boa-noite, comunidade!
@
[ih, lá vem o tópico mais longo de todos os tempos da última semana... o bom é que este blog pode ser lido, sem contra-indicação, num só gole, em pílulas, em drágeas, em conta-gotas, a (des)gosto do freguês... o ministério da saúde mental recomenda: consuma com moderação. mas consuma tudinho.]
@
foi 100% sem querer (alô, denise garcia!), mas no tópico anterior acabei relacionando cidade de deus com dogville. e depois tive a sorte de ir em pessoa ao "roda viva", para testar na carne os paralalos que haviam recém-pintado na minha cuca lelé. foi inevitável chegar lá amedrontado, pensando em grace de dogville enquanto esperava a chegada de mv bill de cidade de deus. havia um nexo?
@
o primeiro gesto foi um nexo, notado imediatamente pela psicanalista maria rita kehl, que nos deu o prazer de participar da mesa de entrevistadores. ela notou (instintivamente eu também havia notado) que o olhar assustado de mv bill era doce, que mv bill em pessoa era doce. confirmou isso conversando cara a cara com ele, eu não tive a mesma coragem. fiquei esperando o programa começar.
@
havia o nexo? será que o olhar meigo de mv bill é o olhar meigo de grace de "dogville", a branca subserviente meiga humilhada violentada que ao final do filme explode em violência? sem nem sentir, eu temia que fosse, que os dogmas estivessem em voga e vigor. mas os fatos vieram me aplicar uma cilada, uma arapuca, um tropeção. porque o nexo era o antinexo, a negação do nexo.
@
é que mv bill é a anti-nicole kidman, a anti-grace de "dogville". o que há de subserviência na personagem fictícia de lars von trier dissipa-se no comportamento altivo do rapper real da cidade de deus. ao menos até onde o assistimos no "roda viva" desta segunda-feira, mv bill pode ser o que você quiser, mas algo que ele definitivamente não é é subserviente. cada agressão que ele tomou naquela noite foi respondida na lata, imediatamente, com aquela candura de olhar que maria rita e eu havíamos percebido naquela noite, que os repórteres fernanda mena e cunha jr. (outros dos debatedores na mesa) já conheciam há mais tempo que nós.
@
focos de tensão se estabeleceram instantaneamente na relação entre mv bill e o repórter policial veteraníssimo renato lombardi. este último me causou intenso desconforto, ao encarnar e sublinhar vícios que às vezes fazem o jornalismo parecer rito de julgamento, tribunal de inquisição, sala de tortura. pelo tom que lombardi imprimia às suas indagações, parecia que bill estava previamente julgado culpado e condenado -mas condenado pelo quê? acredito que nenhum de nós saiba ao certo, nem mesmo o lombardi (algumas respostas, a propósito, estão contidas em "cabeça de porco", o livro que bill pretendia ali divulgar).
@
pois o rapper implicou, logo de cara, com certas observações (mais que perguntas) do lombardi, tipo "isso é verdade". na bucha, ele retrucava: "você não tem que dizer o que é verdade. tudo que eu estou falando é verdade". parece retórica e bobeira, mas não é. bill demonstrava, pelas entrelinhas, que tudo que caras como ele dizem é sempre previamente avaliado como
mentira, não como
verdade (alô, dr. caetano). as perguntas que se têm a fazer, a caras como ele, enebriam-se da droga pesada de confinar o debate em roteiros de traficantes, meninos mortos, armas, drogas, assaltos, cooptações, policiais corruptos.
@
sentindo-se subliminarmente acusado e repreendido, o homem-símbolo do outro lado da moeda tomava de volta o domínio da situação, com a calma que lhe era possível, mas tentando coalhar a postura-destino de soldado do morro com a postura-atitude de artista e militante político. em ríspidas palavras, lombardi parecia bradar "seja subserviente"; bill se impunha, "subserviente não serei". não foi, nenhum segundo sequer, pois ele era (é) a anti-grace.
@
[breve interrupção para um pequeno assunto diferente, que é o mesmo assunto: aí leio n'"o globo" o estimado antonio carlos miguel opinando que o samba-rap do (carioca) marcelo d2 convence, mas que o samba-rap do (paulista) rappin' hood não convence. por que, hein, ô, miguel? sinto falta de argumento palpável, sabe?, porque do jeito ligeiro como foi colocado fica tudo boiando, é só a (velha) impressão de que estamos no terreno (campo de futebol) estéril do bairrismo (rivalidade), que o rappin' hood não é bom só porque os caras do rio não querem que rappin' hood seja bom... pô, miguel, isso desmerece o rap (a jovem guarda) como um todo, não o rap (o iê-iê-iê) paulista ou carioca. a cadência fica lerda, morosa, esse papo que já não deu.]
