstitucional. depois vi um deputado do pt acusando nesta cpi de agora o fisiologismo de governos anteriores, tanto de fernando henrique quanto o fisiologismo que foi praticado pelo ministério das comunicações para conseguir os cinco anos de mandato de josé sarney. o mensalão ali foi à base de licitações de rádios fm. então essa cpi do ecad era um grupo de deputados, provavelmente donos de rádios, querendo intervir num órgão não-governamental para cessar [ri] a arrecadação de direitos autorais. isso é uma coisa insana. e eu chego nessa cpi, num tempo em que esses políticos não eram monitorados nem tinham essa sensação de responsabilidade de fato...

pas – não eram transmitidos ao vivo...

ls – não era transmitido, não existia blog, internet, celular... celular já existia. o primeiro deputado perguntou o seguinte [imita sotaque nordestino]: "o senhor, neste mês, ganhou quanto de direitos autorais?". eu respondi: "r$ 11 mil". ele falou: "eu e o ascensorista desta casa sabemos que o senhor não é roberto carlos [se fosse o nando reis, teria respondido "não sou nenhum roberto, mas às vezes eu chego perto", hahaha]. se roberto carlos ganhou só r$ 4 mil, o senhor está mentindo". dito isso, agora é que eu sei, ele pegou o celular e começou a conversar, virou de costas para mim, cagou, é esse nível de "ferrabrasismo" que é praticado. o sujeito é eleito pelo eleitor e depois se desfaz do eleitor. e, de fato, eu não tinha ganho r$ 11 mil. eu tinha ganho r$ 10.684. essa cpi, depois, as notícias de jornais diziam exatamente as mesmas coisas, que eu havia sido evasivo, que eu poderia ter sido preso por perjúrio. deu margem a um colega cantor sertanejo dizer a frase que depois foi publicada em manchete, "lulu santos deveria ser preso". e eu não sei em que estado de desarranjo pessoal eu estava na época que não consegui tomar uma atitude legal. esse é o momento que desemboca na canção "gambiarra", too much, really too early, e realmente estava custoso para mim em vários âmbitos, sobretudo no pessoal. se eu estivesse um pouco mais organizado pessoalmente aquilo não ficava daquele jeito. mas acabou ficando, e é necessário que a história dessa cpi seja contada direitinho, porque o que se publicou é que eu tinha sido evasivo e sonso, como se eu fosse um delúbio. a situação realmente era kafkiana. havia uma desconexão enorme da minha parte, eu estava em machu picchu, "garota, eu vou pra machu picchu"...

pas – você está falando em termos concretos ou simbólicos?

ls – ambos. "gambiarra" foi escrita em cuzco, depois que eu havia passado por aquele episódio. é a minha resposta aos meios, "e aí, Lulu Santos, o que você acha?". "um saco." eu realmente estava despreparado e aquilo era kafkiano a ponto. e eu, muito mal assessorado, desconectado, num momento desconectado da minha existência e incapaz de reagir à altura àquilo que estava acontecendo. mas o mapa você entendeu: fisiologismo para obtenção de uma regulamentação, esse fisiologismo em termos de licitações de rádios fm e depois esses mesmos tentando de alguma forma extinguir... porque o que se queria era uma intervenção, queria se provar que o ecad era corrupto, que não passava... não é que o ecad não repassa meus direitos, é o dono da rádio que não paga os direitos para o ecad.

pas – por que lulu santos virou o bode expiatório desse conflito?

ls – porque eu não quis corroborar. eles acharam que estavam chamando alguém que era metralhadora giratória e ia detonar.

pas – que seria você?

ls – que seria eu.

pas – você tinha essa fama de metralhadora giratória?

ls – não, acho que eles me confundiram com outro personagem.

pas – um que começou na mesma banda que você?

ls – quem sabe? isso você pesquisa...

pas – seria o ritchie?...

ls – o fernando gama, do boca livre...

pas – ou luiz paulo simas...

ls – é, tadinho, que estava nos estados unidos nessa época... [a brincadeira aqui é a seguinte: fomos citando todos os integrantes da banda de origem de lulu santos, o vímana, menos um: lobão!]

pas – havia a história do carro, que você teria ganhado um carro do ecad [deturpei um pouquinho na hora de perguntar, por falta de pesquisa: o que se ventilou à imprensa na época foi que lulu supostamente ganharia um carro para defender o ecad na cpi]. foi esse o motivador?

ls – [ri] não, não foi esse o motivador. a "folha de s.paulo" conseguiu descobrir 80 mil dinheiros daquela época na minha conta. e aí eu, evidentemente, me saí com o recibo. quando você ganha R$ 80 mil... isso fernando collor me ensinou, que é melhor não ter caixa dois. naquela época você tinha que declarar tudo.

pas – collor ensinou você, mas não a lula?

ls – é, é que eles desaprenderam. eu produzi o recibo, da minha gravadora, eu tinha acabado de renovar meu contrato. carro? o que é isso, do que é que você está falando, que tipo de elucubração posterior é essa que dá a você, um jornalista sério, o direito que dizer que eu ganhei um carro do ecad? cadê esse carro? você deu uma volta nele?

pas – não era verdade?

ls – não, se eu tivesse ganhado um carro do ecad eu teria sido de alguma forma imputado. onde é que saiu esse negócio de carro? carro eu não vi, eu vi a história que saiu na "folha", alguém do banco, nego entregou a minha conta. uma forma dessas de denúncia. aí "o senhor foi acusado de ter r$ 80 mil na sua conta". eu falei: "é, eu tenho, está aqui, para renovação de contrato com esta gravadora".

pas – citei o "bode expiatório" porque escolheram lulu santos, mas poderia ser qualquer outro, não?

ls – é, mas é porque se o tim maia foi e esculhambou todo mundo... ele foi, foi o primeiro. aí nego adorou, começou a convocar artistas populares que é para ver se falavam... provavelmente é porque eu estou vivo. não é que fiquei de bode expiatório, não, eu é que peguei um bode daquela situação.

pas – você foi de terno e gravata, como vão hoje em dia?

ls – eu não tinha. tentei, até botei uma gravata, a roupa era a minha. eu estava de cabelo louro, na época eu estava "eu e memê, memê e eu", lembra aquela imagem?, o clubber, o pré-clubber, o clubber de 95, quando as pessoas ainda estavam de calça preta e cigarrete? foi esse personagem que foi à cpi [ri] e depois falou "achei um saco".

pas – quando você vê as cpis de hoje, que são líderes de audiência, você se reconhece neles?

ls – eu vejo essas cpis. não me reconheço. eu lembro do [josé] genoíno passar na minha frente fazendo sinal de positivo, tipo "tudo bem com você?, eu sou legal, você é legal". e depois chico vigilante a fazer acusações, chico vigilante, mas, rapaz, a coisa tem perna tão curta que três meses depois chico vigilante deu um churrasco e foi autuado porque não pagou os direitos autorais de não sei o quê [hum, lulu, será que "armaram" para cima do vigilante como "armaram" para cima de você?]. e cadê chico vigilante? está no pt [ri], então está entre os seus. cadê, existe ainda? [existe, parece que ainda é deputado, vê lá em www.chicovigilante.com.br] este homem já me depenou publicamente, disse que eu tinha cometido perjúrio, devia ser preso, não sei o quê.

pas – hoje isso ainda acontece, é igual?

ls – não, é totalmente diferente, porque o que está sendo investigado são os próprios deputados, os próprios processos. é entre eles. e ao mesmo tempo dá gosto de acompanhar essa garotada.

pas – garotada? os políticos? [hahahaha]

ls – é, os novos, porque você pode se certificar da trajetória deles. você vê uma história, os atos, pode julgar aquela gente por isso?

pas – você se arriscaria a citar nomes?

ls – claro. eduardo paes. acho ele sério, interessante. [ih, só citou um...] ele é do partido [psdb] do político que eu vejo, no Bbasil, como o homem público mais sério, mais independente, com uma santa irritação com a canastrice do processo, que é o tasso jereissati. e, na realidade, vejo a vida melhor no futuro. eu quero ter um presidente da república que adora lulu santos [santo ego inflado, batman!]. Ele tem nome.

pas – não é o Lula...

ls – aecinho, né? aécio neves.

pas – você é tucano, lulu santos?

