segunda-feira, fevereiro 28, 2005

pilulitos

hum, dessa vez "desconcordei" com meu estimado (e carinhosíssimo) nelson motta, no artigo de fim de semana em que ele embarcou nessa de o brasil estar encrencado numa suposta "era da ignorância", por conta do exemplo-lula. ora, vai, nelsinho, dá uma espiada direito nessa história (dá uma lida, por exemplo, na "carta capital" desta semana, hehehe)... eu vejo justamente o contrário. hoje debatemos reforma universitária, discutimos cotas (e por intermédio de cotas discutimos racismo, discriminação e abismo social), deliberamos sobre as mamatas da privatização indiscriminada no ensino superior... dá uma olhada no que diz rappin' hood, preto pobre periférico que aos 33 anos voltou à faculdade (estimulado em parte por uma política de cotas), cursa administração para aprender a gerenciar seu próprio selo e arremata tudo isso com um "ele é um exemplo fortíssimo para mim". "ele" é lula, entendeu? tudo isso acontece sob lula. nada disso aconteceu sob fhc, itamar, coll...
@
pois então, querido nelson motta. ao ouvir rappin' hood estamos falando, como sempre, de nossa gloriosa "black music brasileira", né? eu não esqueço nem nunca esquecerei que você é de formidável importância na construção de uma "black music nacional". sei que você comungou com marcos valle, elis, roberto & erasmo o advento de tim maia e de toda essa glória negra num aparentemente imutável país de excluídos fodidos e de incluídos encastelados. não esqueço..., por favor não esqueça...
@
ih, paro de conversar com nelson motta, que tem mais gente assistindo. mas falando de nelson motta me lembro de marisa monte. e me lembro de que soube que no século passado marisa monte fez, incógnita e caladinha, uns backing vocals para o disco "vange" (sony, 1991). se não me engano era na faixa "passeio distraído", foi um passeio distraído da estrela em ascensão marisa pelo anonimato. diz que a sony quis pegar carona no marketing natural de marisa, divulgando o mimo. diz que vange vetou. grande vange leonel (& grande cilmara bedaque).
@
ih, falando em vange lembro seu lindo grupo de rock, nau. nau foi breve, mas bom à beça. lembrando, penso nos anos 80; pensando nos anos 80, caio sentado dentro do directv hall, num badalado evento "comemorativo" dos 80, com leo jaime, kid vinil (ex-verminose, ex-magazine, ex-heróis do brasil), leoni (ex-kid abelha, ex-heróis da resistência), roger (ex-ultraje a rigor), ritchie (ex-vímana) e evandro mesquita (ex-blitz) cantando só hits vintões... esquisito, misto de melancolia e alegria. inevitável pensar em certa atmosfera de decadência - que ninguém cai na rede do rock'n'roll sem saber que um dia se deparará com essa assustadora questão. mas bacana, também, encarar a permanência, esse bicho de sete cabeças que assusta tanta gente, principalmente quem pensa que pop tem prazo de validade, que pop vence nos 15 minutos regulamentares de fama preconizados por papa andy warhol - ai, essa referência já é clichê do clichê, né? fama de 15 minutos é tsunami.
@
penso sobretudo no ritchie. ritchie é um grande cara, um grande cara. "vôo de coração" (epic/cbs, 1983) é um grande, grande, grande disco pop. emocionante acompanhar os gestos precisos/sofisticados de ritchie lá no palcão/balcão directv, sua musicalidade ainda um pouco mais afiada que 20 anos atrás. pois a platéia estranhou, congelou, parou de pular. mistério. a platéia parece exigir que ritchie ainda seja o mesmo e viva como nossos pais. platéia é fogo.
@
porque, sim, a pulou a beça durante a refestança. quando roger cantou "nós vamos invadir a sua praia" e "inútil" (ambas do lp "nós vamos invadir a sua praia!", ultraje a rigor, wea, 1985), a casa veio abaixo, para usar outro clichê do clichê, tipo "no olho do furacão". fiquei pensando, fiquei, sim. "nós vamos invadir a sua praia!" é legal porque foi um dos únicos momentos da história do pop brasileiro em que os paulistas tentaram ocupar espaço com discurso construtivo, sem muro das lamentações ("separa um lugar nessa areia/ nós vamos chacoalhar sua aldeia", paulistas provocavam cariocas). os paulistas queriam roubar a areia dos outros, ou só queriam um cantinho ao sol? com a palavra, paulistas & cariocas...
@
já "inútil" é caso mais complicado. num brasil que não tinha eleição direta nem muita perspectiva de futuro, era feroz e ferino proclamar que "a gente não sabemos escolher presidente/ (...) a gente somos inútil". era crítica ácida e mordaz, captou? aí me assusta um pouco ver em 2005 a plebe rude (eu inclusive) cantando em coro "a gente não sabemos escolher presidente". porque, vá lá, a gente até podemos cantar isso pra gente nos divertirmos. mas, espera lá, de ultraje a rigor para cá a gente já aprendemos a eleger presidente! a gente aprendemos de montão com o fiasco collor (e com a mordacidade ácida do ultraje a rigor), e na minha modesta opinião tudo só tem melhorado desde o (não-eleito) itamar franco para cá, a ponto de os gringos já nem pensarem mais que a gente é indigente (humpf, não que isso seja termômetro de nada, ó, colonialistas)!
@
mas, então, falando em "olho do furacão"... outro dia aqui no blog(ue) aprendemos com o paulo eduardo que o "olho do furacão" é, na verdade, surpresa!, um ponto de completa calmaria - o contrário do que se pensa quando se late, mia e pia "o olho do furacão", au au au, cocoricó. me faz lembrar de outro clichê, "cortina de fumaça": com o perdão dos clichês dos clichês, tô achando que olho de furacão é uma cortina de fumaça. e isso me faz lembrar, enfim, o escândalo destes 15 minutos de agora (alô, andy), de quando o falastrão lula deslizou possíveis maracutaias da época do papudo fhc. aí pronto, o escândalo de (ir)responsabilidade se localiza todinho debaixo do papo do sapo, da papada do lula (ave, papa joão paulo). mas, vem cá, não dá para abaixar a cortina da fumaça e sair do olho do furacão? porque eu quero saber se afinal os tucanos paparam minhas merrecas ou não!!!!
@
e a enésima tentativa de evandro mesquita de ressuscitar a blitz? a blitz era uma grande banda, uma grande banda. o lp "as aventuras da blitz 1" (emi-odeon, 1982) mudou a minha vida, mudou a vida de um monte de gente. e era bom à beça, embora à época a gente não soubesse escolher presidente e tivesse um pouco de vergonha de sequer pensar que aquele descompromisso todo pudesse receber o rótulo de "bom". mas é chato ver, hoje em dia, umas moças jovenzinhas de lindas pernocas ocupando o vácuo de márcia bulcão e fernanda abreu. meu, quem fazia os vocais da blitz era fernanda abreu!!, e isso é tão histórico quanto o fato de o lobão ter sido baterista da blitz!! respeito à fernanda abreu é bom e a gente gosta!!
@
aliás, minha amiga marcia bechara se assustou com a ausência do lobão no festim. não se assuste, pessoa. seria o máximo, mas para participar de um projeto como aquele (gerenciado pelo espertíssimo alexandre ktenas, homem criado e nutrido dentro da grande indústria) o lobão teria que ser o antilobão, não o lobão. fico imaginando a xingança que seria sua presença naquele convescote cinzento - "o rock errou, seus teletubbies!" seria o xingo mínimo. alô, lobão!
@
ah, tudo isso me lembra de "popsambalanço & outras levadas" (rca/bmg, 1989), do lulu santos. qualquer hora quero falar desse disco aqui...
@
ah, e tem o leo jaime. tem gente que fica horrorizada, mas eu, pessoalmente, adoro a barriga proeminente do leo jaime. porque ele podia estar escondido em casa, acreditando que roqueiro barrigudo não pode, mas, que nada! quem foi que falou que não pode?! a voz de leo jaime está intacta, ele continua cantando (bem) como cantava nos coloridos anos 80. então sem essa de horror, hein? sem essa de ditadura estética, que isso é papo de casca. que me lembra, inevitavelmente e com muito prazer, de lady marianne faithfull. pois a ex-garota de mick jagger, a mais linda e loura dos anos 60, há poucos anos posou de biquíni na capa de uma revista européia, do alto de seus 60 anos, de suas rugas e de suas abundantes, lindas e expostas pelancas. genial, de chorar de comoção. aumenta que isso, sim, é que é rock'n'roll!
@
sobre o retorno dos dinos, o ritchie diz "eu já sabia!" (estava escrito na sua camisa). fico dividido entre um sentimento de revival de revival da jovem guarda (esse também rola a cada data redonda, e os caras parecem prisioneiros desse eterno retorno) e um outro bem diverso, bem traduzido pelo leo jaime quando disse, no show de sábado, que segue sua carreira com dignidade e totalmente independente (in-de-pen-den-te) dos desvarios das grandes gravadoras. a permanência, afinal, é plástica ou pelancuda? ou é ambas, tudo ao mesmo tempo agora? vou pela terceira hipótese, acho.
@
tem uma outra sensação que sempre me vem, e me vem da música da neusinha brizola (saudades de neusinha!, filha rebelde do leonel, se não me engano aquele que cunhou para lula o pixe "sapo barbudo"): "a cobertura era uma quitinete, a festa [de arromba] era mintchura". os anos 80 me têm esse sabor. mas acho que mintchura era muito mais o festim diabólico das gravadoras que o talento & a gana daqueles artistas.
@
aliás, eu dou gargalhada até hoje duma coisa que li neusinha brizola dizer no tempo em que os pterodáctilos ainda voavam. diz que perguntaram o que ela fazia quando sentia vontade de fazer ginástica. "sento e espero a vontade passar", disse ela. alôôôôôô, marianne faithfull!!!!!!!!
@
quitinete é legal, apesar de apertado. quitinete é o vira-lata dos apartamentos. como o vira-lata é o fusca dos cães. como o fusca é o pirulito dos carros. como o pirulito é o roberto carlos dos doces. como roberto carlos é a quitinete, o vira-lata, o fusca e o pirulito dos cantores. rendo vivas aos vira-latas (alô, galã). até porque sangue azul, neste mundo onde tudo se mistura, é tudo truque, puro perfume, mera mintchura.

sábado, fevereiro 26, 2005

fale pelos joelhos

pausa para uma canção.