@
mv bill pertence, como ele mesmo declarou, à "ala falante do rap" (a gente adora quando fala a ala falante do rap! a gente adora a ala falante do rap, a do funk, a do samba, a do soul e a da rebimboca da parafuseta!!!). digo mais, o bardo de cdd provou ali pertencer não só à ala falante, mas também à ala pensante do rap, da música brasileira, do brasil. nos intervalos do programa, do interrogatório, da saraivada verbal, o ícone da ala pensante do rap se encolhia, abaixava a cabeça, apertava os olhos com as mãos, contava até dez, se concentrava em seus límpidos objetivos, ensimesmava. mv bill sofria, era evidente - e nós, ao redor, sofríamos juntos.
@
[pausinha para dentro do mesmo assunto: a ida ao "roda viva" revela uma postura recente de mv bill, segundo me contou depois de assistir ao programa o julio moura, assessor de imprensa da biscoito fino que divulgou o cd "traficando informação", de 1999, pela gravadora natasha, de paula lavigne. passo a palavra ao julio: "na época, ele sequer admitia dar entrevistas fora da cidade de deus, e nós tivemos que fazer a coletiva lá, com direito a tiro de fuzil pra cima, avisando o pessoal do movimento que a van cheia de jornalistas tava 'liberada'. o cara tá bem mais flexível e extrovertido hoje. acho o Bill brilhante". como se vê, mv bill é um brasileiro que não senta o traseiro na cadeira esperando a caravana passar...]
@
a ala pensante quer se expressar, mas exige o mesmo de seus pares. solicita tratamento equânime, sem subserviências. daí um dos ápices do debate: bill está respondendo a alguma pergunta de lombardi; lombardi interrompe a resposta à sua própria pergunta, re-perguntando: "você já usou drogas?"; bill tenta continuar a linha de raciocínio, busca não ser interrompido; lombardi insiste, acua, assedia: "você já usou drogas?"; bill encara lombardi nos olhos e rebate, em igual tom recrimiatório: "você já usou drogas?"; renato se empertiga, se retesa, apura o volume da voz para proferir um gordo e sonoro "não"; bill passeia sobre o nervosismo do "inimigo", retoma a responda à pergunta que havia sido interrompida. grace não mora mais aqui. e você, que assiste à tv cultura, lê este blog, é rapper e/ou repórter policial? já usou drogas? fuma, bebe, exagera no torresminho? ou cê tá se safando, só tem culpa o bill?
@
mas o que eu queria saber era o que bill sente ao ver seu nome co-assinando um livro, um livro em parceria com o elaboradíssimo cientista político luiz eduardo soares. perguntei, ele respondeu meio de viés. mas lá adiante, já em outra pergunta, veio o esboço de resposta que eu supunha e que eu esperava: bill afirmou, com todas as letras, que nunca na vida imaginou que um dia escreveria um livro. pois está aí o ato consumado, mais potente que qualquer inquisição.
@
[ê, comadre, já começou a chiadeira das classes médias e altas porque o lula lelé falou que brasileiro é acomodado e senta o traseiro na cadeira e fica esperando o juro baixar. "o lula também é acomodado", berrou o c
lóvis - ãhã, e aí?, vamos ficar pirraçando para ver quem é mais acomodado? ok, tomamos um pito coletivo do presidente falastrão, e ninguém gosta de tomar pito (eu o-de-io). se a conversa é entre gente adulta, pito não entra, mas isso é um outro assunto. por enquanto, o compadre me permita me alinhar um segundinho a mr. president, largar os juros e os cartões de crédito ("até porque não é pobre que tem cartão de crédito", disse mr. po
lvo) de ladinho e virar o binóculo da celeuma. independentemente do que o língua solta quis dizer, me diz aí, comadre-compadre: seu traseiro tá sentado acomodado na cadeira? você tá batalhando pelo que quer de verdade, ou é daquele(a)s que, como diz dr. tagarela, "reclamam de dia e à noite se conformam, reclamam de noite, mas de dia se conformam"? em outros trocaletras, você mora em dogvi
lle?]
@
pois então, mv bill não sentou o traseiro na cadeira, foi atender ao desafio do antropólogo e co-escreveu um livro. depois do final do debate, perguntei a ele se ele já pensava em um próximo livro. disse que já pensa, sim, que vai fazer. lembro-me de "irmãos coragem", com jair rodrigues (estou me autoplagiando, e aproveitando para também divulgar meu livro - sobre meu amado roberto carlos -, que tem um capítulo com esse mesmo nome): "e os campos se abriram em flor...", para não dizer que não falamos de flores (alô, dr. geraldo vandré). você já leu mv bill, nego? então vá.