ls – eu me afino... eu fiz a opção histórica de votar no candidato, não revelei meu voto, fui cobrado por causa disso... teve um jornalista que age no eixo rio-belo horizonte-brasília que quis dar uma embaçada e me patrulhar um pouco apenas porque eu me neguei a declarar que ia fazer e fiz esse voto. mas me sinto muito mais bem representado por essa idéia. acho partido uma coisa difícil, eu sou do partido do coração partido. o conservadorismo está embutido na própria idéia, mas essa história de "fodam-se todos", essa demonização é uma babaquice adolescente que eu não me permito. o caminho dessa coisa é organizar essa via, com um pouco de anarquia, até nessa visão que tenho de partido, essa organização engessada e dura. mas a verdade é que eu me sinto mais representado... existe esse estranho axioma em que elite ficou sinônimo de uma coisa sombria, negativa e usurpante, quando eu digo que pobre da sociedade que não produziu uma elite, de tudo, porque ela não se melhorou a ponto de uma parte dela vir à tona. e o que eu observo nesses caras é um domínio da língua, que para mim revela estudo fundamental, no mínimo. eu tive a ocasião de sentar na frente de josé dirceu e ouvir ele monologar. é quase revoltante, porque é evidente uma psicose.

pas – espera, mas então é outra coisa, não é uma questão de língua... se você preza o domínio da língua, você não preza a falta de domínio da língua?

ls – não, a língua presa [pronto, escorregou na casca da banana do preconceito, mas vai fazer o quê, né?...], a república não só da língua presa, essa estranha capacidade de não corrigir isso. uma das coisas que mais estranhei lula dizer mesmo, eu que fiz essa aposta, foi na hora em que ele falou "eu não me meto na vida dos meus filhos". porra, mas o presidente da república é o grande pai, né? é essa idéia republicana, de que aquele cara representa o chefe da família nacional. então, se é incapaz de corrigir a língua presa quando está pequeno, é incapaz de acreditar em correção para o futuro, melhorar, essas coisas.

pas – eu não estou entendendo, você disse "eu, que fiz essa aposta", que aposta?

ls – esta. eu votei.

pas – no lula?

ls – votei.

pas – ah, isso eu não estava entendendo [êita, língua presa para pronunciar uma palavrinha de quatro letras!]... a gravadora de maria rita, warner [lulu gravou pela warner entre 1982 e 1985, sob as asas do jabazeiro assumido - mas brilhante, pronto, opinei de novo - andré midani], deu um ipod para os jornalistas que foram entrevistá-la, para eles melhor poderem ouvir o disco da cantora. qual é sua opinião sobre isso?

ls – quem ipod, ipod. quem não ipod se sacode [ri]. imagina, pedro, se você vai me pegar nessa querela.

pas – não quero pegar você. quero saber sua opinião, é uma questão importante.

ls – não acho nada. não acho nada. não estranho nada nos processos. não vou moralizar os processos dos outros. eu apenas me dou o direito de observar. ou melhor, ser informado, porque também não sabia disso. e, assim..., ipod cansa [ri].

pas – cansa, mas é preciso ter grana ou fazer outras coisas para ter um e para ter oportunidade de cansar, não?

ls – é, não, possivelmente. mas cansa. estou te falando, o brinquedo cansa. e, por outro lado, me pergunte sobre minha ética.

pas – qual é sua ética em relação a isso, se sua gravadora propusesse "vamos dar um ipod junto com seu disco"?

ls – olha, acho que eu não sou a gravadora. ela não me representa. ela processa o meu produto cultural. e o máximo que eu faço é me submeter.

pas – mas você não é co-participante?

ls – não.

pas – do seu produto?

ls – do meu produto. eu não sou responsável pela promoção do meu produto.

pas – lulu, isso não é escapista?

ls – é escapista dessa tentativa de você criar um fogo com essa questão. o que há a moralizar nisso? o presente não foi aberto [foi!, como você sabe?]? o dado não foi aberto? todo mundo sabe que a prática da indústria é tratar bem, se puder, tratar bem a quem for interessante tratar bem. que me conste, essa é a prática das indústrias. você agracia. e, por outro lado, não me parece que isso tenha sido escuso. não é escuso. é ilegal? se é antiético..., eu não acho.

pas – não é um pouco a mesma discussão da política, de limiares éticos confusos? um ipod para um jornalista não é um pequeno caixa dois?

ls – não é, não é. a política é a "res publica", é a coisa pública, não é a coisa privada, não é o que você faz com o lucro, de que forma você compra o seu lucro. ao mesmo tempo, por que a gente vai só demonizar o corruptor, não o corrompido? será que a gente vai ter que achar que os corrompidos vão ter uma leniência maior ou menor porque foram corrompidos? então talvez aquilo só tenha servido como uma prova [sim! sim! sim!]. agora, por outro lado, política trata do bem e da coisa pública. o que é privado tem outra organização. e a gente precisa realmente encerrar, pedro [hahahaha, tá bom, nem vai dar tempo de perguntar se a música, coisa privada criada pelo lulu santos, não vira depois a música, coisa pública veiculada em todo país e amadodiada por todo o país]. estou trabalhando há horas.

pas – última: "sinhá e eu" não seria, em nível algum, uma retribuição a "manhatã", de caetano veloso?

ls – em nenhum.

pas – você até hoje não retribuiu aquela canção, que era dedicada a você?

ls – o máximo que fiz em relação àquela canção foi perguntar por quê, porque não me via nela e depois foi reconhecido que quem chamava manhattan de manhatã era cazuza. portanto, esse foi um tiro a esmo. "sinhá e eu" é a minha vivência americana. eu fiz uma excursão aos estados unidos em novembro de 2004. foi desastrosa, com exceção do fato de eu estar com scarlet [moon], com quem a gente pode rachar toda uma vivência daquela cidade, daquela língua, daquela cultura. é essa experiência que está relatada ali. isso é "the ballad of john and yoko", versão 2004. eu tinha acabado de tomar café com panqueca e bacon ao acordar em um estado azul, a gente estava em massachusetts, a eleição tinha acabado de se definir, aquele era um estado democrático. e tem uma parte minha que dialoga com essa coisa, como o mundo inteiro dialoga. você não ficou querendo saber qual era o resultado da eleição para presidente dos eua? [sim! sim! sim!] diz respeito a todos nós quem é o kaiser, quem é o césar. ao mesmo tempo eu sou democrata, torci muito por aquela situação. seria uma sinalização de que a gente precisava naquele momento, e que não veio, precisou dois furacões. todo o encolhimento do poder de crítica da imprensa, por exemplo, isso que se observou nos eua, o fato daquela moça do "times" ter sido presa.

pas – está começando a acontecer aqui um questionamento do papel da imprensa, talvez um encolhimento?

ls – encolhimento eu não sinto, não, muito pelo contrário. outro dia vi uma coisa do "financial times" que eu achava interessante: que a imprensa no brasil julga. a imprensa no brasil julga [sim! sim! sim!].

pas – não é algo que já começa a ser colocado em questão, a próxima bola da vez? também por isso pergunto sobre ipod a você.

ls – não, mas ao mesmo tempo a prática de oferecer ipod não me parece ilegítima. não me parece ilegítima, eu não consigo ver o ilícito. quem pode pode, a resposta é factual, quem tem dinheiro para pagar um ipod para quem interessar, bacana, vai fundo, é uma forma.

pas – isso a respeito do termo "ilícito", mas...

ls – "moral"?

pas – não quero usar esse também, mas questionar o jornalista que vai se sentir mimado e vai falar "olha, que legal o disco do lulu santos".

ls – se a pessoa não conseguir separar uma coisa da outra, aí então estamos todos perdidos, igualmente. está entendendo o que estou falando? [espero que sim, e você? ei, você aí, do outro lado do blog? cê tá entendendo?] se a pessoa não consegue fazer o julgamento moral, ela, e vai se sentir obrigada a falar bem para ganhar o ipod depois...

pas – ou "obrigada" a falar mal, dependendo do veículo de comunicação?...

ls – é, mas aí é contigo...

pas – estou me colocando na roda.

ls – eu sei, muito obrigado.
@
e sua excelência se despede, sobe o olhar de esgüela ao bar que lhe evocou sofia coppola e seu "lost in translation" ("encontros e desencontros", em parco português de língua pre$a), desliza pelo hall e parte, rumo ao próximo compromisso.

segunda-feira, outubro 17, 2005

sua excelência, o pop star (i)

e então falávamos de tipos e tipos de pop stars. de modelos semelhantes & diferentes, de misturas, de onde/quando/como/por que tudo se mistura. abordamos a novata maria rita. enfrentamos o veterano netinho. e eu fiquei de chegar a um terceiro exemplo, a uma terceira torre, a uma terceira casa. então eis aí. "carta capital" 363, de 12 de outubro. dr. luís maurício pragana dos santos. ou melhor, lulu santos.