"meu ego"
(roberto carlos-erasmo carlos)
.lançada no disco "os meus amigos são um barato" (nara leão, phonogram/philips, 1977), em dueto com erasmo carlos
.revisada no disco "pelas esquinas de ipanema" (erasmo carlos, phonogram/philips, 1978), só com erasmo carlos

por favor, meu ego,
não dê força ao prego
que nos põe contra a parede
pra nos afogar de sede

chove, chuva,
na sua boca
você não bebe
há palavras
existem letras
mas você não forma as frases loucas que cultiva por aí

fale pelos cotovelos
e pelos joelhos
me critique sem razão
se omitir não vale a pena

mas não polua
minha cultura
não venha dividir comigo sua autocensura
me desencontre
não me prostitua
senão seremos mais uma carcaça em desgraça por aí

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

vinicius, bossa nova, maricotinha, sambão jóia & a falta que nara leão faz

não me soa de fácil assimilação o novo disco de maria bethânia, "que falta você me faz - músicas de vinicius de moraes" (biscoito fino, fevereiro de 2005).

{mas, ó, como anda abundante a carreira de maria bethânia desde que ela rompeu com o esquemão das multinacionais de música!! é um disco atrás do outro, e de nenhum deles qualquer um de nós poderia dizer, esnobando, que "é ruim".}

é que por mais corpulento e importante que seja o legado de pai vinicius, ainda torço o nariz nas 100 mil vezes que tenho de ouvir "gente humilde", nas 200 mil vezes que tenho de ouvir "minha namorada", nas 300 mil vezes que tenho de ouvir "a felicidade"...

{mas, ó, como é acachapante a releitura da explosiva intérprete para a batida "a felicidade", aquela canção aparentemente inevitável daquela frase tão linda quanto bocó, "tristeza não tem fim/ felicidade, sim".}

ok, eu poderia abrir novos colchetes para dizer que, em 2005, maria bethânia ainda é a maior cantora brasileira viva - porque soma dons de cantar com dons estéticos, políticos, ideológicos, posturais etc. etc. etc. mas não quero falar obviedades e redundâncias. chega de colchetes.

nas fímbrias de suas pequenas qualidades (um pandeiro de samba baiano aqui, uma canção recolhida do anonimato ali), "que falta você me faz" me soa meio chato de ouvir. mas sua chatice (ou sua virtude) é valor secundário, não tem assim muito a ver com o que há de central no fato de o disco existir, no fato de bethânia andar tão produtiva.

o que mais me atordoa em bethânia e em "que falta você me faz" é a falta que nara leão me faz, é a falta que nara leão faz a maria bethânia, é a falta que nara leão faz ao brasil.

há tempos tenho a impressão de que tudo que maria bethânia faz é feito para agradar, honrar e emocionar nara leão - e não importa que nara leão tenha morrido jovem demais em 1989; isso é o de menos.

em 1965, no espetáculo musical de tez cepecista "opinião", nara interpretava (e era) a dondoca que amalgamava arquétipos com o retirante nordestino joão do vale e o sambista de morro zé keti. cantava, com sua voz pequena e quase suave (quase, porque andava muito brava, a ponto de enfurecer com sua vozinha mínima os generais ditatoriais), músicas fortes e agressivas como a panfletária "carcará".

pois então nara ficou doente e precisou de substituta. e indicou a semi-anônima bethânia para o "opinião". provavelmente embebida na angústia da influência de nara, bethânia a contrariou e cantou "carcará" trovejando, prenhe de raiva. a dondoca carioca (nascida por acaso no espírito santo, terra de roberto carlos) cedia lugar à interiorana chucra, o rio de janeiro cedia vez à bahia e ao brasil todo. e a vida de bethânia nunca mais foi a mesma. agora ela era uma estrela.

vinicius, sim, vinicius... mas, para lembrar como bethânia não respira sem suspirar nara leão, é melhor pensar em roberto carlos. em 1993, em "as canções que você fez pra mim" (polygram/philips, 1993), maria enfrentou preconceitos de monta e dedicou disco inteiro (e algo cafonoso) à obra romântica de roberto (& erasmo). ora, fazia-o à sua moda, mas ainda assim reproduzia (homenageava) o que nara havia feito 15 anos antes, em "e que tudo mais vá pro inferno..." (phonogram/philips, 1978).

na primeira ocasião, nara rompera tabus na mpb, tratando com desmedido carinho o repertório dito "cafona" de (erasmo &) roberto - "cavalgada", "proposta", "o divã", "a cigana" etc. bethânia apreendeu isso de nara em 1978 e desde sempre, desde que a madrinha, em 1968, aceitara e abrigara sob suas asas os ainda duvidosos cafonas-chiques tropicalistas (dos quais bethânia sempre quis se diferenciar).

foi muito por causa de nara que maria se fez porta-voz de não-unanimidades como raul seixas (cantou "gita" em 1975), gonzaguinha (em 1976 e sempre desde então), adelino moreira ("negue", 1978), rita lee (& roberto de carvalho) ("baila comigo" e "shangrilá", 1982), almir sater & renato teixeira ("tocando em frente", 1990), até o relicário caubói-mauricinho de zezé di camargo ("é o amor", 1999).

e aí o vinicius, o vinicius. surge desse mesmo gêiser de enfrentamento o melhor da loa de bethânia a vinicius (algo que nara nunca fez propriamente, apesar de ser a mulher de origem da bossa nova e de ter gravado sempre e sempre as bossas de vinicius).

pois em "que falta você me faz" aparece em cachoeira o parceiro tom jobim (menos, graças a deus, "garota de ipanema"), mas aparecem também parceiros, ops, secundários, como adoniran barbosa (na linda e triste "bom-dia, tristeza"), carlos lyra (em "você e eu", transtornada em algo alegríssimo), jards macalé (sim, macalé, aquele mesmo que foi banido pelo tropicalismo e baniu de sua vida o tropicalismo), baden powell (vibrante & cafoninha, o afro-samba "samba da bênção" parece sob medida para os carinhos & o rugido de bethânia).

o massapê, em suma, é de diversidade. bethânia não elege corriola, não cai no truque de que vinicius é só tom (& vinicius), de que não há vinicius sem tom. "é melhor ser alegre que ser triste", relampeja maria, explicitando o vinicius (& baden) de "samba da bênção" que era contra o (tom &) vinicius de "a felicidade", explicitando o anti-vinicius em vinicius. (só faltava ela receber a anti-bethânia e cantar "a coruja", que elis regina ensombreceu em 1980 em "a arca de noé", um quitute "vinicius para crianças".)

por essas & outras, o momento mais especial do disco pode ser "tarde em itapoã", samba jóia bem baiano de vinicius & toquinho. ei. samba jóia foi apelido dado ao sambão mais cafona que vicejou nos anos 70, sob antonio carlos & jocafi, benito di paula, os originais do samba, tom & dito... e todo mundo parece querer relevar e esquecer, mas o poeta sofisticado & distinto diplomata & co-autor do monolito "chega de saudade" também fez, sim, samba jóia, sob a fórmula toquinho & vinicius (saudades, ó, da "tonga da mironga do kabuletê"... alô, marília medalha...). bethânia arrasaria quarteirão se rezasse um disco de sambão jóia para o velho poeta -mas, não, ela quer drenar a diversidade em vinicius; não provoca maremoto, mas ao menos sopra brisa. e derruba mais alguns fiapos de preconceito.

{chega de vinicius, agora.} ainda há mais de nara em "que falta você me faz". nos pandeiros, pratos, afoxés, ganzás, tamborins, moringas e timbaus do disco, maria reelabora o rosário que vem avolumando ao longo de "maricotinha" (bmg, 2001), "brasileirinho" (quitanda, 2003), o tributo a rosinha de valença "namorando a rosa" (quitanda, 2004): o mergulho não narcisista no lago espelhado; a entrega total de si mesma ao brasil profundo, ao brasil interior; o vislumbre da imagem limpa do rosto sem maquiagem no espelho brasil.

ainda ali mora nara leão, brasileira aguerrida, deserdada e desertada (alô, rosinha, essa menina...) que em tempos imemoriais dedicou um disco inteiro a canções interioranas e/ou infanto-juvenis feito "atirei um pau no gato", "fiz a cama na varanda", "casinha pequenina", "a saudade mata gente"... chamava-se "meu primeiro amor" (phonogram/philips, 1975) (depois bethânia também quis cantar a canção-título pescada em cascatinha & inhana)... era feito por nara para ninar suas crianças (& sua mãe & seu pai)...