@
[mais um intervalinho para nossos comerciais, este branco feito leite: já saiu o novo disco do kid abelha, "pega vida" (universal, 2005), em que paula toller e seus abóboras branquelos deram de falar de sexo pelos cotovelos (eu gosto). e, embora branco feito mármore, o cd traz uma versão de uma black music antiga feita por um cara quase tão branco quanto a paula, o guilherme lamounier (de quem também tenho falado insistentemente, eu sei - mas é que acho que nesse mato tem coelho, e eu não sei qual é). a música é "será que eu pus um grilo na sua cabeça?", uma das mais lindas baladas soul brasileiras dos anos 70, do saudoso lp "guilherme lamounier", continental, 1973. o co-autor é tibério gaspar, outro branco que já fez muita música preta brasieira (por exemplo "br-3", com que o abrasivo toni tornado arrasou o fatídico festival da canção de 1970). a versão do kid é reggaezinha, não pega totalmente o espírito do original (mas, bem, conservar intacta a supremacia da versão original também terá sido um sinal de sabedoria pop do kid, terá não sido?). ó uns trechos da letra: "abro meu coração/ solto meus cabelos livres no ar/ e não quero mais saber/ quero é dividir o meu amor com você", depois "curte essa canção/ solta o pensamento livre no ar/ e não queira mais saber/ venha dividir o amor que há em você". tão bonito. fora isso, ainda há os versos "olhe a natureza solta no chão/ veja aquele esquilo entre nozes e avelãs", aaaaaaaaaaah!!!!, esquilos e avelãs no brasiuuuuu, no brasill, aaaaaaaaaaaaaaaaah!!!!! será que eu pus um grilo na sua cabeça?]
@
ah, mas a gente também adora as horas de clímax. houve um outro quando lombardi, já parcialmente neutralizado pela calma lancinante de bill, quis interromper de novo a fala do entrevistado, do dono provisório do programa da cultura. talvez exasperado com o ruído que vinha ali do lado, bill subiu levemente o tom de sua voz, tentando impor a obviedade de que eram dele ali a fala e o solo; lombardi invadiu, levantou também o tom de sua voz, competiu com o entrevistado pela primazia da voz; bill elevou mais uma vez seu tom, sem nunca querer ou precisar chegar ao grito ou ao descontrole; lombardi desistiu, calou, e bill pôde enfim completar seu raciocínio. então se virou educamente para lombardi, agora para saber o que tanto o afligia. e obteve do entrevistador o inesperado, um impactante pedido de desculpas, por que ele, entrevistador, vinha parecendo "meio antipático nas perguntas".
@
gênio, gênio, gênio. naquele breve instante, o esqueminha do preto-bandido tomando tunga do branco-caubói desmontou, desmoronou, degringolou. lombardi não era o mocinho, porque bill não era o vilão, porque lombardi não era o mocinho, porque lombardi não era o vilão, porque bill não era o mocinho, porque bill não era o vilão... naquele instante parado no ar, a vida não se resumia a festivais, nem tampouco a filmes de caubói.
@
e eis que fui me lembrar daquela frase tão fofa que pequeno pedrinho tantas vezes ouviu da boca de sua mãe, dona zaira: "quando um burro fala, o outro abaixa a orelha". zangado com seu lombardi, desejei repetir para ele a máxima de zaira. mas, espera, enfim qual de nós ali não atropelou o(a) outro(a) num desses ímpetos ansiosos de participar? ih, será que estou fazendo seu lombardi de meu "
bode expiatório"?
@
[pausinhona para o intervalo (anti)comercial. desta vez não é branco nem preto, nem homem nem mulher. é mestiço, postiço, castiço, arisco. chegou aqui também o single do chico césar, "compacto e simples", pelo independentíssimo selo próprio chita discos. eu tô rolando de rir, "odeio rodeio" é uma toada caipira cafooooooooona cuja letra estritamente mordaz diz assim: "odeio rodeio/ e sinto um certo nojo/ quando o sertanejo/ começa a tocar/ eu sei que é preconceito/ mas ninguém é perfeito/ me deixem desabafar", hahahahahaahahahahahahahahha. cançoneta que se diz & se contradiz & se antidiz na velocidade da luz, é cantada de modo "breganejo", naquela estratégia de duas vozes estridentes dos chitões e xorós. sabe quem faz a segunda voz? a "inventora" da expressão "odeio rodeio", rita ruiva lee. a outra faixa do single - s-i-n-g-l-e, ouviu?!, nóis também tem síngol! -, também composta por chico césar, se chama "brega", para desta vez dizer & desdizer & redizer a maldição do brega. estritamente cafona, faz assim: "olhar etíope devora seu retrato/ braços antílopes me apertam o coração", hahahaha. melhor, faz assim: "onde está meu araçá azul? devolve!", hahaahhaahahahahahahahhahaahahahahahhahahahahahahaha. eu não agüento, eu não agüento! dê-lhe, crítica & autocrítica!]