LULU, O POP STAR
Sucessos, rotina, agrados, rusgas com animadores de tevê, CPIs: não é assim tão fácil a vida de um astro popular

Por Pedro Alexandre Sanches

Soem as trombetas, vai se pronunciar sua excelência, o pop star: "Eu sou o melhor surfista da minha rua/ não tenho saco para escola/ minhas notas sempre são vermelhas". O tempo passou tão de repente e hoje Lulu Santos já tem 52 anos, mas sabe que a ode à juventude é um dos artifícios indispensáveis para quem quer "virar um astro" (como diz a letra da canção acima, recém-gravada por ele) e para os figurinos corriqueiros da cultura pop.

Dom Lulu repete há contados 20 discos o ritual de tornar assoviáveis canções genialmente simples como Adivinha o Quê, Como uma Onda (Zen-Surfismo) (1983), O Último Romântico (1984), Sincero (1985), Toda Forma de Amor (1988), Apenas Mais uma de Amor (1992), Assim Caminha a Humanidade (1994)...

Mas os afazeres por trás do bel-prazer constroem um outro ritual, por vezes circular como um disco furado: compor novo repertório, gravar CD, apresentá-lo à imprensa, divulgar-se pelo rádio e pela tevê, ouvir rapapés, receber críticas, espalhar-se por ciganas turnês... E, não, ele diz que não se cansa dos movimentos repetitivos do monjolo: "A gente está acostumado, tem um mapa para fazer. Isso é zen-surfismo, o que se pratica aqui. A gente tem nos tornozelos e no quadril um jogo".

Refere-se com simpatia à lida de se autopromover nas rádios, da qual diz que se afastara nos últimos oito anos, como fez nesta tarde que termina numa entrevista hoteleira para uma revista. "O nível das pessoas, dos jovens, dos que vieram duas gerações depois que comecei isso, melhorou muito. Hoje fiquei muito impressionado, porque tive um dia de rádio que não posso dizer que tenha sido desagradável."

Define a experiência atual como diferente da antiga "caitituagem", termo que pesca do passado com carinho agridoce: "É lindo esse termo, caitituar, a pessoa ir pedir ao radialista para tocar a música dele com simpatia, agrados. Isso está hoje evidentemente profissionalizado, num nível em que os agrados passam por cima da cabeça da gente, às vezes por cima dos pés".

A rotina de bastidor oprime menos que no passado, porque, afirma, já se livrou de alguns dos desconfortos do ritual. Abdicou, por exemplo, de depender da vitrine global do Domingão do Faustão para difundir sua imagem. Fez isso por intermédio de uma carta aberta publicada em seu site em 2003, em que criticava a rispidez e a grosseria como, entendeu, o animador Fausto Silva havia interrompido sua apresentação.

"No meu primeiro encontro com o novo presidente da minha gravadora (Alexandre Schiavo, da Sony & BMG), na notória pizzaria Capricciosa, ele chegou, sem eu conhecê-lo, e disse: 'Olha, Lulu, eu queria lhe cumprimentar pela sua atitude naquele programa daquela pessoa, alguém com seu cacife precisava fazer isso'. Esse retorno, das pessoas que dizem 'ah, você falou o que todos nós queríamos dizer', é diferente do retorno popular, e é um reconhecimento de que, realmente, tudo tem limite."

"Era um pouco a mensagem que eu queria passar: por favor, não me desrespeite como forma de entretenimento", arremata dom Santos, astro pop de légua tirana. "Senti certa tomada de posição de outras pessoas em relação ao que estão a fim de agüentar em termos de indignidade para poder promover seu trabalho."

Pois, se "dignidade" entrou na roda-ciranda, é forçoso perguntar ao "macaco velho" como vê um episódio que causa frisson nos bastidores atuais da música pop, o do "presente" com que a gravadora Warner agraciou jornalistas que entrevistaram Maria Rita na apresentação do segundo álbum da cantora: um iPod, aparelho vendido no Brasil por preços que variam de R$ 562 a R$ 1.190.

"Quem iPod, iPod, quem não iPod se sacode", proclama o pop star. "Mas me pergunte sobre minha ética, não sobre a dos outros." E na sua ética, se sua gravadora fizesse o mesmo, Lulu Santos? "Eu não sou a gravadora. Ela não me representa. Ela processa o meu produto cultural. E o máximo que eu faço é me submeter." Ela não é co-participante de tudo o que envolva seu produto? "Não sou responsável pela promoção do meu produto."

Não seria escapismo, esse isolamento do dono da bola e do palco? "Todo mundo sabe que a prática das indústrias é tratar bem, se puder, a quem for interessante tratar bem. Você agracia. Por outro lado, não me parece que isso seja escuso. É ilegal, antiético? Eu não acho."

Se a entrevista parece tomar rumos de CPI, caberia um paralelo entre outros pop stars – os da política – e a classe de quem hoje revoga o "eu vejo a vida melhor no futuro" do primeiro sucesso (Tempos Modernos, de 1982) e canta, em versos lúcidos do álbum Letra & Música, que "hoje acordei duvidando que o futuro vai mesmo nos endireitar/ porque, no duro, tudo depende de hoje o que a gente faz"? "Não, não. A política é a coisa pública, não é a coisa privada. Não é o que você faz com o lucro, de que forma você compra o seu lucro. Por que a gente vai só demonizar o corruptor, não o corrompido?", rebate.

Sobre a postura da imprensa, que seria o lado "corrompido" nessa hipotética CPI, a estrela pop prefere o resguardo ("aí é contigo"). Mas dialoga de raspão com o Lulu que enfrentou Faustão: "Outro dia vi uma coisa do Financial Times que eu achava interessante, que a imprensa no Brasil julga. A imprensa no Brasil julga".

O mal-estar é menor se o assunto são outras CPIs, as reais, as do Congresso Nacional. Porque, sim, este ídolo pop também já passou pela experiência de ser convocado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Era a CPI dos direitos autorais, que em 1995 investigava supostas irregularidades cometidas pelo Escritório Central de Arrecadação de Direitos (Ecad). Tim Maia já prestara depoimento desbocado contra gravadoras e arrecadadores de direitos, e chegou a vez de sua excelência, o cantor de Mondo Cane (1992), que depôs no mesmo dia de Waldik Soriano, de Eu Não Sou Cachorro, Não (1972).

"As notícias de jornais diziam exatamente as mesmas coisas que dizem hoje, que eu havia sido evasivo, que eu poderia ter sido preso por perjúrio. Deu margem a um colega cantor sertanejo dizer a frase que depois foi publicada em manchete, 'Lulu Santos deveria ser preso'. Eu não sei em que estado de desarranjo pessoal eu estava na época que não consegui tomar uma atitude legal", lembra.

Dez anos depois, ele se defende: "O mensalão ali foi à base de licitações de rádios FM. A CPI do Ecad era um grupo de deputados, provavelmente donos de rádios, querendo intervir num órgão não-governamental para cessar a arrecadação de direitos. Isso é uma coisa insana".

A então advogada (atual superintendente) do Ecad, Glória Braga, hoje se vale de razões que a imprensa da época também abordou. "Tratou-se de um movimento de deputados donos de rádio e inadimplentes, todos do baixo clero. Alguns perderam seus mandatos ou não foram reeleitos. As seqüelas foram muitas, não apenas redução da arrecadação na época. Até agora o episódio é lembrado pelos usuários nos autos de ações de cobrança que fazemos. Nada ficou provado. Em vários estados foram instaurados e arquivados inquéritos sobre o assunto. Ninguém foi indiciado."

Lulu teve seu sigilo bancário quebrado e precisou explicar por que possuía em sua conta, então, R$ 86.720,94. "Falei 'é, eu tenho, está aqui o recibo, para renovação de contrato com a gravadora'. Isso Fernando Collor me ensinou, que é melhor não ter caixa 2."