{nara, em 1975, já se desencantava aos poucos com a música sob a maldição da ditadura. "que falta você me faz" é meloso & importante. nara leão raramente foi ouvida em toda sua imensidão e grandeza. maria bethânia não teve filhos. nara leão, rosinha de valença e vinicius de moraes hoje são filhos de maria maricotinha bethânia.}

terça-feira, fevereiro 22, 2005

300 (milhões de) picaretas

vou recorrer novamente a nelson rodrigues, eu preciso.

acabava o carnaval de 1968, e de primeira mão ele lançou uma crítica assim bem moralista ao excesso de nudez na televisão, durante o carnaval - nudez, à época, era mais uma profusão de umbigos pelados (e suas vizinhas cicatrizes de apendicite) que qualquer outra coisa.

pois bem, o nelson chiou, mas depois corcoveou e fez uma curva por sobre si mesmo, alguns dias mais tarde, quando se irritou com um editorial de cunho ainda mais moralista, publicado pelo concorrente "jornal do brasil" (nelson escrevia n'"o globo"). "nazistas", desferiu o ululante, que encrencava em especial com passagem em que o "jb" exprimia indignação contra o assalto dos umbigos televisivos aos "lares da cidade". e o nelson, para nosso gozo e júbilo: "mas de onde pensa o 'jornal do brasil' que saíram os umbigos, as cicatrizes, os quadris, os nus?". hahahahaha.

isso aí veste justinho em nosso tempo, né? sei que o assunto severino já está ficando velho (quando fica velho a gente joga fora, não é o que ensina a "sabedoria"?), mas olha como veste. volta e meia se repete esse rebuliço de indignação contra as peraltices de nossa excelentíssima câmara de deputados - agora é porque saíram do armário e elegeram o severino, o severino, o severino. aí diria o nelson: mas de onde pensam vocês que saíram os deputados, os senadores, os severinos, os políticos? eureca, saíram todos todos todinhos de dentro dos lares do brasilzão, valha-me deus, nossa senhora.

e aí me pergunto: a fúria moralista que nos acomete de tempos em tempos e nos arremessa contra nosso próprio parlamento é o quê? em que medida ela é a indignação moral sincera que volta e meia recrudesce e nos traz a gritar ao léu, do alto de nossa reputação ilibada, contra os supostos "300 picaretas" (alô, sr. lula)? e em que medida ela expõe (porque pensa ocultar) uma nossa dor de cotovelo, que volta sempre que se esfrega no nosso nariz que nossos deputados, senadores, severinos e políticos são todos iguaizinhos a nós, exceto pelo fato de que eles são deputados (e têm pleno acesso à mamata), e nós não?

ah, mas espera aí. isso aqui não é uma defesa do parlamento, não, viu? não é para elogiar aquela patota do barulho, é para dizer "melhoremos nós, que melhoram eles". a propósito, eu tenho fé e sei que não tarda nem um pouco a nascer no cocoruto de severino cavalcanti uma portentosa galhada de lantejoulas douradas, com muitas bolas natalinas coloridas dependuradas. vai ficar um luxo, simplesmente.

eta, seu nelson. estaca zero.

ih. tá faltando música neste treco?

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

o ranheta

ai, dá licença de implicar?

obrigado.

então. dos modismos todos que sempre costumam nos invadir, o da hora se chama "tsunami". veio lá na ásia um treco que a gente não sabia que existia (feito assim a freira dorothy, para quem não é ambientalista, sem-terra, grileiro ou posseiro), arrasou tudo (a gente gosta quando arrasa?) e aí a coisa ganhou existência, não só porque aconteceu, assustou e arrasou, mas também porque foi batizada, porque a água benta maldita aspergiu: tsunami.

aí chegamos nós, os jornalistas, de rádio, vídeo e papel, de terra, mar e ar.

não mais que de repente, tudo nos vira, num espirro, tsunami. se a câmara federal é invadida por uma "onda" (ó, marola mansa da maré) de votos imprevistos: é um tsunami de severinos (oxe, santo preconceito irredutível contra severinos, raimundos e sebastiões). se a tv filma a pororoca: é um tsunami de águas selvagens. se saem dois livros sobre um mesmo assunto: deu-se um tsunami editorial. se ronaldo se casa: ronaldinho, o felômeno, se converteu num tsunami. se, se, se...

pois isso me irrita de um tanto, te contei, não? quantos tsunamis de araque ainda teremos que suportar, ó, eternas ondas? é muita retórica robótica, recurso fácil, preguiça rotorizada. não é índice de falta de criatividade, é índice de inércia, mesmo. para que gastar outras imagens menos mastigadas, se tsunami todo mundo tá entendendo?

impliquei: em sua vigorosa mediocridade, a banalização do "tsunamismo" é, por estes 15 minutos de voga, igualzinha ao amor que o rei andava sentindo por sua esposa morta: sem limites. e tão mórbida quanto.

abaixo a vitrola furada. chega de (m)água. abaixo a morbidez.

p.s.: sou jornalista, e neste texto a palavra "tsunami" fora flexionada dez (d-e-z) vezes. agora já são onze (o-n-z-e)! cáspita (alô, mariana)!

pronto, desimpliquei.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

nóis(e), esquema novo

por que o centro (alô, lucia valentim!, alô, sampacentro! sou fã de vocês!) anda me perseguindo? hoje foi vez da estação são bento... a estação são bento respira hip hop, é impressionante. e o centrão me parece um lugar cada vez mais bonito, arrumado e civilizado. embora os rappers reclamem (com razão) da "faxina" que as "otoridades" "promoveram" na estação, lá nas entranhas da são bento é chocante: tudo hoje é organizado, arrumado, bonito, civilizado. os meganhas podem reprimir os manos, impedi-los de zoar por ali (eles o fazem, e isso é selvageria), mas a história não esquecerá jamais que foram os rappers, os supostos "desordeiros", que re-civilizaram aquela região.
@
procure passear pela rua são bento (de preferência num dia ensolarado), pra ver o que é bom pra tosse. é linda, linda, linda de morrer. os calçadões são charmosíssimos, comércios "sofisticados" e surtados engravatados convivem em quase-harmonia com subempregados que gritam "ótica, ótica, ótica, otca, otca" em moto contínuo, com lojas tem-de-tudo, com senhores vestidos de palhaço anunciando no microfone a ilha da fantasia dos empréstimos populares. e, embora tudo respire hip hop, à procura de fitas virgens encontrei lá uma loja "popular" de cds, sensacional. o disco mais caro custava R$ 14,99, e tinha de tudo (trouxe um zeca pagodinho antigo, bem do começão), de samba a rap, de mpb "séria" a rock gringo, de música clássica a calypso. tudo a precinhos baratinhos, mano(a), tá marcando touca.
@
tem um dos pais atávicos e simbólicos do rap que tá voltando mais uma vez. é o j.t. meirelles, o homem que formatou o primeiro som de jorge ben, o "samba esquema novo" (companhia brasileira de discos/philips, 63), o passo adiante na história da bossa nova, o passo à frente na história do samba, o pulo do gato na história da música brasileira. naquela época de samba-jazz, do jair rodrigues cantando "deixa isso pra lá", de cantores de protesto e "rappers" do iê-iê-iê se cansando quase juntos da bossa nova. pois o meirelles tá com disco novo no forno, e vai sair de novo pela dubas, a gravadora independente do ronaldo bastos, dândi do clube da esquina e amigão do anjo deserdado torquato neto. [antes da dubas, meirelles, que é um negão que nasceu bem branquelo, estava às moscas, zanzando meio perdido por copacabana. tive o prazer de entrevistá-lo, é história viva e ambulante]. segundo me diz a dubas (alô, feliphe!), o disco novo é "uma brincadeira com os arranjos que ele fez para o 'samba esquema novo', do jorge ben. tô passado. e ansioso.
@
e a freira dorothy, hein? como ela morreu, sua morte virou "culpa do governo", "culpa desse", "culpa daquele", tudo isso aí que se ouve em todo canto. nunca tinha ouvido falar nessa freira. se não morresse, permaneceria no anonimato - se não viesse a ser tachada de ridícula, subversiva e perniciosa, como sempre são os caras do mst. agora, pronto, virou instrumento da apontação de dedo, da ansiedade das pessoas pela atribuição de "culpas". posso trocar "culpa" por "responsabilidade"? e perguntar se os apontadores de dedo também não têm nenhum naquinho de responsabilidade pela morte da freira?
@
dorothy é uma coisa "mágico de oz", né? e stang é quase sting, deus me livre. não gosto muito de freira, mas fui com a cara da dorothy stang quando a conheci, nas fotos. pena que ela já tava morta.
@
e o severino, hein? até no congresso nacional, quem diria, os caras estão querendo virar independentes, alternativos, "indies"! agora é moda! é claro que o severino parece ser uma lástima quase completa, com malufismos, ditatorialismos e fobias sexuais expressas com viço e orgulho em currículo e em bravatas. lastimável. lastimou, feriu, machucou. mas, por outro lado, tô nem aí se o pt "perdeu" ou "ganhou". quero é saber se o brasil perdeu ou ganhou (ou se perdeu e ganhou - porque a gente sabe que em geral tudo costuma se misturar). e queria achar legal ver os legislativos se desamarrando dos executivos, o governo lula tendo diminuído seu poder de fazer a festa da uva, de se entojar de dono todo-poderoso da bola. se é que é isso que vai acontecer com o severino na garupa do poder... - que deus e logunedé (o orixá que também gosta de homem com homem e mulher com mulher) nos protejam e protejam (e pretejem) o severino...
@
abominei as sandices do severino, que eu também desconhecia (diz que ele é do baixo clero, será que a freira dorothy também era do baixo clero?). dá uma tentação de abominar o severino, em regra, 100%. mas pelo menos ele é pernambucano.
@
lembra do genival lacerda, aquele figuraço que cantava com a barriga (diferente e semelhante da carla perez, que cantava com a bunda)? pois uso as palavras dele pra falar do severino. diz que severina xique-xique montou uma butique para a vida melhorar. que antigamente severina era muito pobrezinha, ninguém quis lhe namorar. a letra do genival era bem preconça, mas escuta aqui, seu severino xique-xique, a gente tá de olho na sua butique, viu? se quiser garfar o nosso pra engrossar a farra dos de-puta-dos, a gente vai engrossar. pode não, bichinho. te cuida, severina.
@
antigamente eu não gostava de rap, não conseguia entender, decodificar, assimilar. mas depois mudei (e devo essa, em parte, ao nelson de sá). e, hoje, desculpa aí quem não concorda, acho que quem não gosta de rap bom sujeito não é. é ruim da cabeça. ou doente do pé.
@
aliás, nos dias de hoje até o chico buarque e o josé ramos tinhorão já se ligaram na rima, quem diria. o mundo tá mesmo ao contrário e ninguém reparou.
@
e um cara importante, paulista, que entende do riscado (não vou dizer quem), me disse: "o funk carioca é o rap do rio de janeiro". se liga, mermã(o), qual é a diferença entre o charm e o funk? alô, tetine!, alô, comanche!
@
a estação são bento, como o rap, parece um caramujo, um caracol, um escargot. é toda bonitinha, estética e rebuscada. se retorce em espiral, se esconde dentro da casca, corcoveia entre a superfície e o subterrâneo. tem antenas. vai bem devagar. e longe.