@
[rapazes d'"o globo", atenção!, não vão falar que "compacto e simples" é ruim só porque chico césar, assim como a grande maioria dos seres humanos,
não é
carioca, hein?! já basta o drible furado de criticar vander lee porque parece jorge vercilo (desse vocês gostam, né?) e porque nessa seara já existem chico césar e zeca baleiro. ei, mas, com o perdão da grosseria, o que tem o cu com as calças??? ah, lembrei. chico é paraibano. zeca é maranhense. vander, além de mineiro, era sambista e agora resolveu surfar na onda bregapop do vercilo. que, suprema coincidência, é carioca de botafogo.]
@
ah, não falei ainda do paulo markun, o gentilíssimo apresentador do programa. tratou mv bill com exemplar civilidade, mesmo cedendo brevemente ao chavão de reclamar que o livro de bill, soares e celso athayde abordava os problemas, mas não encontrava as soluções; não, aquele livro
é,
por ele só, um pecinha riquíssima da soluçãozona (falta todos nosotros irmos encaixando também nossas pecinhas neste imenso e complicadíssimo quebra-cabeças).
@
pois depois do final do debate markun comentou comigo e com fernanda a importância da presença de lombardi no debate - renato personificava o contraponto, ele explicou. não entendi no ato, mas depois garrei a maginá. e concordei que, por querer ou sem querer, lombardi desempenhou a escada de apoio para que mv bill reafirmasse seu valor, sua auto-estima, a justeza das idéias que defende - e, ao contrário de seu antagonista, fez isso ressaltando que não tem certeza de que esteja certo, que sabe que são apenas suas convicções e nada mais; ah, se todos tivéssemos convicções assim tão firmes, e as colocássemos com a mesma delicadeza a nossos irmãos... dogville ficaria um tiquinho mais distante...
@
[ah, mas viu numa notícia minúscula da "folha" outro dia que a favela de heliópolis não quer mais ser dogville? está lá o ruy ohtake, aquele das carambolas e melancias, coordenando o projeto imaginado pela própria comunidade, de pintar de cores vivas as casas da favela. parece que othake tinha dito que heliópolis era feia como o diabo, os habitantes não gostaram e se uniram ao antagonista para reformular. e, pelo que se via na foto, lá as riscas de giz sobre o chão nu à moda de "dogville" amanheceram pintadas de todas as cores, aquelas que, misturadas, colocam um sorriso discreto no canto da nossa boca.]
@
e aí o ato de mestre de markun. depois do fim do programa, desceu humildemente de seu lugar com seu exemplar de "cabeça de porco" a tiracolo, chegou até mv bill e, observando que não tem o hábito de fazer isso, pediu-lhe um autógrafo, a mesma expressão generosa de maria rita kehl estampadando o rosto aparentemente fechado. meu mundo caiu, e eu, que nem diante de lou reed tivera a pachorra de pedir um autógrafo (tenho um de baby do brasil, mas foi ela que quis dar - e eu adorei), me curvei às evidências e pedi também o meu primeiro autógrafo, ao mv bill, cuja música nem consigo compreender completamente. cê tá entendendo a dimensão simbólica, que markun percebeu com tamanha presteza? evoco o branco ivan lins, cuja música também não consigo compreender completamente: "somos todos iguais nesta noite".
@
[nos sorrisos simpáticos simultâneos trocados entre lula e condoleezza rice, qual dos dois você acha mais parecido com grace, de dogville? a nicole-negra-condoleezza? ou o homem-kidman-da-silva? quem tem mais medo, quem mente mais, quem toma mais pito? condoleezza rice é luiz inácio?]
@
já amanhecendo no lusco-fusco desta gigantesca crônica (chama crônica isso? como isso chama?), fico achando que não fui muito claro a respeito de mim mesmo nesse balaio de gatos. saí de lá ainda tenso, mas feliz pela impressão de ter estabelecido durante o programa uma comunicação 100% não agressiva com o temido mv bill. ao vivo e em várias cores, perdi um pouquinho do medo que eu tinha dele. por trás das câmeras, não era bem assim, ali são outros 500 (anos de história). não quero passar a falsa impressão de que me comunico assim com tanta fluência e descontração com gente como mv bill, china, deize tigrona, maria rita, tati quebra barraco, felipe s., max de castro, rappin' hood e outros dos mais importantes artistas do brasil de 2005, os quais vivo cruzando por aí por força do ofício. não é bem assim. os diálogos, fora o disfarce dos ofícios, é truncado, doído, temeroso. é muita barreira a ser movida, para todos nós, brasileiros, que temos (re)aprendido que "o medo de amar é o medo de ser livre". doggodville (ainda) é aqui. boa-noite, boa-noite, bom-dia, comunidade-de-deus!