Já que Collor também entrou na ciranda, sobre política mr. Lulu também se pronuncia. Diz que foi patrulhado em 2002 por não abrir seu voto e revela, com relutância, que votou em Lula. Reclama do governo, mas elogia o Brasil: "Este fim do mundo instalado dentro do governo também está instalado num patamar de lisura tão absoluta que garantiu que um operário fosse eleito presidente da República. O patamar institucional, na realidade, é muito elevado, há que se notar isso. Eu vejo a vida melhor no futuro".

Sobre como seria esse tal futuro, faz uma cândida confissão, enquanto opina que "pobre da sociedade que não produziu uma elite". "Eu quero ter um presidente da República que adore Lulu Santos." Quem? "Aecinho, né? Aécio Neves." Voltam as trombetas, o pop star se cala.

quinta-feira, outubro 13, 2005

criativos comuns

tá vendo aí o canto direito do blog? vai descendo a barra um pouquinho, vão aparecer a lista dos tópicos passados (o que passou passou?), depois uns ícones esquisitinhos. um deles é novinho em folha, foi colocado nesta madrugada. está escrito "some rights reserved", dá um clique e olha por dentro.

o que tá escrito ali é que aderi (antes tarde do que nunca) à licença creative commons, sob a inspiração de episódios recentes aqui no blog (& fora dele), em informações trazidas para cá por vange leonel e no livro "cultura livre", de lawrence lessig, que estou lendo gulosamente desde ontem.

minha licença de "criativo comum" prevê que você, que está lendo isto aqui/isto aqui/isto aqui, pode copiar, distribuir, exibir e executar livremente os textos deste blog. e também pode criar obras derivadas dele. desde dê crédito em alto e bom som ao autor da obra original - ou seja, euzinho da silva.

na real, você pode até mesmo usar os textos e/ou (e? ou?) recriações-derivações com fins comerciais. desde que tenha a expressa autorização do autor da obra original - euzinho de souza, nunca é demais relembrar. recordar é viver.

são métodos e ferramentas deste nosso "brave new world", que a leitura do livro de lessig me faz considerar extraordinárias, geniais, a própria reencarnação de tudo o que envelhecera no novo e ainda pequetico século xxi.

para treinar (êita, nada muito diferente do que eu já vinha fazendo por instinto, sem entender nada de copyrights, copylefts e copythefts), vamos brincar um pouquinho com estes novos conceitos tão sólidos que quase se desmancham no céu da boca?

começarei "sampleando" o prefácio à recém-lançada edição brasileira, escrito pelo doutor em direito ronaldo lemos, que é O cara dos "creative commons" no brasil. bricolando, coloco em negrito os trechos do ronaldo que mais me interessam. e em [negrito entre colchetes] meus próprios comentários & intervenções às proposições do lemos.

tá vendo?, citei a fonte, dei crédito, coloquei-me dentro das "brave new laws", das bravas novas leis.

ronaldo + lemos é = a ronaldo lemos, como 2 + 2 = 5. lemos ao leme:

"você está lendo esse livro porque ele é licenciado através de uma licença chamada 'creative commons' (www.creativecommons.org). ela permite a você e a qualquer pessoa copiar e distribuir na íntegra o livro, desde que seja para fins não comerciais. ela também permite que você faça obras derivadas do livro, como por exemplo traduzi-lo para outras línguas. (...)

[foi isso que permitiu a livre tradução do livro para o português do brasil, sob os auspícios do projeto subversivo trama universitário (endereçado adivinha a quem?), da trama, gravadora que muitos de nós adoram odiar. essa piração é gotinha da cascata que derrama, diz o lessig, desde o advento da internet. e dos efeitos e perplexidade que este "big brother" às avessas causou, causa e causará.]

(...) essa perplexidade, compartilhada por muitos, ainda não tinha nome ou forma. ela se manifestava na certeza de que internet era um elemento de transformação social, que possibilitaria um acesso ilimitado e livre ao conhecimento. que possibilitaria uma transformação no modo como a cultura é produzida e circulada. sobretudo, que levaria à criação de uma 'sociedade criativa', superando definitivamente a idéia de que criatividade depende de 'indústria'.

[quem aqui depende, para se expressar, de indústria? de indústria fonográfica, literária, jornalística, radiofônica, televisiva etc. etc. quem, quem, quem?]

(...) ao mesmo tempo, lessig contrapõe os vários casos relatados no livro com a ampliação da 'cultura do remix', a cultura da colagem [pronto, colei!], em que o processo de criação usa de forma não só indireta, mas também direta, outras obras como elemento de construção da obra final. é a cultura como matéria-prima da própria cultura. (...) essa nova cultura só apresenta um problema: ela é ilegal [me diga, amigo meu, o que posso fazer, se tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda? alô, roberto & erasmo carlos!]. graças ao sistema de direitos autorais que herdamos do século xix e que continua a ser sistematicamente ampliado ao longo do tempo (...), cada obra ou artefato cultural existente na internet ou em qualquer outro lugar tem dono [diz qual é o nome do dono da terra, que inventou a (cyber)terra, o (cyber)céu e o (cyber)mar? alô, abelhudos!, alô, renato corrêa & nair cândia!]. e utilizar a obra, para qualquer finalidade (copiar, distribuir, alterar, modificar etc.) é uma violação dos direitos de propriedade do autor ou de seus intermediários.

a conseqüência é uma ironia de massas. as ferramentas tecnológicas disponíveis no mundo hoje permitem a qualquer pessoa possibilidades criativas jamais sonhadas. um número gigantesco de pesoas usa cotidianamente essas ferramentas, em seus sites, blogs [soy yo! nosotros!], fotologs ou mesmo incluindo textos e imagens em trabalhos de colégio. apesar disso, do jeito como é hoje, essas atividades devem continuar relegadas à posição de mero 'hobby' ou divertimento doméstico [tá, tenho me divertido à beça, mas isto aqui também é trabalho duro & suado, meu. respeitem meus cabelos, brancos! alô, chico césar!]. isso porque sempre estamos sob o risco de sermos processados pela violação da [tradição, família &] 'propriedade' de alguém. em outras palavras, cada vez temos mais acesso a recursos criativos que eram privilégio das grandes empresas de mídia, mas devemos nos abster de usar esse poder 'seriamente' [pois sim, pois sim, porque "séria" é a "veja", que passa por aqui e afana informação a seu bel-prazer, né? ela "pode" e nós não "podemos", é assim que funciona? ahã, agora conta outra], gerando desenvolvimento, conhecimento e acesso.

lessig sempre defendeu que a cultura do remix é aquela que vai derrubar as barreiras entre criador e 'consumidor' da cultura. entre artista e público. entre estado e cidadão. [aaaaah! somos nós! somos nós! somos nós! puta orgulho deste blog-comunidade!, é todo mundo junto no um! alô, baby do brasil!] a mesclagem é o elemento formador da sociedade cultural, em detrimento à indústria cultural centralizada. o instrumento para retardar essa quebra de barreiras e a construção de uma sociedade autônoma é jurídico.

[um momento, por favor, para um aparte, um importante aparte. e se começássemos a brincar, aqui no nosso blog, de produzir responsabilidade e autoria individual & coletiva? eu proponho, eu te proponho (alô, rei!, alô, príncipe!) que brinquemos, neste blog, de assinar sempre nossos nomes por inteiro, a cada comentário que fizermos. para que os criativos comuns pertençam a todos nós & a cada um de nós. para que cada um de nós cultive a completa propriedade & autoridade & responsabilidade sobre suas próprias palavras & idéias, que assim poderão ser copyleftadas ad infinitum, com o devido crédito de cada autor-criador-cidadão-instigado da cadeia produtiva (e não predatória). não será uma imposição nem uma regra a ser obedecida, ninguém será punido por "sair da linha". mas, ah, vá, puxa?, bem que seria bem legal e bacana, né? estamos fazendo história, e quem está na chuva é para se queimar (alô, vicente matheus).]

(...) seja por nossas raízes antropofágicas ou por nossa vocação tropicalista [viva a banda-da-da carmen miranda-da-da-da-da!, obrigado, senhor caetano veloso!], mas o fato é que o brasil vem-se tornando um dos líderes globais da cultura livre. (...)