terça-feira, fevereiro 15, 2005

protein pills: mastiguinhas

então, o passeio continua. só porque falei, acabou que domingo fui finalmente conhecer o antiqüíssimo mercado municipal (que é lindo e fofo, alô, gabriel!). tem mil brasis lá dentro, brasis que se unem para descombinar a convenção estúpida de que "povão" tem baixo grau de exigência, e merece pouco, e vai ficar sempre com os restos. balela, lá é chique no último. tem até pros novos-ricos contaminados pelo macróbio da cosmopolitite, que encontrarão em cada barraca dezenas da mais nova fruta do pedaço, uma tal de pitaya, de que eu nunca tinha ouvido falar e que segundo o moço explicou tem um gosto assim de um kiwi. é a coisa mais linda do mundo, parece uma mistura de rosa, romã e alcachofra, vermelhinha de doer. mas quando o moço falou que tinha gosto de kiwi, minha curiosidade diminuiu - acabei nem experimentando. tudo bem, assim tenho pretexto para voltar lá caso essa pitaya vire mesmo um novo kiwi, uma nova lichia, qualquer coisa dessas bem "frutas-do-mundo".
@
falando em fruta(o)s do mundo, fico sabendo que a dupla mais brasileira da paróquia, tetine, arrasou na coletânea de funk carioca e agora está preparando uma outra, desta vez sobre o pós-punk brasileiro - !!!. isso vai acontecer a partir de londres, inglaterra, por uma gravadora independente das mais bacanudas (alô, eliete, bruno, esqueci o nome!...). e eles vão ligar os fios que nós, donos dos "no-waves" brasileiros, ainda não ligamos, de gang 90 & absurdettes a tokyo (ou não?). cada coisa que acontece no mundo, né?
@
por falar no mundo, quero perguntar. por que as pessoas não gostam mais do que andam fazendo, na maturidade, artistas "eletrônicos" "do mundo" como the chemical brothers e fatboy slim? nossa, eu acho tão bacana, tão mais moderno o som deles hoje!...
coisa aparecida acontece com o rock. eu, que nunca vi nada nos manic street preachers, vou agora me convencer do som deles justamente quando começam a brotar "acusações" de que eles estão decadentes... eta, sujeito pra ser sempre do contra...
@
ih, e diz que a revista "bizz" vai voltar (alô, ricardo alexandre!), que emoção! guardo vívidas até hoje as emoções de ler as primeiras "bizz", conhecendo quase nada daquele mundo musical de que eles falavam com tanto entusiasmo. por falar em emoções, tenho dito nas entrevistas do "como dois e dois são cinco": foi graças à "bizz" que dei o primeiro passo rumo a perder o medo-pânico-terror de roberto carlos, quando eles indicaram na seção "discoteca básica" o disco "é proibido fumar" (cbs, 64). obedeci, comprei, estranhei, desgostei, rejeitei, comprei mais um ("jovem guarda", cbs, 65), descobri "quero que vá tudo pro inferno", e aí o ribeirão foi correndo devagarzinho, até virar o rio amazonas, amazônia, insônia do mundo. era emocionante, sem a "bizz" minha vida não teria sido a mesma, fico emocionado duplamente em saber da volta da "bizz". firmeza aí, ricardo!
@
ah, mas o passeio. uma das melhores coisas da estréia no emprego novo é que agora praticamente trabalho na avenida paulista!, que não é assim um anhangabaú, mas é outro riozão de acontecimentos. ainda meio barata tonta, voltei do trabalho a pé, atravessando meia paulista e dois terços de angélica, e fiquei especialmente impressionado com duas coisas. a primeira é o tanto de conhecido e amigo (alô, gheirart!) que a gente encontra na rua quando anda a pé por ali - que delícia. [antes da segunda coisa: a angélica estava cheia, lotadinha de calouros carecas pintados humilhados, essa estranhíssima mistura de selvageria e rito de passagem, de truculência e ternura; hoje eu também estava me sentindo um calouro...]. então, mas a segunda coisa impressionante são os malucos da paulista e da angélica, tão numerosos e criativos.
@
também deparei com um moço loiro, barbudo, bem vestido, que na angélica me pediu três reais. um dia antes, quase no mesmo lugar, um negro bem vestido havia me pedido uns trocados - para poder voltar para itaquaquecetuba. esmolas sem molambos, de volta a cuba, de volta ao brasil. ou cuba É o brasil?
@
mas os malucos, tantos malucos. tinha a moça que dançava feito bailarina na esquina. tinha o bêbado-morador-de-rua que conversava com outros dois molambos sem esmolas iguais a ele e apresentava seus três cachorros - era verdade, eu vi um deles; era de madeira, mas era um cachorro, sim ("late", atiçou o maluco quando passei; ele não latiu). a terceira, mais teatral e cinematográfica ao mesmo tempo, era uma mulher (ou travesti, não consegui decidir até agora) de vestido social e cabelos louros cacheados e longuíssimos (parecia peruca), que flanava esvoaçante em plena paulistona. era algo meio marilyn, não tinha como não ter o olhar magnetizado para aquela figura. aí a loucura: ao mesmo tempo que meu olhar se atraía para dentro do rosto daquela loiridão, a moça (ou ex-moço) se assustava com meu olhar, se crispava e escondia com a mão o rosto por trás do cabelo, cabeleira, cabeluda(o), descabelada(o). seu rosto era todo deformado. na sirene de panos e mechas de cabelo-canecalón, ela(e) sugava meu olhar para seu rosto, apenas para que eu me chocasse com suas deformidades, apenas para que ele(a) se chocasse com meu choque e comprovasse em meu choque suas ruínas. tanta poesia.
@
variedade parecida também encontro quando resgato nos sebos discos esquecidos, obnubilados, estranhos e esquisitos que foram feitos no passado do brasil e que gosto cada vez mais de ter, conhecer, cavoucar. descubro que em "rebu geral" (fif fermata, 81), dos ex-iê-iê-iê eduardo e silvinha araujo, há uma música em "homenagem" a rita lee. quase imitando a melodia pop vitoriosa de "lança perfume", os araujo resmungam assim: "você que pixava tanto a mpb agora está de quatro faturando cachê/ será que esse sucesso vem mesmo de você ou se foi produto da nossa tv?/ lança, lança, lança, menina, mais um sucesso e fique por cima". sem nem citar roberto de carvalho, completam, propriamente grosseiros: "mesmo de quatro, te acho um barato". aprecio o pixe, o desabuso e a implicância deles, mas, bem, aí é mesmo um caso do roto reclamando do rasgado, né? pois o que o (ex-parceiro de carlos imperial) eduardo araujo condena em rita lee não é exatamente o que ele próprio havia feito nos anos 60, no auge da jovem guarda? mas, ok, dane-se, pixe é legal e eduardo "o bom" araujo e o parceiro lula martins têm todo o direito - afinal, os iê-iê-iê entendem tudo de ser pixados, só não foram condenados à cadeira elétrica nos anos 60 porque não havia (há) cadeira elétrica no brasil. não havia (há)?