[alô, mano brown, nega gizza, mv bill e deize tigrona. o brasil vai-se tornando um dos líderes globais da cultura livre. um dos líderes globais da cultura livre. scratch. um dos líderes globais da cultura livre. alô, cultores do "brasileirismo do não". o século ainda é pitoco, mas virou, já vira-virou. você tem olhado ao redor, admirado a paisagem desta casa muito engraçada que não tinha porta, não tinha nada (alô, vinicius de moraes!, alô, boca livre!, alô, fernando faro!, alô, torcida do gilflamengo!, aquele abraço!)?]

e qual o impacto de um projeto como este para a cultura brasileira? os exemplos são abundantes. o mais conhecido é o apoio do ministro gilberto gil ao projeto, tanto como músico quando como ministro de estado. como músico, licenciando obras suas para serem livremente distribuídas e remixadas, dando um dos primeiros exemplos globais do uso da licença de sampling. como estadista através da implementação dos pontos de cultura, estúdios de produção cultural multimídia, com acesso à internet, espalhados por todo o brasil nas áreas de menor índice de desenvolvimento humano. [alô, alô, responde, com toda sinceridade (alô, alô, andré filho!, alô, alô, maria alcina!), você que acha que gilberto gil não está fazendo nada como ministro e que o atual governo é o "mais medíocre": você acha mmeessmmoo isso? você tá olhando direitinho ao redor, tá prestando atenção? cê tá entendendo? (alô, são arnaldo baptista!, alô, dra. mme. rita lee!)?]

toda a rede de pontos de cultura propicia as ferramentas básicas para que comunidades de todo o brasil que nunca tiveram meios de se manifestar culturalmente possam fazer isso através de música, imagem e texto. o creative commons é parte desse projeto, já que a idéia de generosidade intelectual é a força motriz que move milhares de voluntários trabalhando no projeto em todo país. [é ela! a generosidade intelectual! basta de clamares mesquinharia (alô, são cartola!)! é ela, a generosidade! alô, vange leonel!, obrigado!] só faz sentido produzir cultura em um ponto de cultura de belém do pará puder dialogar com o de heliópolis em são paulo. um remixando o outro. o brasil descobrindo os brasis.

[alô, mangue bit! câmbio, olinda & recife. alô, rock gaúcho! câmbio, hip hop & funk carioca. alô, alô, multidões barulhentas produtoras da criação marginalizada que não depende de porra de indústria nenhuma. alô, alô, terezinha!, alô, alô, seu chacrinha!, alô, alô, seu ministro!, alô, alô, maroca, poroca & indaiá! o síndico tim maia mandou avisar (alô, jorge ben jor!): basta de clamares dependência & inocência (in)útil.]

além do ministério da cultura, o ministério da educação lançou em parceria com o creative commons a pioneira iniciativa do portal domínio público (www.dominiopublico.gov.br). trata-se de um vasto acervo de obras que já se encontram em domínio público no brasil. lá é possível encontrar bernardo guimarães, álvares de azevedo e qorpo santo. qualquer pessoa pode também colocar suas criações no site. (...)

[hey, cê tá entendendoooooo?!?! o minimistério do governo brasileiro já disponibiliza, inteiramente de graça para você (ou você, como lula, também não gosta de ler?), romances da literatura universalbrasileira! é esse governo que você so vê como "corrupto" e "fracassado"? ah, então vá se roçar nas ostras (alô, minha mana myriam!). ah, há no mundo coisa mais linda do que um dos primeiros livros brasileiros a receberem cyber-alforria ser "a escrava isaura", o romance romântico de bernardo guimarães, o da escrava branca açoitada no tronco da indústria canavieira? lerê, lerê, vida de nego é difícil!, alô, são dorival caymmi!, alô, querubim rappin' hood!]

o caminho está sendo trilhado de baixo para cima, de modo que a sociedade tome para si a responsabilidade de emancipar a si mesma. (...)"

[eis, vange, chegamos ao cerne de tudo, ao "criativo comum". responsabilidade, responsabilidade, responsabilidade. scratch. emancipação, emancipação, liberdade. atividade, atividade, atividade (alô, fausto fawcett & carlos laufer!, alô, fernanda abreu!). scratch. atitude, de baixo para cima. o de cima sobe e o de baixo também sobe, alô, chico science!, ó, vida bandida (alô, lobão!), por que você e cássia eller não esperaram para ver o maracatu atômico passar (alô, jorge mautner & nelson jacobina!), para ver o segundo sol chegar (alô, nando reis!)?. generosidade, generosidade, generosidade.]

está aí, pois, era isso. antes de terminar, somente uma pílula de lawrence lessig, que lawewnce é a fonte nutriz do papo todo e lessig só passou por aqui de raspção: "nunca em nossa cultura uma parte tão grande pertenceu à propriedade privada como agora. e, ainda assim, a concentração de poder para controlar o uso da cultura nunca foi aceita com tão pouca contestação quanto hoje". é que toda nossa generosidade, eu diria, andou cruelmente direcionada apenas para o bem "comum" de nossas indústrias & comércios, às quais sempre "todos os direitos são reservados". com todo respeito, responsabilidade & amor, tá na hora de "reservar alguns direitos" de nossa autogenerosidade para nós mesmos [siiiiim!], para o bem coletivindividual de nossa tão comum criatividade.

lawrence + lessig é = a lawrence lessig, como 2 + 2 = 5, e como são criativos os comuns.

sexta-feira, outubro 07, 2005

netinho vem aí...

já está nas bancas e no cyberespaço uma nova "carta capital", com um terceiro tipo de pop star se pronunciando (declarações como "quem ipod, ipod, quem não ipod sacode", para puxar seu apetite).

mas, antes, na mesma edição 360 de maria rita e do ipod (que estão reproduzidos no tópico imediatamente abaixo), aparecia na "carta capital" um segundo modelo de pop star, bem diferente de maria rita. chama-se netinho, você conhece muito bem.

enquanto o caso maria rita repercutiu sem parar da publicação até o dia de hoje (e além), sobre netinho ne sua tevê para negros não se tem ouvido falar, nem aqui, nem ali, nem acolá. que mecanismo seria esse que coloca maria e josé (de paula neto) em mundos tão diferentes, em redomas tão separadas, em barulhos & silêncios tão dissonantes?

você acha que netinho é um pop star? por que, nas partes "cultas" que nos cabem nesse latifúndio "inteligente", não se ouve o que netinho diz, não se pensa no que netinho canta, não se diz o que netinho pensa? quem tem medo do netinho? por que ter medo do netinho? é "medo", o que temos do netinho? o pop star mais visível do lado de lá da redoma social é invisível do lado de cá, por quê? por medo, repulsa, preconceito, desprezo, identificação reprimida, simples incompatibilidade?

netinho é "povão" ou é "elite"? tem comportamento de "elite" ou de "povão"? ou será que a elite É o povão? quem é mais sensacionalista, netinho ou a "veja"?

e/ou (e? ou?) será que josé É maria, maria É josé e moramos todos no mesmo "mondo cane"? au, au, eu não sou cachorro, não? (ou sou?)


NETINHO VEM AÍ...
Entre o mundo-cão e a responsabilidade social, o cantor conquista a periferia e anuncia a primeira tevê brasileira prioritariamente para o público negro. Será o novo Silvio Santos?

Por Pedro Alexandre Sanches

Primeira cena. O rapaz negro passeia de limusine por ruas e vielas da periferia da Grande São Paulo. Engomado em trajes de príncipe e gravata-borboleta estilo garçom, José de Paula Neto entra num labirinto de pequenas moradias aglomeradas, à procura da princesa Francisca Marques de Souza. Encontra a cinderela negra de chinelos de dedo, e ela lhe conta, incrédula: "Eu não sou feliz".

Príncipe poligâmico, José logo sairá em busca de mais princesas, em outras ruelas. Levará um travo de identificação com a história da princesa que sente muita falta da mãe, morta quando ela tinha 11 anos. É que com o príncipe aconteceu o mesmo. "Minha mãe faleceu quando eu tinha 11 anos, de parada cardíaca, viciada em álcool", rememora.

Segunda cena. O cenário kitsch é o de um programa popular de televisão. O príncipe da favela, em traje esporte fino, se converte no pagodeiro Netinho, que requebra ao som de sambas, melôs e sambas-rock vindos também da periferia de São Paulo, vários dos quais criados e cantados por ele próprio.

Exercitando a faceta de animador de auditório, o príncipe de 35 anos faz propaganda, em tom empolgado, de uma câmera e filmadora digital que custa, em 12 prestações, cerca de R$ 700. Tentando convencer os consumidores das classes C, D, E, que ele diz formarem o público alvo do programa Domingo da Gente, ele calcula o preço do produto de modo pragmático: "R$ 1,99 por dia".

Terceira cena. Num hotel nobre de São Paulo, o empresário Netinho de Paula, vestido de terno, mas sem gravata, anuncia seu empreendimento mais ambicioso a jornalistas. Entrará no ar, no próximo dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, a TV da Gente, primeiro projeto televisivo brasileiro dedicado prioritariamente à população negra. Irradiado a partir do Ceará, onde obteve concessão, o canal deve entrar imediatamente no ar em UHF, nas principais capitais do país, segundo ele promete.

O empresário explica que o investimento inicial, de R$ 12 milhões, virá de sua própria produtora, JPN, mas auxiliado por 25% de recursos desembolsados por investidores de Angola, onde Domingo da Gente é exibido com sucesso. Embute uma crítica à mídia na exposição de objetivos: "A mídia não está preocupada com a minha raça, muito menos com minha origem, a periferia. As tevês se recusam a contratar profissionais negros, mas jamais vamos cometer o equívoco que elas cometeram. Nossa tevê terá pluralidade racial. Terá pessoas de todas as cores, como é na periferia".

A platéia presente confirma sem querer suas palavras. Muitos dos jornalistas são negros e trabalham na mídia alternativa; a maioria dos grandes jornais e revistas não enviou representantes ao hotel.

As três cenas condensam a trajetória atípica, às vezes contraditória, de um cidadão que nasceu no lado desfavorecido da muralha social, na Cohab da cidade de Carapicuíba, na Grande São Paulo. Em sua terminologia, a zona dos excluídos de que quer ser porta-voz é o "gueto". "É a maioria da população, mas se for ver de perto é mesmo um gueto, de casas pequenininhas, famílias desestruturadas. É como a palavra 'gueto' foi usada pelo nazismo: um lugar de pessoas que estão esperando para morrer", diz.

Ali viu o irmão mais velho ser assassinado por policiais, ali teve, aos 15 anos, o primeiro de seus sete filhos (dois deles adotivos). A trajetória foi se tornando excêntrica a partir do contato com ONGs da região e da formação do grupo de pagode Negritude Jr., que seria um dos maiores vendedores de CDs do Brasil nos anos 90.

Por inspiração do pagode A Princesa e o Plebeu, acabou apresentando, no Domingo Legal, do SBT, um quadro em que fazia uma visita-surpresa a uma garota pobre, conduzindo-a de limusine a "um dia de princesa". O quadro cresceu e originou o programa atual, exibido todo domingo, às 13h, na Rede Record.

A audiência crescente nas tardes de domingo ajudou a desdobrar o projeto na série de ficção A Turma do Gueto, de que hoje Netinho guarda más lembranças, classificadas por ele como episódios de discriminação racial. "Um diretor comercial da Record dizia que não conseguia anunciante, porque o povo não estava a fim de ver negros se beijando na tevê. Disse que as pessoas preferiam ver o negro com uma arma na mão, determinou que cada episódio da Turma do Gueto deveria ter no mínimo sete mortes."

Diz que engole em seco e em silêncio manifestações assim, a que se acostumou desde os sete anos, quando a mãe de um amiguinho aniversariante pediu que ele fosse comer o bolo lá fora, porque o dono "não gostava de preto dentro de casa". Justifica o silêncio: "Se eu reagir na hora vou ser violento, então fico quieto".

Não foi o que aconteceu numa briga conjugal que rendeu uma denúncia de agressão por parte da hoje ex-mulher, muito explorada pela mídia sensacionalista à época. "Ali foi minha essência, de não aceitar que ponham a mão em mim. É claro que me arrependi, nós dois nos arrependemos", tenta se justificar.

No início deste ano, propôs à diretoria comercial da Record abrir mão do salário, em troca do direito de negociar, ele próprio, os anúncios do Domingo da Gente. "O programa agora está cheio de merchandising e eu estou ganhando três vezes mais do que ganhava", comemora, em meio a uma avalanche de campanhas de produtos para emagrecer, cursos profissionalizantes, máquina de fazer fraldas, creme de alface brilhante e a tal câmera digital. Essa última provoca outra avalanche, no site do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), de compradores que se consideraram lesados pelo mau funcionamento do produto.

O remoinho de comercialismo desenfreado traz à mente imagens de programas de mundo cão que pululam pela tevê aberta, mas o Netinho empresário tenta descolar o projeto futuro daquele universo: "Para a grande tevê, programas dedicados à população de baixa renda têm que ser fuleiros, sem qualidade. Nós queremos mostrar que não temos só marginais, pagodeiros e jogadores de futebol, mas também jornalistas, juristas, atores que já poderiam estar encaixados nas grandes emissoras e sabemos bem por que não estão".

Por enquanto, como animador da Record, segue se movendo no fio tenso que separa universos divergentes como os da militância social e do mundo cão, da periferia e da elite (hoje mora e grava na região nobre de Alphaville).

A corda bamba se retesa no relato cru das princesas, que faz o programa oscilar entre a exploração de dramas particulares e a denúncia social praticada de perto, de dentro. CartaCapital viajou de limusine com Netinho e testemunhou algumas dessas histórias.

Num cubículo dividido com marido e três filhos, a princesa Noemi Felizardo Pinto desfiou roteiro já familiar para Netinho e seus espectadores. "Meu primeiro marido morreu assassinado, inocente. Morei na rua, pedi esmola." Ela chora. "Meu marido tem curso de carro-forte, mas está sem emprego há três anos. Ele pensa muitas vezes em entrar para o mundo do crime, pois não tem para onde ir." Ele chora. "Só tenho vontade de morrer."

Bebê doente chorando no colo, Noemi faz a revelação mais chocante: "Economizo o remédio para não acabar, porque o menino não pode parar de tomar. Só dou quando está muito atacado, não tenho dinheiro para comprar".

À saída do casebre, o sorriso sempre largo de Netinho foi dissipado por uma seriedade melancólica. "Nós, da classe média bem sucedida, supostamente pagamos imposto para beneficiar esse povo que está aqui. Mas cadê?", pergunta.

Lembra que o atual presidente do Brasil vem dessa mesma origem e emenda com comentários sobre a atual crise política: "Há um marketing grande que beneficia a oposição. A imprensa está aproveitando, pensa que o pessoal do gueto é bobo. A gente sabe que isso sempre houve, a gente só queria que o dinheiro que rola lá rolasse aqui também".

Na casa de Adriana Maria da Silva, a conversa gira em torno de depressão. Príncipe madrugador, Netinho encontra a bela adormecida deitada, deprimida porque está desempregada, ganhando peso, o nome sujo na praça.

"Depressão é uma doença que a gente pensava que era só dos ricos. Mas estamos descobrindo que está mais aqui na periferia", ele ensina. Ela chora. "Não fica assim que corta o coração do negão", pede ele, antes de voltar à limusine, abocanhando um sanduíche de mortadela.

Francisca, aquela que contava que "não sou feliz" na carta enviada ao ídolo, põe-se admirada diante dele: "Como é alto!". E conta seus desejos, aos borbotões. "Meu sonho é ser atriz." "Agora não tenho mais certeza. Li a Bíblia, tenho vontade agora de ser outra coisa. Cantora evangélica." "Canta bem?", ele pergunta. "Não", ela sorri, "minha mãe diz que minha voz é feia".

Enquanto doa a ela uma cesta básica, um pacote do Café do Netinho e R$ 3.000, o príncipe bambeia com a menina entre o sonho e a vida real: "Vamos ver se arranjamos uns cursos para a nega ficar uma cantora bem culta. Vamos tentar arranjar um emprego com carteira assinada. Você já cantou em coral?" Não cantou.

"Tem namorado?" "Não. Não adianta querer uma pessoa sem ter nada na vida", ela suspira, fitando o príncipe "fofinho", que se despede e a deixa sonhando, "é a primeira vez que vou passar na tevê".

À saída de uma das casas, uma mulher idosa se aproxima e pede ajuda, dinheiro, "sou muito doente, surda do ouvido". A população local rodeia, outra mulher puxa seu braço. "Lembra de mim? Eu morava no térreo, você com sua mãe no quarto andar. Seu apelido era Serelepe." Ele sorri, abraça-a. A outra senhora reclama, "ah, só ela merece um abraço", Netinho lhe abraça longamente e foge para a limusine, escoltado por 12 seguranças que acompanham a caravana.