@
tarde demais para incluir no "como dois e dois são cinco", leio só agora uma entrevista do erasmo carlos para a "playboy", datada de 1980. olha só este trecho da fala do tremendão: "o curioso é que as portas da jovem guarda sempre estiveram abertas para todos. nós gostávamos de samba, de tango, de rock - o importante é que fosse bom, não importava o ritmo. ninguém era reacionário na jovem guarda. reacionários eram os outros. em 1966, nós levamos o jorge ben, que era do 'fino da bossa', ao nosso programa 'jovem guarda'. só por causa disso ele não pôde mais cantar no 'fino da bossa'. então ficou conosco no jovem guarda". erasmo é um lorde, pixa sem dar nomes aos bois, mas dá para perceber quem ele está chamando de "reacionários", né? elis regina, chico buarque, edu lobo, geraldo vandré... mais um caso da alquimia entre roto & esfarrapado, só mais um.
@
e no lindo disco "canto dos homens" (phonogram/philips, 76), do mpb 4 (alô, aquiles!)? ali descubro uma canção que nunca ouvi antes, "foi-se o que era doce", composta pela dupla joão bosco-aldir blanc [jesuuus (como diria tati quebra barraco), como eram boas as composições desses dois, mesmo quando eram chatas!...]. era uma fábula que citava xaxado, festa junina, alimentos tão variados quanto "inhame e bobó, frango assado, cuscus e maracujá" (alô, mercado municipal!, alô pastel de carne seca!, alô, dona marta suplicy!) etc. mas olha aqui o pedaço mais legal, das coisas que bosco & blanc testemunham no "bobó de noivado da fia de ribamar": "jabaculê, virge, espetacular, assunto assim às veiz é mió calar". cê tá entendendo? o jabá (suborno entre gravadoras e emissoras de tv/rádio, pra mode moldar, provocar, forçar e fraudar as preferências musicais do "povão") já virava o ouro das gravadoras, e bosco, blanc e o mpb 4 ousavam denunciar o jabaculê de dentro da poderosa philips, que deve ter comer muita carne seca para crescer forte, saudável e musculosa [aliás, veja como é a vida: comi jabá domingo no mercado municipal; não gostei muito, não, gostei mais do escondidinho].
@
cê tá entendendo? nem eu. o mpb 4 certamente estava naquele time dos que erasmo carlos xingava de "reacionários" (que, por sua vez, sempre viram roberto & erasmo como diletos "reacionários"). o mesmo mpb 4 logo em seguida se engajou no musical infantil ultracomunista "os saltimbancos" (phonogram/philips, 77). magro virou o tinhoso jumento e ruy foi ser o cão obediente no mundo-cão, nas poderosas companhias da galinha poedeira miúcha e da gata mais gata deste mundo, nara leão. por trás de tudo, o chico buarque, moço progressista?, ou reacionário?...
@
ah, pois é, o mpb 4. recentemente o aquiles, um dos quatro do mpb 4, escreveu num livro de memórias ("o gogó de aquiles", girafa, 2004) comovente mea culpa pelo fato de ter ajudado a mpb a isolar wilson simonal, num episódio que descarregou na cacunda do "crioulo" "folgado" séculos de fantasias de rancor, vergonha, miséria (câncer?, sífilis?, lepra?) de toda uma nação torta como dois e dois somando cinco. pois não é que isso me faz lembrar que em 83 simonal, já 100% caído em desgraça, gravou (em "simonal", wm/fermata) a música "galo-galã", co-escrita por... rita lee? pois a porra-louquinha semi-esquerdista foi das únicas pessoas viris o suficiente para lembrar que, em pleno desterro, simonal continuava a existir (antes ela própria, pixando a mpb em "arrombou a festa" o chamara de "o velho e chato simonal", o que, desconfio, era despiste para pronunciar o nome do abominado, do abominável).
@
afinal de contas, entre rotos & feridos, quem é o reacionário?, quem é o progressista? ou será que o reacionário É o progressista, e vice-versa?
@
ih, sei lá, compliquei. mudando de conversa (alô, doris monteiro!): eu adorava "os saltimbancos" quando era pequeno; e também o "sítio do picapau amarelo", versão globo. e as "pílulas falantes" que ando escrevendo me fizeram de repente lembrar da "space oddity" de david bowie. era 69, e o "culto" bowie, mega-influenciado, se nutria da solidão do astronauta de "2001: uma odisséia no espaço" (68), de stanley kubrick [o mesmo kubrick que fascinou e fascina o "inculto" erasmo carlos, mais por "laranja mecânica" (71) que por "2001"]. em bela letra simbolista, bowie conta do astronauta que coloca seu capacete, toma suas "protein pills", suas pilulas proteicas, e parte para o espaço, para o vácuo, de onde viverá a ruína de perder contato com o planeta terra, exatamente como acontecera com o cosmonauta de "2001". "planet earth is blue, and there's nothing i can do", lamenta major tom, alter-ego do astrobowie, em rima das mais cortantes.
@
um assunto puxa o outro, e as protein pills de bowie me evocam minhas mastiguinhas. é coisa anos 80, quem esteve lá (alô, ivan finotti) há de lembrar que houve então uma coqueluche de vitaminas infantis compráveis em farmácias. batizadas com o sugestivo nome de "mastiguinhas", eram de várias cores e sabores, e em comum tinham o fato de serem vitaminas e de terem de ser consumidas uma por dia, apenas uma por dia (tipo assim um yakult). minha mãe pendurava num prego na parede, a embalagem era outra lindura, uma caixinha de papelão com ganchinho e um sorriso desenhado num buraco guardando o vidrinho com as pastilhas coloridas - que, pelo buraco, ficavam à mostra, suculentas. eu olhava aquilo o dia inteiro, o dia todo, doidão para comer 30 mastiguinhas por dia. mas não comia, comia só uma, como mandava o figurino.
@
mas às vezes eu ia escondido à cozinha e comia umas a mais. magro & guloso, desobedecendo para obedecer, obedecendo para desobedecer, com medo de morrer de congestão ou de intoxicação. mas comia.
@
mastigando quando tudo se mistura: na outra noite sonhei de novo com o mar, dessa vez eu andava de jet ski (ou algo que o valha). aí acordei. aí dormi de novo, e no mesmo instante sonhei que era um astronauta.