Não haveria, em todo esse corpo-a-corpo, um componente de exploração de sonhos e tragédias alheias? "Já disseram que o programa é sensacionalista, piegas, forçação. Não vejo como exploração, meu povo sabe que não é. Não fico caçando desgraça, as histórias estão todas lá. Só quem é de outra classe social vai falar que é exploração."

Afirma, para prová-lo, que acredita na transformação que sua efêmera passagem provoca. Diz que, todo final de ano, o programa volta às casas de todas as princesas para mostrar o que aconteceu após o "final feliz". "O resultado é espantoso, 70% delas aproveitam, mudam de vida. Não acho que seja ilusão."

Além da ilusão, estão ações concretas de apoio a "seu povo", como o Instituto Casa da Gente, que ele abriu em Carapicuíba com apoio do BNDES e de três ministérios do governo Lula. Diz que o instituto atende a 1.200 crianças da região.

No front comercial, também abriu, em sociedade com o cantor Alexandre Pires, a gravadora independente Da Massa, que pretende abrigar artistas de pagode deixados à míngua pela indústria musical, após estancado o surto de sucesso dos anos 90.

Hoje, Netinho se permite ser algo crítico em relação àquele movimento musical que, no entanto, "era auto-estima pura para a rapaziada": "O movimento era muito besteirol, poucos conseguiam contornar isso. O pouco que a gente fazia com conteúdo social nunca era escolhido pela gravadora para tocar no rádio".

Seu estilo musical romântico e festivo era diametralmente oposto a outro que floresceu na periferia a partir da década passada, o hip-hop, mas nem por isso os dois mundos são estanques. Quando foi a Brasília anunciar o projeto da TV da Gente, há poucas semanas, o rapper Mano Brown, dos Racionais MCs, o acompanhava.

"Brown é meu amigo de infância, crescemos no mesmo bairro. De dois em dois meses temos um quebra-pau por ideologia, mas seguimos agindo pelo mesmo objetivo. A diferença é que os Racionais são radicais, nós somos pacifistas", delimita.

Nega que Brown seja um investidor oculto da TV da Gente, ou que vá aparecer na tela da tevê do gueto. "Ele é muito tímido para aparecer. Não há pretensão de que os Racionais tenham um programa. Mas eles podem, quem sabe, estar dirigindo um programa."

Dizendo que já desistiu de reivindicar a contratação de profissionais negros na grande mídia, como procurava fazer antes de abraçar o novo projeto, ele completa: "Não acho que os negros vão conseguir mudar essa realidade na mídia. São os próprios brancos que têm de se conscientizar sobre qual é sua participação no modo como a periferia é. No Brasil quem consegue concluir curso se acha superior, mas para nós ele não é. No fundo, a mesma coisa que ele pensa da gente a gente pensa dele".

Gravadas as visitas no "gueto", a próxima etapa é apresentar as princesas em competição no programa. É hora de catarse, que não raro atinge momentos de crueza incomuns até nos programas de mundo cão, como aconteceu no caso da princesa Débora Cristiane de Oliveira em gravação também testemunhada por CartaCapital, que irá ao ar no domingo 18.

No vídeo pré-gravado, Débora conta que já perdeu um marido e quatro irmãos, todos envolvidos com drogas. Netinho diz que ela precisa arrumar os dentes, prega o uso de camisinha ("no gueto só tem menina de 14 anos grávida, é epidemia de gravidez"). Ela apresenta Alex, o atual marido, desempregado. Chora. Hesita, mas acaba por confessar: "Ele tá viciado também, em crack". O príncipe dialoga com o marido da princesa: "Mano, se você não resolver se cuidar é o abismo, você já foi para a morte. Vê seu filho, o filho é o espelho da gente".

No palco, Alex aparece de mãos dadas com os filhos e é tratado com simpatia por Netinho: "Tá todo bonitão, fez até a barba". Ele sai do estúdio num carro da clínica patrocinadora em que cumprirá um programa de reabilitação. A família chora.

"Eu não vou ser o salvador da pátria, vou tentar dar oportunidades para que vocês se desenvolvam", diz à princesa Rosa Gomes de Jesus e a seus irmãos, que ganham bolsas de estudos da Universidade Zumbi dos Palmares, também orientada à população negra. "Tem negrão que vive atrás da cor para justificar que não consegue as coisas, não pode", aconselha.

Grávida, a princesa Maria das Dores Ferreira recebe de um patrocinador o direito à ligadura nas trompas. E ganha bolsas de estudos para seus filhos num colégio da valorizada Vila Olímpia, cujo representante explica que "trabalhamos com pessoal de classe média alta, mas reservamos bolsas para 20% dos alunos". "Não vai ser fácil, vocês vão viver numa realidade diferente, terão que ter muita força de vontade", adverte o educador. "É escola particular, você tá ligado que no Brasil só playboy é que tem isso?", Netinho incentiva um dos garotos. "Ó a responsa. Eu levo fé, o menino é danado", estimula.

Mas é o drama de Débora que espalha o choro pela platéia, composta só por negros e pardos, não fosse a presença da equipe de um vereador curitibano do PFL, que divulga um programa que apresenta na Record paranaense, sob o mesmo modelo assistencialista. A atriz e cantora Tânia Alves cai no choro e tem de interromper a fala ao votar nela para princesa titular. Débora sai vencedora, com R$ 10 mil de prêmio no bolso. "Glória a Deus", ela chora.

Esticando o fio da periferia até o centro, e vice-versa, José de Paula Neto vai moldando a zona fronteiriça tensa em que se equilibra, entre a arcaica exploração do mundo cão e conceitos mais contemporâneos a que sempre se reporta, como "política afirmativa", "responsabilidade social", "auto-estima".

Se o poderio que vai acumulando tijolo por tijolo faz evocar a trajetória do ex-camelô Silvio Santos, ele reconhece a inspiração com certa ironia: "Meus ídolos são Silvio Santos, Roberto Marinho e Edir Macedo. Foram inteligentes e espertos. Fizeram amizades e conseguiram concessões por tráfico de influência, para depois fechar concessões para outros que chegavam".

Pisca o sinal de alerta: Netinho faria o mesmo que eles fizeram, para deter futuros rivais? "Nem teria como, com internet e TV digital será cada vez mais difícil isso acontecer. Estamos em outros tempos", coloca o ponto final, descrevendo um tempo em que o príncipe e o plebeu se misturam na mesma pessoa.

a pressão e o alívio (e a pressão)

taí um exemplo de reportagem que envelhece precocemente, na mesma medida em que, incrível!, se torna mais atual conforme passam os dias.

na "carta capital" 360, de 21 de setembro, o repórter manifestava certo conforto por perceber que, do primeiro para o segundo disco, a cantora maria rita parecia vir conseguindo reduzir a enorme pressão que tem repousado sobre ela, por razões de conhecimento geral da nação (e de outros 50 países, segundo a nervosa gravadora warner). a entrevista corria descontraída, mesmo com o batalhão (também descontraído) de assessores ao redor. respirávamos aliviados, todos.

mas eis que havia um ipod no meio do caminho. o alívio era falso, a notícia estava datada (ou, mais simplesmente, equivocada?). de três semanas para cá, a tensão voltou a subir umas dezenas de graus, por questões em grande medida extramusicais, em boa parte devido à entrada (e às pequenas piratarias) da "veja" no hoje cada dia mais "célebre" caso ipod (o datado É o atual?).

recapitulemos, pois, porque mesmo que o poderio acuado não o queira admitir, ói nóis aqui no epicentro dessa desconfortabilíssima situação, cheios de interrogações pululando na cuca lelé: maria rita pertenceria a um novo modelo de pop star? a que modelo de pop star pertence? que modelo é esse que (a despeito dos talentos individuais) precisa de, er, "artifícios" humilhados/humilhantes para legitimar seus pop stars, para torná-los válidos e operantes? ou o caso ipod mediria, mais que qualquer coisa, um projeto de desmonte de modelos falidos de estrelato e de todo o circo parasitário que o rodeia (gravadoras multinacionais, diretorias de marketing, assessorias de divulgação, impérios de noticiário, repórteres-profissão-passageiros, críticos de música etc. etc.)?

é preciso que zelemos pela preservação de nossos pop stars? é preciso que nossos pop stars zelem por sua próprioa preservação? é preciso que (todos) nós zelemos por nossa própria preservação?