sábado, fevereiro 12, 2005

pílulas falantes (e ambulantes)

na última sexta-feira das minhas férias, pego o busão no ipiranga, lá pertinho de onde dom pedro i gritou "independência ou morte", e venho vindo até a praça do correio, até o vale lindo do anhangabaú. nostálgico, venho garrando a maginá. quando cheguei de maringá, 13 anos atrás, costumava me restringir a uma rota geográfica bem delimitada, bem limitada. ia daqui pra lá, dali pra acolá, e voltava rapidinho, apressado. nessa época, quando fixava o olhar na linha do horizonte eu costumava imaginar (fantasiar) que a cidade acabava logo ali além dos meus parcos horizontes. circulava pela rua vergueiro e supunha que não havia mais cidade para lá de vergueiro, além da liberdade, pros lados da aclimação. me aventurava pela praça da sé e deduzia que da abóbada azul para diante nada mais haveria (sonhar que a sé, pela liberdade, ia dar na vergueiro? nunquinha). sacolejava pela longínqua e longilínea avenida sapopemba e quase enxergava que à esquerda da serpente sapopemba tudo era deserto, vazio, despovoado. para mim a cidade acabava logo ali, que o vazio se espalhava para todos os lados ao redor das poucas ruas em que eu me confinava.
@
pois até hoje, após 13 anos de estrada, ainda tomo uns sustos quando volto a pensar nos vazios que meus receios preenchiam com nadas imaginários. me flagro em plena avenida senador queirós, enlevado por (re)descobrir que, não, nunca a cidade cessou logo após a praça da república. pasmo, percebo que a senador queirós não só existe comprida como passa raspando pela galeria pajé, pelo mercado municipal, pela 25 de março. a tais lugares eu chegava por rotas diversas, ou então nem mesmo chegava (nunca entrei no mercado municipal, até hoje), e eis que eles existem todos ali, quase enfileirados. (re)descubro que a cidade continua vigorosa para todos os lados, quase interminável, logo ali, aqui mesmo.
@
desço nos correios, tão decadentes os correios, neste tempo de e-mail... de pronto bato de frente com uma loja popular de cds, é entrar ou entrar. vasculho, compro semi-raridades a preço de banana: claudette soares, raimundo fagner e - tão lindo! - trio esperança. ao meu lado, um moço compra dois cds e um embrulho de r$ 1, uma caixinha de papelão rosa e fita vermelha. para presente, leva um disco da banda arrocha. para ele mesmo (suponho), escolhe outro de nara costa. penso que posso passar mil anos vivendo e estudando discos de música popular brasileira e nem assim terei oportunidade de saber quem é a cantora nara costa, essa nara que não é leão, essa não-gal para quem viro as costas. pululam pelas lojinhas do anhangabaú discos que nunca vou ouvir nem saber que foram concebidos e gravados. me dou a veleidades de que conheço alguma coisa da música do mundo, mas conheço, não, seu moço. só conheço fragmentos minúsculos da música do mundo, faíscas ruidosas da música do brasil. ao meu lado, moram mil outros brasis, de música por todas as vielas, aqui mesmo, bem distantes.
@
é a bocarra do anhangabaú, ali por cima passa garboso o viaduto santa efigênia. venha ver, eugênia, como continua bonito o viaduto santa efigênia. venha até são paulo, seu itamar, ver o que é bom pra tosse.
@
sigo flutuando pelo calçadão, os garotos skatistas, os rappers, a vegetação. de sopetão, o ventre livre do anhangabaú me apresenta a solada da porta de ferro cerrada de um prédio abandonado, e nela a fileira sestrosa de putas jovens, rostos expressivos metade tristeza, metade alegria. uma me vê passar e me cochicha "psiu", outra não me vê passar e segue animadas negociações em dolente sotaque nordestino, com o moço preto de sotaque igualmente arretado.
@
despenca sobre mim o viaduto do chá, de onde rita lee 1985 fez despencar a glória f, a glória frankenstein. era um plágio, um quase autoplágio, porque glória f existia desde os tempos pré-mutantes, na pele de "suicida", acho que 1966. o fato é que a glória f de rita e/ou o/a suicida de rita&arnaldo&meninos despencavam do viaduto que ia levar à praça do patriarca e prosseguiam, meio esquartejados, meio ensangüentados, mas ainda vivos, lépidos e fagueiros.
@
na distância vi o vulto do cigano desaparecer, nem sequer tive tempo de pedir que lesse minha sorte. alô, xico sá.
@
o viaduto do chá está a apenas poucos passos do reduto das putas, mas ali a paisagem é completamente diferente. ao redor de bancos de praça que repousam ao sopé do viaduto, concentram-se outras tantas mulheres - brancas, pretas, quase coloridas -, que guardam entre elas apenas as semelhanças de serem todas senhoras idosas e carregarem revistas de catequização religiosa, "sentinela". de raspão, ouço promessas de regeneração, olhares perfurantes, a palavra "deus" ecoando na corrente elétrica que se transmite de uma a outra beata metropolitana.
@
permito-me voltar a imaginar (fantasiar). e se trocássemos todas aquelas mulheres de lugar? vestimos de recato até os punhos, o pescoço e os tornozelos as jovens putas, abandonadas rodando bibliazinha no cu do anhangabaú. colocamos pesada maquiagem, minissaias e microblusas nas senhoras idosas beatas, atiçadas brandindo bolsinhas brancas de lantejoulas na testa dos cristãos. deliro? deliro. mas será mesmo que uma das velhas crentes não poderia se achegar a outra jovem prostituta e murmurar, um sorriso pintado no rosto, que "eu sou você amanhã"? não? não. mas então por que não se encontram nas reentrâncias e saliências do anhangabaú jovens pregadoras, velhas prostitutas? as primeiras ainda não nasceram? as últimas já morreram?
@
"independência e vida", cantou certa vez rita lee, discordando veementemente da cisão proposta noutro século por dom pedro i. "independência e vida" constava do disco "zona zen" (emi, 1988), malhado à época por onze em cada dez pessoas, malhado até mesmo (desconfio) pela própria rita lee. independência e vida, "branca, preta, colorida".
@
o relógio marca 18h10 quando atinjo o túnel metrô que partindo do anhangabaú vai furar o centro da terra. sexta-feira, dia longo de trampo, quase o fim de semana (para quem tem fim de semana). pessoas entram no buraco amontoadas, mas disciplinadas, feito formigas que passaram o dia fazendo provisão e agora vão privar de poucas horas de descanso nas entranhas do formigueiro. somamos passos amuados e seguimos vagarosos em fila, o rebanho, a pequena multidão que, agora que vai anoitecer, transformará o centro da cidade num lugar ermo, quase vazio. tão fora, tão longe, tão perto, tão dentro.
@
chego de volta ao meu bairro, à minha rua que, cheia de árvores, quase me faz lembrar minha arborizada maringá. e volta à memória o sonho que outro dia eu sonhei: na rua paralela à minha, logo ali adiante onde a vista ainda alcança, ficava o mar, o oceano.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

elogios à "traição": pra quê?

agora que não é mais carnaval, paro e penso em "calabar", no "calabar" de chico buarque e ruy guerra. a peça teatral, cujo subtítulo era "o elogio da traição", foi esquartejada e morta pela censura ditatorial, por doutrinas médici, em 1973. o lp contendo a trilha do musical chegou ao comércio todo mutilado, mas chegou, sob o codinome "chico canta" (phonogram/philips, também 1973). mesmo após mais de 30 anos, o disco continua soando pungente e belo; quanto ao texto da peça, que li há alguns anos (e não fui agora reler), até hoje ele me parece incompreensível, confuso, chatusco. tormenta, náusea e confusão vão e vêm na trilha sonora, mas alguns ardis mantêm acesa a chama de "calabar". se a censura política andava à toda, chico se espicaçava e escapava por todas as frestas, feito bolinha de mercúrio que foi pressionada [obrigado, taís, pela imagem]. em "calabar", ainda arriscando tocar em política, aderia ao espírito de um tempo de secos & molhados & marias alcinas e visitava testes comportamentais, inversões sexuais: ora cantava no feminino, travestindo-se de "bárbara", de "ana de amsterdam" e clamando pelo corpo de seu homem; ora ousava ir além, encenando o tabu no sexo lésbico entre ana e bárbara, sutis "traidoras" num mundo de "traidores".

pois havia o "elogio" à "traição", esse que nunca entendi. a história rocambolesca se debruçava sobre o brasil-colônia, fundado/acossado por portugal, por holanda, por pecados rasgados encenados ao sul do equador. a leitura desencantada por sobre o brasil parecia uma atualização da vetusta dialética da malandragem (que de fato chico revisitaria seis anos adiante, também pelo filtro teatral, na "ópera do malandro"). mas suspeito que voltava aplicada às elites culturais, intelectuais, econômicas - às quais afinal o autor nunca deixou de pertencer. se ao "pobre" resta ser malandro ou otário, de duas uma, o "rico" buarquiano parece constituir uma gosma subdividida entre outra dupla do barulho: "traído" e "traidor" (é necessário lembrar que o maniqueísmo governa indistintamente malandros e otários, "traídos" e "traidores"?).

mas, ai, será? ainda nos serve esse visor de um brasil que é fruto podre de "traições" originais, de "pecados" originais (a culpa sexual move a citação cruzada ao sangue lusitando e à sífilis correndo em veias brasileiras, no lindíssimo e tristíssimo "fado tropical", arranjado, como todo o disco, por edu lobo)? ainda nos servem calabares e capitus? servem, é claro que servem. infelizmente. veja.

os amores seguem regidos pelo elogio à "traição". é o amante que inicia seu romance aterrorizado pela inevitabilidade da "traição", que virá mais cedo ou mais tarde (ops, aterrorizado? não seria convicto, previamente convicto? a certeza da "traição" não produz "traição"?). é a "traição" cindindo pessoas em corte maniqueísta, desta vez entre vítimas (o "chifrudo", a "esposa enganada", o "corno") e culpados (a "puta", a/o "galinha", os gays "promíscuos"). facas & feridas, irmanadas nas fogueiras das paixões. o amor romântico.

por cima e acima dos amores, as políticas (românticas) seguem orquestradas pelo elogio às "traições". o elogio à "traição" é valor nacional de agora, principalmente nesses dias em que o pt completa 25 anos, reformado ou deformado, transfigurado ou desfigurado (o adjetivo vai de acordo com a vontade do freguês). o pt "traiu", lula é "traidor", o brasil se estrepou mais uma vez (aliás, não é cetro petista: com um mês de governo, já há gente chamando o prefeito chuvoso josé serra de "traidor"). esse é o mote predileto de largo espectro político, acusações partindo de petistas, antipetistas e ex-petistas, de (ex)esquerdistas e (ex)direitistas - afinal, "traição" não tem coloração ideológico, sempre cabe mais um chifre na testa de qualquer um.

ora bolas, mas que porcaria de "traição" é essa? queiram ou não queiram, srs. "traídos" & srs. "traidores", lula é (ex)excluído que chegou ao poder, e nada que aconteça poderá "trair" essa condição, ou essa ex-condição. ele não "traiu", não "trai" e não "trairá" sua origem, porque ela corre em seu sangue, como defendia em 1968 o velho "reacionário" nelson rodrigues - ela é inerente, o menino mora para sempre dentro do adulto, por baixo do adulto. por que o ouriço petista, daqueles que acusavam a "traição" quando nem bem seu voto esfriava na urna quentinha? por que o estrebucho antipetista, de quem sempre vomitou ojeriza pelos valores lulistas e hoje cobra, feito carpideira, a não-concretização (ou seja, a não-"traição") do ideário lulista? o que querem tantas vacas sagradas (entre elas algumas das melhores cabeças do país, de chico a caetano, de teóricos petistas a teóricos tucanos), sempre ruminando e mugindo o "grande fracasso brasileiro"?

não sei, sei lá, entende? mas desconfio. desconfio que os de nós que estamos sempre prontos a acusar "traições" na próxima esquina, no primeiro ato e nos mínimos detalhes
vivemos atormentados não pela "traição" alheia, mas por nossos próprios demônios internos, por nossos fantasmas mais lívidos, flácidos e túrgidos.

por que nos dispomos, bêbados, a sempre deliberar sobre a "traição" alheia? por que não nos atrevemos, tímidos, a nunca nos ajoelharmos diante de nossas próprias "traições"? por que "traídos" não se colocam na fantasia lúcida de "traidores", por que não vice-versa, em tráfego, trânsito, trâmite? descendo ao fundo do poço, por que não invertemos a noção de "traição" para passarmos a vislumbrar, rútilos, o conceito de auto-traição? eu já me auto-"traí", você já se auto-"traiu"? já ofuscou sob cinzas de quarta-feira um projeto límpido? já enterrou no fundo do armário ("in the closet", mr. michael jackson) algum sonho íntimo? já se "traiu"? aposto que já, assim como lula, a torcida da seleção canarinho e os hooligans. e seguirá sendo ainda você, "fiel" a si, enquanto aqui no trópico lula vai alegorizando, lépido, o posto de excluído, no mínimo de ex-excluído. você já foi excluído? já se auto-excluiu? você já foi à bahia, nega? não? já foi, sim.

o chico buarque de "calabar" (não) é o chico buarque de "os saltimbancos"? não é. é?

calabar, calabouço, cala a boca, bárbara, carcará. cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu. a gente não somos inútil.

ufs, mas pra que tantas "aspas" ao redor da palavra "traição" e de suas comensais? porque, porra, "traição" é desígnio tão abstrato quanto vazio, é coisa que não existe - ou, se existe, não tem serventia, servo, serviço, servidão. é entulho (autoritário), traveste anseios, orgulhos e vergonhas mais profundos, íntimos, muitas vezes intocados. pare e pense em si, doçura, dez segundos antes de expulsar o ímpeto de xingar alguém de "traidor", "puta", "pilantra" "otário", "ordinário", blablablá. porque ninguém aqui é santo, anjo ou demônio. a gente só quer ser feliz & fértil & forte & firme & andar tranqüilamente na favela em que nasceu.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

pílulas falantes (e serpentinas)

ai, eu num agüento esse nelson rodrigues, viu? já leu "o óbvio ululante" (1968, republicado e ampliado em 1993 por ruy castro e pela companhia das letras), que reúne as crônicas dele n'"o globo" entre 1967 e 1968? tem uma de 18 de dezembro de 1967, chamada "onde estão os negros?", que é uma coisa. ele vinha falando do sartre, expressando seu tédio profundo por sartre (obrigado, nelson, por purgar o tédio profundo que sinto por sartre, por beckett, por todos esses existencialistas chatos de galocha, por todo esse nhenhenhém). comentava nelson que sartre, visitando o brasil, comia jabuticabas com desprezo enquanto perguntava bem blasé (bem carão, diríamos hoje) "e os negros, onde é que estão os negros?". aí nelson, o "reacionário", pavimentava, magistral, concordando a contragosto com sartre: "há qualquer coisa de sinistro no descaro com que estamos sempre dispostos a proclamar - 'somos uma democracia racial'. desde garoto, porém, eu sentia a solidão negra. eis o que aprendi do brasil - aqui o branco não gosta do preto; e o preto também não gosta do preto". eu, do alto do meu blog e de 2005, acrescentaria: e o preto não gosta do branco; e o branco também não gosta do branco.

poucos dias antes dessa crônica, o anjo pornográfico lembrara da humilhação que sentira na escola quando pequeno, no dia em que sua professora o espezinhou e maltratou em classe aberta, ao descobrir piolhos em seus cabelos. aí vem nelson, flor de obsessão, me encher de paixão e me congelar o sangue por segundos: "quase no fim do recreio estava eu no fundo do pátio. e, de repente, vem uma pretinha lá da minha aula. pára diante de mim, ri para mim. olha para um lado, para outro e para trás. estávamos sós, maravilhosamente sós. seu riso não tem os dentes da frente. diz baixinho - 'eu também tenho piolhos, lêndeas'". fica claro que a identidade entre nelson e a coleguinha se dá por marginalidade - a pele preta dela, os piolhos dele (e dela), a humilhação cotidiana dos dois, a pobreza de ambos. para nelson rodrigues, em 1967, ser marginal, pobre (e preto) não era só "doença", era "doença" contagiosa (ainda que pouco grave), feito pediculose. pegava. "não fique perto de pobre, porque pega." ouço essas coisas todas e me pergunto: quantos e quais desses valores invertidos já se foram em 2005? quantos e quais desses valores virados ao avesso ainda prevalecem em 2005? carnaval despontando no país, quem vai de camarote? quem vai no cordão? quem vai na pipoca?
@
sei que jabuticaba tem casca preta como breu e sumo branco como a neve, mas de que cor é mesmo o caroço?
@
e esse roberto carlos, hein?, como está mudado esse rei! comemora "liberei geral", fantasia-se de marinheiro showman dentro dum navio transatlântico (e quase dentro do carnaval), freqüenta cassino flutuante até as 5h da manhã, faz zombaria da época em que ele próprio "fazia curso para ser santo" (monica bergamo viu e contou)... ó, eu amo esse rei-plebeu, cada dia mais. e, desculpa, essa bola já estava cantada (leia, por favor, o último capítulo do meu "como dois e dois são cinco"), né? uou, espera, pára: isso não é um auto-elogio do pedro alexandre sanches!!! mareou. não fui eu que cantei essa bola! a bola quicava por aí, oh, arautos da infelicidade, e é simples assim: se o brasil está ficando melhor e mais livre e mais saudável (desde antes, mas em especial desde 1º de janeiro de 2003), é obrigatório que a mais poderosa e sensível e aguçada antena brasileira fique melhor e mais livre e mais saudável juntinho com o brasil, como um e um são um par. pois é. roberto carlos, flor de compulsão, está melhorando, dia após dia, minuto após minuto, segundo após segundo. que deus dê vida longa a nosso rei-plebeu, ela será também nossa saúde [mas onde está erasmo carlos?]!
@
boa cirurgia no narigão, mr. da silva. esquindô!
@
ah, falando em mudança. depois ninguém acredita quando digo que o mundo está ao contrário e ninguém reparou (alô, nando reis!). meus queridos erika palomino e andré fischer não param de me surpreender. uma diz que agora mudou e já gosta de samba, mangueira, paulinho da viola, carmen miranda, joão gilberto. outro embarca com o rei-plebeu no naviozão costa victoria e discoteca roberto carlos no site do mix brasil, até "como dois e dois"! até nina lemos eu tive a honra de ver sambando no pé, enquanto eu tocava samba bleque na casa de cris naumovs, na festa de claudia lima (nina, eu sei que você sempre gostou de samba, mas é que eu nunca tinha te visto sambar...). adooooooooooro!!! e é por isso que eu digo: não são só o mundo e roberto carlos que estão virados do avesso. liberou geral. esquindô!
@
está, está tudo virado, do avesso: caetano veloso vai passar o carnaval em pernambuco!!!! só falta jamelão vir para são paulo puxar samba-enredo da vai-vai! só falta o bush ir passar o feriado com o chávez na venezuela! só falta caetano veloso dizer que gilberto gil é cafona (ou vice-versa)!
@
e hoje é aniversário de marcia bechara. odoyá (é assim que fala?), marcia bechara! mais mil anos de felicidade!
@
marcia bechara bronqueou, eu não posso deixar de lembrar: pílula falante é um negócio que emília, no sítio do picapau amarelo de mr. monteiro lobato, tomou quando sua dona narizinho decidiu que queria uma boneca falante. desabalaram-se as duas para o reino das águas claras, para uma consulta com o grande dr. caramujo, detentor da fórmula da pílula falante. chegadas lá, descobriram que o major sapo (esqueci o nome do sapo, meu deus!), chefe de segurança do reino do príncipe escamoso, havia tomado todas as pílulas, pensando que eram pedrinhas - por que diabos o sapo gostava de engolir pedrinhas? [sapo engole pedrinhas e a gente engole sapo, será que é isso? o sapo é barbudo?] pois bem, dr. caramujo abriu a barriga do sapo (pobre sapo, sempre sobra pro sapo!), para extrair as pílulas e a dor na barriga do sapo soldado plebeu. das entranhas do sapo, a pílula falante foi parar diretamente no estômago de macela de emília, essa boneca. e a boneca se pôs a falar (ou, como cantou uma vez baby consuelo, emília "tagarelou, tagarelou a falar" - o rock está em "pirlimpimpim", som livre, 1981, mesmo disco em que dona ivone lara nos convida para o "sítio do picapau, na festa de narizinho", esquindô!). e sabe o que foi a primeira coisa que emília disse ao adquirir a faculdade de falar? "estou com um horrível gosto de sapo na boca."
@
sapo cururu... na beira do rio... quando o sapo canta, maninha, é porque tem frio... mesmo que seja barbudo.
@
agora só depois do carnaval. hoje só amanhã. tem, mas acabou. ótimo carnaval, país tropical! esquindô, lelê! eu prefiro as curvas!