A PRESSÃO E O ALÍVIO
Maria Rita chega ao segundo CD dividida entre o rolo compressor do sucesso e a superação de comparações com a mãe

Por Pedro Alexandre Sanches

O ar comprimido começa a se dilatar e dispersar, pouco a pouco. A tensão já não é mais a mesma de menos de três anos atrás, quando ela levava às lágrimas aqueles que, espantados, tinham acesso privilegiado às semelhanças entre sua voz e seu gestual de palco e os de sua mãe, Elis Regina (1945-1982).

A pressão também já não é a mesma de quando ela, Maria Rita, apresentou seu disco de estréia pela multinacional Warner, cercada de um carrossel de expectativas do mercado fonográfico, da mídia, da crítica, do público, dos antigos fãs de sua mãe, dos novos fãs conquistados por mérito próprio.

"Todos nós nos sentíamos muito pressionados no lançamento do primeiro CD, cada um na sua esfera. Eu era ao mesmo tempo iniciante e não iniciante, cantora nova e não nova", descreve, aos 28 anos, a jovem dona da voz.

Tanta compressão começara muito antes, no longo e hesitante intervalo entre a descoberta da paixão por cantar e a decisão de se tornar, enfim, uma artista de MPB. Sob a sombra da herança, seu caso foi tão excêntrico que o sempre delicado momento de lançar um segundo disco parece ser, no caso de Maria Rita, de alívio. "Acho que desta vez muitos dos nossos medos já se dissiparam", pontua.

Não é que as expectativas tenham baixado na hora da chegada de Segundo (R$ 30 o CD, ou R$ 50 o pacote com CD e DVD de making of da gravação). Segundo a Warner, Maria Rita (2003) vendeu 800 mil cópias no mundo todo, 120 mil delas fora do Brasil.

A cifra não se compara às dos anos 90, quando sertanejos, pagodeiros e padres não precisavam de muito esforço para bater no teto de 3 milhões de cópias por CD. Mas é astronômica se colocada em contraste aos tempos bicudos da indústria musical destes anos 2000.

O diretor de marketing da Warner, Marcelo Maia, dá testemunho disso, dizendo que Segundo ganhou na multinacional o status de "mandatório", o que determina que seja lançado em todas as subsidiárias da gravadora no mundo, até mais tardar fevereiro de 2006. Trocando em miúdos, a segunda Maria Rita circulará livremente por mais de 50 países.

Outra demonstração de que a panela de pressão continua acesa vem do circo armado em torno da artista na divulgação do CD. Na terça-feira 13, quando atendia a revistas semanais num quarto do luxuoso Hotel Emiliano, em sua São Paulo natal, acompanhavam-na atentamente dois empresários, dois diretores da gravadora e dois assessores de imprensa.

"Não é para intimidar, é uma preocupação. No outro disco, a probabilidade de ataque era grande e o ser humano precisa ser preservado", justifica, rodeada por assessores (e jornalistas) mais descontraídos que da outra vez.

Esse tom a mais de descontração pode corresponder ao do novo disco, que radicaliza o formato mínimo de piano, baixo acústico e bateria, realça sua voz e a torna condutora de climas quase sempre serenos. E foi fruto, sim, de uma crise passageira, durante a qual ela chegou a achar que o resultado estava "muito para baixo".

"Quando ouvi o resultado, passei alguns dias num dilema horroroso. Eu estava com meus fantasmas muito mais aflorados. Dei um passinho para trás, caiu minha ficha de que eu estava pensando pelos outros, projetando em mim o que os outros iam pensar do segundo disco. Saí, joguei videogame, fiz a unha, ouvi de novo, vi que era aquilo mesmo, que não tinha necessidade de ter violão, percussão. Essa economia é o que eu vivo, é o mais simples e honesto possível."

Assumiu a manutenção do formato minimalista e aspergiu gotas de leveza a mais no resultado total ao fazer sobressair autores jovens e/ou pouco conhecidos na mídia (essa é também a tática usada no recém-lançado Hoje, da veterana Gal Costa, produzido pelo pai de Maria Rita, Cesar Camargo Mariano).

Dirigido por ela com o músico pernambucano radicado no Rio Lenine, o disco tornou-se um mostruário da produção contemporânea carioca, com composições de Marcelo Yuka, Marcelo Camelo, Rodrigo Maranhão, Pedro Luís, Moska, Francisco Bosco, Fred Martins e Dudu Falcão. Contrasta, novamente aí, com o disco de Gal, dominado pela cena paulista de compositores.

A serenidade espalha-se pelo disco, até exalando, aqui e ali, modos de melancolia. Mas não é só por razões musicais que a calmaria acontece: entre Maria Rita e Segundo, houve Antônio, seu primeiro filho, hoje com 1 ano e 2 meses de idade.

Maria Rita engravidou no auge da comoção causada pelo primeiro disco. Excursionou até o oitavo mês de gravidez, 150 shows por todo o Brasil ("o meu corpo não pediu para eu parar").

Se a gravidez não o fez, a chegada de Antônio veio impor limites à engrenagem comercial ao redor, que vinha oferecendo todos os ingredientes para crescer em roda-viva incontrolável. "Agora vou fazer turnê mais espaçada, vai ter fim de semana que não vou fazer show", avisa, turvando os semblantes de alguns dos presentes no recinto.

Reconhece, aqui, que se inspira no comportamento de Marisa Monte, artista que se esmera na tarefa de definir fronteiras entre o estrelato e o espaço privado. "Marisa Monte é um exemplo perfeito, vira-e-mexe eu penso no exemplo dela. É uma estrela, se preserva, todo mundo respeita", diz Maria Rita, compactuando com Marisa a postura de se poupar tanto quanto possível de aparecer em programas de tevê.

"Eu tenho minha arte e minha vida pessoal, elas se cruzam e minha vida pessoal sangra para a profissional. As pessoas me vêem no meu máximo, a entrega no palco é tanta que não preciso falar sobre minha vida pessoal. A gente já viu tanta gente valiosa se perder aí", reflete.

É que, apesar de portadora do vozeirão mais seguro deste mundo, Maria Rita ainda é menina inexperiente e imatura, na vida e na arte. O rolo compressor mora ao lado e ela evidencia o medo dele até na insistência com que recorre ao uso do verbo "pirar" e seus vizinhos: "Prefiro não entender certos detalhes para não enlouquecer nem perder o chão", "se eu não tivesse esperado para começar, talvez tivesse sido engolida viva", "eu piraria se me impedissem de cantar"...

Como sair ilesa dos perigos deste mundo, ser mais Marisa Monte e menos Elis Regina? Maria Rita ainda busca as fórmulas, e talvez já tenha descoberto algumas.

"Às vezes, digo que vou sair, minha empresária pergunta: 'Sozinha?' Em público, você não pode estar triste, mal-vestida, com o cabelo sujo, de mau humor. Se sou mal atendida, não posso reclamar meus direitos, porque vão dizer que estou dando piti. Você começa a virar refém de sua imagem, o que não é agradável. Aí eu faço questão de andar de Havaianas, calça de moletom, sem maquiagem. Ah, ando", tateia, puxando ar livre para os pulmões de cantora.


RELAÇÕES PERIGOSAS
A gravadora Warner dá iPods para jornalistas que entrevistam a cantora

Sob o pretexto de permitir a 30 profissionais brasileiros as melhores condições possíveis de audição do novo trabalho de Maria Rita, a Warner Music Brasil montou um kit de imprensa em que constavam, além do CD e do DVD com o making of da gravação, um aparelho iPod Shuffle, com as músicas do disco Segundo previamente carregadas.

O iPod, que armazena grande quantidade de música num aparelho minúsculo, custa US$ 130 na loja oficial da Apple. Como não é fabricado no Brasil, só pode ser comprado no País em versão importada, cujo preço oscila, em sites de busca, entre R$ 562 (na loja virtual Gravit) e R$ 1.190 (no site Submarino).

O diretor de marketing da gravadora, Marcelo Maia, assim explica a promoção: "A Warner entrou em contato com a Apple para propor uma parceria num iPod customizado de Maria Rita. Não houve tempo operacional hábil para essa proposta se realizar. Cada uma foi então para o seu lado e a Warner optou por preparar um kit com a forma mais profissional para se escutar um disco com tão pouco tempo disponível antes das entrevistas". Segundo Maia, a gravadora optou então por comprar os iPods, o que teria sido feito aqui no Brasil mesmo, por preços que ele disse não saber precisar.

CartaCapital recebeu um desses kits, ouviu o trabalho em CD e no iPod e devolveu o aparelho à gravadora. – PAS