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

dois mil e quatro 3, a terceira margem: rosinha, essa menina

alô, alô, marcia bechara!!!

puxa vida, há algo ainda a dizer sobre as nostalgias de 2004...

nesta semana encontrei a cantora maria alcina no supermercado, nós dois moramos no mesmo bairro, quase vizinhos. ela já não é mais magricela e careca como era nos anos 70, mas sua voz continua o mesmo trovão, e sigo vendo no olhar dela a mesma faísca de vivacidade e inteligência que reconheci nas (poucas) vezes que pude ver o tape em que ela cantava “fio maravilha” (de jorge ben) no polêmico festival internacional da canção de 1972, da rede globo. maria alcina é tão viva e vivaz como quando se rendia ao sistemão global, mas o fazia desafiando padrões de comportamento em pleno reinado do terror - era o hálito ditatorial terrorista de emílio garrastazú médici, que antes já arrasara com wilson simonal, erlon chaves, toni tornado... poucos (mas bons) tomam conhecimento, hoje em dia, da imponente sobrevivência de maria alcina, seja sob as plumas eletrônicas do grupo bojo, seja do alto nostálgico de "fio maravilha", "paraíba", "xuxu beleza" e, por que não?, da relativa infâmia de "seu delegado, prenda o tadeu" e da atividade de jurada (alô, aracy de almeida) dos programas de raul gil.

maria alcina, ah, maria alcina.
são tantas marias alcinas neste brasil.

2004 foi espetacular para uma delas, rosinha de valença - mas com o grave agravante de que isso se deveu, em parte, ao fato de que rosinha de valença morreu no glorioso 2004.

rosinha, essa menina (esse é o nome de um choro instrumental que lorde paulinho da viola compôs para ela e ficou gravado em "memórias - chorando", odeon, 1976), foi violonista da estirpe de baden powell, correu mundo com seu virtuosismo instrumental e tocou com quantos bons artistas brasileiros você possa imaginar nos anos 70, de nara leão a martinho da vila. era diretora musical e parceira dileta de maria bethânia, a quem apresentou a matriarca anônima negra ivone lara, sonho meu, sonho meu, vá buscar quem mora longe, sonho meu...

sem nem saber direito, conheço rosinha de valença desde 1976, quando (eu) tinha oito anos. minha irmã (treze anos) mais velha comprava muitos discos de mpb no eixo maringá-curitiba, e entre eles havia "bandido", de ney matogrosso & terceiro mundo (continental, 1976). eu quis comprar também aquele disco, (acho que) porque começava com "bandido corazón", composta por minha "ídola" de infância rita lee (a propósito, um dos moços da banda terceiro mundo era roberto de carvalho, futuro marido e parceiro principal da ruiva). pois (estou indo torto ao assunto) outra das minhas faixas favoritas de "bandido" era "usina de prata", composta por essa tal rosinha de valença.

"usina de prata, ninho de solidão/ peguei tanto peixe n'água, dei um talho na minha mão/ usina de água e prata, luar de prata na minha mão/ é lá que se vão meus ais e as dores do coração", cantava agudo e sofrido o ney. e, ói, a violonista também era compositora - fazia lindos versos simbolistas. tudo ali soava aquático, aquoso, como um remanso em que pudéssemos depositar nossos ais. "na cauda de um grande raio, atravessei pau d'alho/ bom-dia, senhora condessa, água de prata, cordão de nascença", continuava o cara bacana que hoje em dia nem se arrepia com a hipótese de ver reeditado aquele disco que gravou e que se chamava "bandido". será que é porque ali ele cantava rita lee e chico buarque ("mulheres de atenas", mirem-se no exemplo daquele homem que se arvorara a entender no lugar das mulheres o significado da alma das mulheres - obrigado, eva, pela revelação), mas cantava também rosinha de valença e odair josé ("cante uma canção de amor só pra mim/ isso vai me ajudar a viver")?

sei lá, só sei que ney continuava: "no poço da mina encontrei um moço bem feito de rosto/ trazia um peixe de prata, prata, prata, prata, prata, ai, ai". eu gostava da sonoridade daquelas palavras esféricas que ribombavam feito pedrinhas que a gente atira de assim na água do rio, para darem vários pulinhos na superfície antes de irem morar no fundo do leito do rio. para mim, a usina de prata ficava numa ilha, numa ilha cercada de água doce por todos os lados. sem saber nada sobre significados, eu gostava do pau d'alho, do talho na mão, da cauda do grande raio de trovão, do cordão de nascença (tanto medo de nascer para o mundo), da senhora condessa, do moço bem feito de rosto. hoje, tantos anos depois, me enche de orgulho saber que (coincidência?) o artista plástico valdirlei dias nunes fez para meu livro "como dois e dois são cinco" uma capa prateada como o peixe de prata, a água de prata, o luar de prata e a usina de prata daquela menina. rosinha era o lado escuro da lua, o outro lado da rua (o sol se chamava roberto carlos).

hmm, quanto vaivém. então. em 1992, já meio relegada ao ostracismo, rosinha desistiu de esperar para ver expulsarmos fernando collor da presidência que ele estava fraudando. teve um ataque cardíaco e entrou em coma, que se prolongaria por 12 anos, até sua morte, no ano passado. só com sua segunda morte maria bethânia, hoje em dia diretora de selo independente, acabou por concretizar o plano que diz que cultivava fazia tempo, de declarar um tributo inteiro a rosinha de valença. a "cabocla jurema", maria já cantara em seu "brasileirinho" (biscoito fino, 2003), em dueto com miúcha (que diz ter soltado a voz pela primeira vez num disco de rosinha, antes de virar a galinha poedeira dos "saltimbancos" de chico, seu irmão). maria e miúcha aprenderam a "cabocla jurema" com rosinha, que a aprendeu com o folclore. maria passara anos e anos e anos dando suporte financeiro aos cuidados de rosinha, alicerçada por miúcha, martinho, alcione, esses meninos. mas tributar, mesmo, só agora, num dos grandes álbuns do glorioso 2004, "namorando a rosa", que reúne todos os benfazejos de rosinha, mas também chico e caetano, as cantoras-compositoras ivone lara e bebel gilberto, os instrumentistas hermeto pascoal e yamandú costa, e tal.

por intermédio do tributo produzido, dirigido e lançado por bethânia (seu selo se chama quitanda, e é vinculado à independente-rica biscoito fino, de kati de almeida braga), eu soube que rosinha também cantara "usina de prata", naquele mesmo 1976, em seu próprio disco "bicho do mato", da odeon. eu nem sabia da existência desse disco (agora comprei, em vinil) até conhecer, via bethânia, aquelas lindas cações caipiras, brasileirinhas, que rosinha andava compondo em 1976. a multinacional emi, dona do espólio da odeon, nunca relançou "bicho do mato" em cd. a emi hoje em dia é dirigida por um homem inteligente, mas machista à beça, o dono do "tchan" - o que será que marcos maynard deve pensar de rosinha de valença? maria bethânia em pessoa canta "usina de prata" no tributo. mas deixa a mais linda de todas, "interior" ("uma reza forte contra o mau olhado"), para o vozeirão blue de alcione. "maninha, me mande um pouco do verde que te cerca", escreve rosinha em "interior" (gravada primeiro por bethânia, em "álibi", philips, 1978), parecendo retrucar a gravidade da "maninha" de chico buarque (cantada pelo autor com a irmã e mr. tom em "miúcha & antonio carlos jobim", rca, 1977), "um dia ele vai embora, maninha, pra nunca mais voltar".

maria bethânia, que já gravou disco inteiro para roberto e erasmo carlos (copiando sua "ídola" nara leão, que já o fizera muitos anos antes), vem reflorindo, vem sofrendo transformação profunda desde que ancorou na biscoito fino. ela, que como nara já foi "carcará", virou versão feminina de lula, mulher que quer existir para louvar as virtudes verdes em flor do brasil interior, do brasil profundo, do brasil caipira, pira, pora, nossa senhora de aparecida. maria é irmã, araçá azul, de caetano veloso. o outro lado da lua, a outra banda da terra.

[edna passa por aqui e comenta que o violão de rosinha de valença, rodando na vitrola, a faz lembrar seu pai, que adorava o violão. daqui a pouco edna volta e conta que outro dia ficou morta de vergonha porque um senhor lhe falou que sua voz é linda, que ela deveria cantar. o sonho de edna era/é ser professora.]

o brasil carece de desvendar por que rosinha de valença passou 12 anos em coma antes de morrer jovem demais. é vero, um homem também morre cedo, menina morena (ave, torquato neto, cazuza, itamar assumpção: ao menos nisso eles são minoria), mas o brasil ex-ditatorial nos deve a explicação de por que tantas de suas melhores mulheres escorregam no limo das nossas rolling stones e nos privam de exercer a continuidade de suas identidades, idéias e inteligências, nos privam de suas velhices. o brasil há de saber e entender e explicar e redimir e neutralizar a desistência precoce de carmen miranda... dolores duran... maysa... elis regina... clara nunes... nara leão... jovelina pérola negra... cássia eller... celly campello... rosinha de valença... esqueci alguma?... o brasil, ói, precisa assinar carta de alforria que decrete que suas mulheres (e homens) vivam, vivam, vivam, vivam de montão. alô, favela, alô, ministros e ministras. alô, prefeitas e prefeitos, companheiros e companheiras, brasileiras e brasileiros, eu e você.